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Ele disse, ela disse: Morto! Vivo!

| Desfavor | | 212 comentários em Ele disse, ela disse: Morto! Vivo!

Sally e Somir provam hoje que ateísmo não é um clube com regras rígidas para admissão. Enquanto ele mantém seu ceticismo como uma linha-guia para compreender o mundo ao seu redor, ela se reserva ao direito de não precipitar conclusões sobre o… sobrenatural. Os impopulares estão convidados a não se fazerem de mortos e expressar suas opiniões.

Tema de hoje: Devemos ter mais medo dos vivos ou dos mortos?

SOMIR

Eu até colocaria uma receita aqui, mas além de não conhecer muitas que não envolvem colocar coisas entre duas fatias de pão, acontecimentos recentes aqui na RID me fizeram pensar duas vezes antes de confiar na capacidade de compreensão do mundo real dos impopulares. Estou apostando que vai ter muita gente aqui que acredita em fantasmas…

Bom, não vou dourar a pílula: Se você chegou na vida adulta achando que essas asneiras tem qualquer fundo de verdade, vai ser difícil te alcançar com lógica e bom senso. É quase como religião. A pessoa tem que ser capaz de se livrar dos grilhões do misticismo por conta própria, não tem muito argumento válido contra “querer” acreditar.

E sim, isso tem muito a ver com querer acreditar. Por mais que fantasmas, assombrações e almas-penadas povoem o imaginário popular como coisas assustadoras e perigosas, eles também permitem uma confortável ideia de que existe vida após a morte. A dificuldade de um ser dotado de consciência como o humano contemplar a própria finitude é base de praticamente todo o misticismo e a superstição presentes no mundo de hoje.

Se a morte permite a manutenção de uma consciência além do corpo, o medo do fim e a insegurança gerada pela insignificância de uma vida humana em relação à vastidão do universo acabam mitigadas pela expectativa de novas chances e respostas num próximo estágio de existência. Embora o cidadão médio não expresse a ideia com tal refinamento, a noção básica é a mesma.

Acreditar nisso é confortável. E mesmo que exista uma voz na cabeça de muita gente tentando alertar sobre os furos na teoria, é mais agradável manter uma esperança de que “almas desencarnadas” sejam uma possibilidade mais sólida que o Papai Noel ou o Coelhinho da Páscoa. A realidade, contanto, faz questão de demonstrar que mesmo após milênios de busca incessante por qualquer prova de que existe vida após a morte, o melhor que temos são relatos confusos e provas que quando não são falsificações ou enganos, são no máximo ambíguas.

Muita gente ganha a vida explorando essa crença. Religiões inteiras se desenvolvem ao redor do conceito. É muita gente, desde os tempos mais antigos, correndo atrás de algo que prove isso. Algumas dedicando todas suas vidas… E nada. Temos mais evidências sobre a existência de partículas sub-atômicas e galáxias há bilhões de anos-luz do que sobre vida após a morte. Tem gente que adora dizer que a comunidade científica ignora o assunto e ninguém dá suporte para esse tipo de pesquisa, ignorando que esse é um dos interesses mais primais da humanidade e que não se gastou mais tempo ou dinheiro com qualquer outro tipo de pesquisa até hoje. Se a humanidade fosse tão fascinada com povoar o sistema solar como é com a continuidade da existência pós-morte, eu provavelmente estaria escrevendo este texto de Plutão (menos pobralhada, clima mais frio…).

Se houver alguma evidência baseada em RACIONALIDADE ao invés de “querer muito que seja verdade”, eu posso e vou rever minha visão sobre o assunto. Na verdade eu nem arranhei o assunto… A vida após a morte tem mais uma cacetada de inconsistências com o resto da realidade percebida, invalidaria boa parte do conhecimento adquirido pela neurociência…

E sim, ausência de evidência não é evidência de ausência. Mas não vamos nos esquecer que eu posso acreditar em unicórnios e me defender da mesma forma. Favor não confundir escapatórias pela tangente com argumentos racionais. “É possível” vale para qualquer discussão. É possível que um furação consiga montar um Boeing totalmente funcional por pura chance, mas é escrotamente improvável…

Dito isso, não sobra muito o que argumentar. Entre os vivos que podem nos ameaçar com danos físicos e psicológicos e mortos que no máximo podem feder, evidente que é dos vivos que se deve ter mais medo. Mas como eu ainda tenho espaço, vamos brincar. Concedo, por questões humorísticas, que fantasmas existam. Ainda sim não consigo entender porque ter mais medo deles…

Fantasmas são raros. Com mais de cem bilhões de humanos que já nasceram neste mundo, era de se esperar uma população desencarnada muito maior do que a relatada. Por algum motivo eles só aparecem em lugares abandonados e para certas pessoas. A chance de encontrar um bandido drogado é BEM maior do que de encontrar um fantasma.

Fantasmas são seres territoriais. Normalmente os relatos falam sobre ir até o lugar onde a alma penada está, e não sobre ela te perseguir. Vai dizer que não preferia que os vivos também só te causassem dano em locais extremamente específicos? Além disso, fantasmas gostam menos de Sol do que eu… Na pior das hipóteses, é só esperar amanhecer para ficar livre e cair fora do lugar assombrado.

Fantasmas interagem pouco com o “plano material”. Mexer portas e apagar velas dificilmente está no mesmo nível de perigo do que enfiar uma faca no seu peito… Golfinhos já mataram mais gente que fantasmas. Ou eles não querem, ou são uma MERDA nesse ramo de colocar em risco vidas humanas.

Fantasmas são meio… Fernandinho. Sério, se os relatos de aparições são verdadeiros, algumas dessas assombrações devem ter morrido de pancada na cabeça. Que porra é essa de fazer barulhos aleatórios e não conseguir se comunicar feito gente? E também não ajuda a noção de normalidade das faculdades mentais ficar parado em cantos escuros encarando… Só autistas viram fantasmas? Se é esse o jogo deles, posso apontar filhotes de cachorros mais perigosos.

Ah sim, fantasmas estão muito acostumados às pessoas se borrarem de medo. Imagine só se você acorda com um deles olhando para sua cara e ao invés de berrar e correr, você pergunta se ele não tem mais o que fazer da morte e se vira para o outro lado para dormir de novo? Aposto que o desencarnado ficaria desconcertado.

Se fantasma tivesse esse poder todo, já estaríamos fodidos. Principalmente alguém que tira sarro deles sem a menor cerimônia. Aê fantasmada dessa mundo, PEGA EU! Curioso que cético nunca vê fantasma, né?

Para dizer que eu não te provei que fantasmas não existem, para contar sua história assustadora e 100% real porque é você que está dizendo, ou mesmo para dizer que agora está com medo por ter rido dos fantasmas: somir@desfavor.com

SALLY

Eu acredito que os mortos estão mortos de fato e não podem voltar para me fazer algum mal, mas não é porque eu acredito que isto seja verdade. Não tenho a arrogância de achar que meu pensamento é verdade absoluta. Apesar de EU não acreditar, até o momento, acho possível que um dia se descubra que não é bem assim.

Vocês conseguem compreender que para ter medo de algo não se precisa necessariamente ter certeza da sua existência? A simples possibilidade da existência já basta. “Mas Sally, então você tem medo do monstro do macarrão? E se ele existir?”. Não existem milhões de relatos de pessoas ao longo dos séculos falando de um monstro do macarrão, não há indícios suficientes nem para que eu me mantenha “open mind” sobre o assunto.

Então, se você não for arrogante o bastante para pensar que suas convicções são verdades absolutas que jamais serão desmentidas, pode sim sentir medo de algo que acha não existir mas que conta com alguns indícios de que talvez seja possível. Na verdade, é um medo duplo: de que essa porra de fato exista e bagunce com suas crenças e que essa porra de fato exista e te faça algum mal.

São milhões e milhões de relatos por todo o mundo ao longo dos séculos. São todos verdadeiros? Claro que não. Mas, será que no meio de centenas de milhões de relatos não tem ao menos UM que realmente tenha sido uma experiência verdadeira? Eu não afirmo que sim, mas também não tenho a arrogância de afirmar que não.

Não precisa cair para o lado dos “fantasmas” para entender o raciocínio. Eu tenho certeza de que existem ETs? Não. Eu não tenho. Eu nunca vi e não há provas. Ainda assim eu me cago de medo de um dia ver um ET? Sim, eu me cago profundamente de medo. E vou te dizer que o Somir também não acha muita graça na ideia.

Dito isto, ciente de que eu posso estar errada, eu tenho mais medo dos mortos do que dos vivos, pois cogito uma possível existência, não sei em que termos, e os vivos eu sei como me defender, como enfiar a porrada ou até matar se tentarem fazer algo ruim comigo. Já os mortos…

O desconhecido assusta mais do que o conhecido, por isso existem pessoas que se protegem do desconhecido negando-o. A ideia de que algo possa sair do script das convicções da pessoa assusta. Eu me cago de medo de ter que rever minhas convicções e me readaptar a esse tipo de “novidade”. Além disso, tem o medo do troço em si, vai saber o que algo “desconhecido” pode fazer com você! Como se proteger de algo que você não sabe as intenções, não conhece a forma de agir e nunca lidou antes?

Daí você pode estar se perguntando como este discurso se compatibiliza com meu ateísmo. Olha, a ideia de um Deus se baseia em dogmas religiosos espalhados por instituições corruptas que atuam em interesses próprios visando o lucro. Isso basta para desacreditar, somado ao fato de que a grande massa que crê é composta por pessoas muito ignorantes. Já fenômenos paranormais não costumam ter interesses econômicos envolvidos e pessoas comuns, algumas bem inteligentes, relatam experiências concretas. É completamente diferente de religião. Não ter dinheiro no meio confere um pouco mais de credibilidade.

Voltando ao raciocínio original: se a gente cogitar uma pequena possibilidade de que exista esse “fenômeno” é normal ter no mínimo um receio de suas possíveis consequências. O total desconhecido sempre vai ter uma vantagem sobre nós: o fator surpresa. Por pior que possa ser um ser humano, a gente sabe o alcance dos seus atos e suas formas de atuação. É possível mensurar a maldade e a crueldade humana e consequentemente mensurar formas de se proteger ou se defender delas. Mas, como se defender do total desconhecido?

Do que você tem mais medo, daquilo que você sabe como se defender ou daquilo que você não tem a menor ideia de como se defender? Contra o desconhecido somos todos indefesos. Por menor que seja seu potencial lesivo, o fato de desconhecermos a intenção e o modo de agir nos deixa muito mais vulneráveis. Sim, o ser humano faz coisas horríveis, mas ao menos sabemos que uma bela pancada na sua cabeça pode impedi-lo.

Gente contra gente é, dentro do possível, um confronto justo: ambos se machucam, ambos sangram, ambos podem ter os ossos quebrados e ambos podem morrer. Apesar de pequenas variáveis, existe um denominador comum, são todos humanos. Além de serem mortais, ambos sabem os pontos fracos do outro e conhecem o funcionamento do seu organismo. Então, por mais que você pense que não pode existir raça mais filha da puta do que o ser humano, quando não se tem ideia com o que se está lidando, uma “raça menos filha da puta” pode acabar sendo muito mais perigosa.

Vai ter quem diga que eu não posso ter medo de algo que nunca vi, que não estive frente a frente. Basta ter capacidade de abstração. Você teria medo de um tigre? Eu me cagaria de medo de ser colocada frente a frente com um tigre, mesmo sem nunca ter estado com um deles. Você precisa tomar um tiro para saber que dói?

Se você consegue se proteger atrás de uma capa de arrogância e afirmar que todos os relatos que já existiram envolvendo paranormalidade são falsos ou podem ser explicados pela ciência, parabéns, você deve ser muito feliz vivendo com esta certeza. Ter uma resposta (ou uma certeza) deve ser bem mais agradável e seguro que ter um questionamento ou uma dúvida. Pessoas cheias de certeza devem mesmo ter mais medo dos vivos.

Eu, como não descarto estar errada, não tenho medo de admitir: tenho mais medo dos mortos do que dos vivos e torço muito para que eles não existam.

Para formar sua opinião apenas com o texto do Somir e já entrar no meu me achando uma ignorante, para dizer que mente aberta é para os fracos e que os fortes tem certeza ou ainda para dizer “I see dead people”: sally@desfavor.com

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