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Des Contos: No ar.

| Somir | | 31 comentários em Des Contos: No ar.

“A noite fria torna meus ossos provas irrefutáveis de que estou ficando velho. O meu casaco não serve como abrigo para o fluxo inexorável do tempo. Mas eu não posso me render, não enquanto essa cidade enlouquecida for o espólio da minha guerra pessoal…”

MULHER: Você disse alguma coisa?

“Observo uma mulher, do alto dos seus trinta anos de idade, vestida de forma vulgar. Ela parece não entender como é só mais uma engrenagem desta máquina suja. Nenhum deles entende.”

MULHER: Espero que você não esteja falando de mim!

“Mas não há tempo para contemplar os ratos, o labirinto continua suficientemente inexplorado. Um táxi se aproxima. Finalmente.”

MULHER: Maluco. TÁXI!

“Minha noite está apenas começando. Entro no táxi.”

MULHER: Ei! Ei! Eu estava aqui primeiro! Espera a sua vez! EI! FILHO-DA-PUTA!

“O taxista sorri, expressão fabricada em larga escala para aliviar a sensação de vazio que corrói a todos. Mas não me engana. Enxergo por detrás da máscara e sei que ele não passa de mais um doente ou pervertido. O veículo não cheira bem, ainda não consigo definir se o fedor vem do banco ou de quem dirige…”

TAXISTA: É cada uma que me aparece… Vai praonde?

“Digo para me deixar em frente ao bar do Michael. Faço questão de disfarçar meu desgosto com o sorriso amarelado dele enquanto repito pausadamente meu destino. Ele não parece ser muito brilhante.”

TAXISTA: Cretino… Saí do meu táxi! SAI!

“Aquele cheiro estava me deixando nauseado. Resolvo completar as quadras restantes à pé, saboreando o ar vomitado por incontáveis escapamentos durante o dia. A fumaça do cigarro dançando sobre a cabeça de um jovem me dá ideias… Sei que deveria parar, mas não estou plenamente convencido se anos extras de vida realmente me fariam algum bem.”

RAPAZ: Por que você está me encarando? Eu te conheço?

“Peço um cigarro.”

RAPAZ: Anh… tudo bem. Toma.

“Faço um sinal de que preciso de fogo…”

RAPAZ: Tá aqui… Me diz o que você está usando, tio. Deve ser bom…

“A primeira tragada enche meus pulmões com o doce veneno da nicotina. A sensação é capaz de aliviar até a decepção com os jovens de hoje. O rapaz usa uma camiseta rosada, claramente pequena para seu porte físico, o que o faz parecer um daqueles homossexuais que infestam as casas noturnas do centro. No meu tempo, ele levaria uma surra para aprender a ter mais respeito com a própria imagem.”

RAPAZ: Que porra é essa? Tá querendo morrer, vovô?

“Tal qual um babuíno, ele sinaliza sua coragem, numa pífia tentativa de mascarar seu desvio sexual óbvio. Decido que um verme desses não merece meu tempo e continuo andando, tenho objetivos maiores do que trocar as fraldas de um…”

RAPAZ: TOMA ESSA, OTÁRIO! QUEM É VIADO AGORA, HEIN? VAI! CONTINUA FALANDO!

“Começo a enxergar meu destino, embora ambos meus olhos estejam inchados. Deveria ter relevado o fedor daquele taxista e não me exposto tanto ao frio e as intempéries da noite.”

SENHORA: Você está sangrando! Está tudo bem?

“Uma velha obesa tenta chamar minha atenção, provavelmente uma trabalhadora da noite longe de seus áureos anos de devassidão, mas ainda à procura de clientes. Durante a noite, todos os bueiros parecem se abrir.”

SENHORA:

“Finalmente, chego ao bar do Michael. É onde a escória fétida dessa cidade suja parece mais à vontade. Vejo rostos conhecidos, eles me temem. Eles sabem muito bem que devem me temer…”

GARÇOM: Eu tirei o palitinho menor e vou servir sua mesa hoje.

“O garçom, um homem excessivamente magro, me encara com sua face esquelética e expressão estúpida. Se ele soubesse como o desprezo…”

GARÇOM: A gente tem que fazer isso toda noite?

“Peço uma bebida.”

GARÇOM: Vou pedir aposentadoria por invalidez só por sua causa! Você tem que dizer qual bebida pediu…

“Ele atrasa sua reação intencionalmente. Tenho a impressão que ele é homossexual e sente-se atraído por homens mais velhos.”

GARÇOM: Bom, eu vou trazer qualquer coisa, e não se preocupe, o cuspe vai ser por conta da casa!

“Enquanto meu contato não se faz presente, tenho a oportunidade de ouvir a conversa de duas mulheres na mesa ao lado. A ladainha fútil que escorre de suas bocas excessivamente maquiadas só complementa a imagem barata que apresentam.”

MULHER AO LADO: Ele está falando da gente?

“Uma delas tenta chamar minha atenção. O desejo pelos braços fortes e experientes de um homem como eu preenche o ar, escondendo até o adocicado e exagerado perfume barato com o qual empesteia o ambiente. Nossos olhares se encontram e ela ri, nervosamente.”

MULHER AO LADO: Hahahahahaha! Ele está narrando a própria vida?

“Não tenho tempo para isso. Trabalho vem antes da diversão. Embora não acredite que uma mulher acima do peso e da idade necessária para vestir roupas tão ousadas seja exatamente uma boa forma de terminar a noite.”

MULHER AO LADO: Velho ridículo!

“Ela até tenta me oferecer uma bebida, mas se presta ao papel ridículo de derramá-lo sobre meu rosto e roupas. Provavelmente está alterada pelo excesso de álcool. Mulheres assim não me atraem.”

GARÇOM: Essa foi a última gota, ouviu? Vou mandar a segurança te tirar daqui se tiver mais algum problema.

“Mais alguns eméritos representantes da ralé patética que frequenta este pulgueiro tentam atrair minha atenção, sem sucesso. Após avistar meu contato no balcão, decido que é a hora de completar minha missão e colocar um fim nisso tudo.”

HOMEM:

“Como eu previa, ele não diz sequer uma palavra antes de ouvir o código secreto. Digo as palavras mágicas e o homem finalmente nota minha presença.”

HOMEM: Sai de perto, maluco!

“Ele tem os nomes e endereços das pessoas que procuro. Informação é um dos bens mais preciosos do submundo ao qual o escroque pertence. Não me surpreende nem um pouco que ele relute. Mas eu não sou um amador, eu faço ratos como esse guincharem há algumas décadas.”

HOMEM: Sério. Se você não sair de perto, vai ficar ruim para o seu lado.

“Ele parece nervoso. Suas mãos começam a tatear um dos bolsos internos de sua jaqueta. Eu conheço muito bem o desenrolar dessa trama. É uma armadilha! Ele está armado!”

GARÇOM: Armado?

“Os insetos locais começam a correr, desnorteados. Como previsto, o meu suposto contato puxa uma arma e aponta para minha cabeça. Não sou homem de me impressionar com esses brinquedos de capangas covardes. Atrás do cano, nada mais do que um garoto querendo impressionar seus superiores. Eu conheço o tipo, eles não tem o que é necessário para puxar o gatilho.”

HOMEM: Tá duvidando?

“De nada adianta cerrar os dentes, animal. Posso enxergar seu medo. A gota de suor escorrendo caprichosamente por entre suas sobrancelhas, os leves espasmos do lábio superior, a respiração artificialmente controlada… Eles são a praga e eu sou o exterminador. Eles sabem disso.”

HOMEM: Você acha que eu tenho medo de você, é?

“Ele começa a baixar a arma. Eu sabia.”

HOMEM: Não, eu não estou baixando porra nenhuma! Sai daqui, seu maluco!

“Ouço os gritos das sirenes. Agora os chacais uniformizados virão para dilacerar o restante da minha presa. Eles não sabem arrancar a verdade das pessoas como eu. Se eu tivesse apenas alguns momentos com esse verme, ele estaria rezando para seja lá que deus acredite para passar o resto da vida atrás de grades e muros. Longe de mim.”

POLICIAL: Solta a arma e mãos para o alto!

“Mais um deles enjaulado. Continuo sem as respostas que procuro, mas agora essa ralé imunda me considera seu herói. O rei do lixo. O dono da pocilga que salvei me oferece um drink colorido e afetado como pagamento. Trata-se de mais um homossexual. Ofereço-lhe meu dedo médio.”

DONO DO BAR: Para eu aprender a nunca mais demonstrar gratidão…

“Eles me observam ao sair dali. A aura de fracasso me persegue por mais alguns quarteirões. Nem todos os banhos do mundo podem me limpar da podridão que essa cidade impregna em meu corpo.”

TRANSEUNTE: Senhor, sem querer ser indiscreto… Mas eu acho que você borrou as calças.

“Um dia a menos. Uma história a mais. Essa é a vida nessa cidade.”

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