Des Contos: A entrevista.

As mãos se abrem e a luz volta a atingir seus olhos. O calor do meio-dia castigava Lauro. O ar parado e poluído do centro tornava a sensação térmica ainda mais desconfortável. A garganta seca em contraste com o incômodo acúmulo de suor por debaixo do terno, a face avermelhada, olhos cerrados para combater o gel liquefeito escorrendo de seus cabelos, tudo seria mais tolerável se não fosse o sorriso condescendente da entrevistadora ao dizer que entraria em contato.

Quatro meses em busca de um novo emprego, pontuados por processos de recrutamento confusos e longas esperas. Ele esperava que seu currículo fosse o suficiente para pular etapas e livrá-lo do exercício fútil de tentar impressionar os responsáveis pelo departamento de recursos humanos. A oratória nunca foi um de seus pontos fortes, quer dizer, em teoria. Na prática os constantes acessos de pânico minavam sequer a possibilidade de se comunicar feito um humano normal em situações de muita ansiedade.

Segundo sua terapeuta a condição tinha raízes na infância. Novamente em teoria, já que as sessões foram abruptamente encerradas por falta de pagamento, isso quando ainda estava lidando com questões da adolescência. Mas não era hora de revirar o passado, afinal, o presente trazia uma questão muito mais urgente: Procurar uma sombra.

A avenida, essencialmente comercial, não apresentava muitos locais para um descanso protegido do sol escaldante. Vários bares e lanchonetes, mas uma bebida gelada estava fora de questão, o dinheiro em sua carteira já estava comprometido com a condução de volta para casa. Lauro não estava realmente interessado em passar a vergonha de ser convidado a se retirar após descobrirem que ele não consumiria nada, de novo. O chão também não era uma alternativa: O terno era alugado.

As portas abertas de um edifício comercial movimentado pareceram um oásis para seus olhos ardentes. O fluxo de homens tão ou mais bem vestidos que Lauro o fizeram acreditar que poderia se misturar à multidão e quem sabe fingir estar esperando alguém confortavelmente instalado numa das poltronas do saguão principal.

Dito e feito: Ao passar pela entrada, não levantou sequer uma sobrancelha. Melhor ainda que outros homens vestidos formalmente ocupavam boa parte das inúmeras cadeiras e poltronas disponíveis. Ao avistar uma delas desocupada, ele acelera o passo discretamente e toma o lugar. Na poltrona ao lado, um rapaz de vinte e poucos anos, terno ajustado, cabelo meticulosamente alinhado e expressão irritantemente confiante. Lauro sorri e acena com a cabeça, o rapaz imita o gesto.

Mesmo esforçando-se para não revelar o imenso alívio de diminuir a carga sobre seus pés cansados, Lauro deixa escapar um suspiro muito mais audível que o planejado.

RAPAZ: Nervoso?
LAURO: Hã? É… Não.
RAPAZ: O mais difícil é ser pré-selecionado. Já considero estar aqui uma vitória. Pelo o que eu já vi, eu sou o mais novo aqui… Claro, é difícil mesmo achar alguém com doutorado nessa área aos 24 anos de idade. Mas eu sempre fui muito maduro para minha idade…

Lauro tenta acompanhar o verborrágico prodígio de alguma área a qual ele nem desconfiava qual era, mas a falta de sono gerada pela ansiedade na noite anterior aliada ao conforto que aquela poltrona fornecia ao seu corpo exaurido tratam de reduzir seu foco de atenção e tornar aquela sequência de auto-promoção desavergonhada numa cantiga de ninar. Suas piscadas começam a ficar cada vez mais pesadas e demoradas.

RAPAZ: E foi assim que eu me formei em primeiro lugar. Não estou me gabando não, na minha família as expectativas são sempre muito altas e…

O tempo passa, Lauro acaba tirando pequenas pestanas entre uma história de sucesso e outra, mas nada que desanimasse o jovem falastrão.

RAPAZ: Não é mesmo?
LAURO: Hã? É… Não.
RAPAZ: Bom, é a minha vez. Deseje-me sorte! Não que eu precise, é claro.

Finalmente liberado de fingir que está escutando outro ser humano, Lauro rende-se e decide fechar os olhos por alguns segundos.

VOZ: Sua vez!
LAURO: Hã? É… Não!

Um homem de tamanho, vestimentas e expressão séria típicas de um segurança está parado em frente a Lauro.

LAURO: Eu já estou saindo. Desculpa…
SEGURANÇA: O elevador é para o outro lado.
LAURO: Elevador?
SEGURANÇA: *suspiro* O engomadinho que se sentou ao seu lado me disse que você também está aqui para a entrevista ao sair. A patroa está esperando… E você vai ficar me devendo uma por não contar que você estava dormindo.
LAURO: Entrevista de emprego? Ah, claro! Claro. Só para relembrar, é vaga do quê mesmo?
SEGURANÇA: Você realmente acha que eu vou cair nessa? Vamos logo!
LAURO: *sorriso amarelo*

Junta-se a Lauro e ao segurança no elevador mais um homem com braços que mal cabem sob o terno escuro. Lauro se sente oprimido durante toda a viagem prédio acima. Viagem longa, já que o destino era o último andar. Ao chegar, se depara com um lobby de apenas uma porta sem placa.

Ao dar o primeiro passo para fora, ambos os seguranças se voltam para Lauro. O dos braços desproporcionais começa a fazer uma revista incomodamente minuciosa.

SEGURANÇA: Limpo. Pode me seguir.

Enquanto um continua parado ao lado do elevador, o outro coloca um cartão magnético na ranhura posicionada logo abaixo da maçaneta. Depois de digitar um código, a porta se abre para revelar uma enorme sala de espera, suntuosamente decorada. Não há nenhuma indicação de qual o nome da empresa.

Ao fundo, perto de uma grande porta de madeira, Lauro percebe um jovem se levantar de sua escrivaninha. O rapaz, muito bem apessoado, desliga o que parece ser um celular de ouvido e olha fixamente para o segurança. Parece ser uma espécie de secretário.

SECRETÁRIO: *sussurando* Ela está atacada.
SEGURANÇA: Você acha que eu não sei? Ela me demitiu e recontratou quatro vezes desde a manhã.
SECRETÁRIO: *olhando para Lauro* Boa sorte! Você vai precisar…

Lauro, confuso, resolve seguir em silêncio. O secretário abre a porta lentamente e anuncia que chegou o último candidato. Uma voz feminina e impaciente ocupa o ambiente:

MULHER: Está esperando o quê? Manda entrar! Incompetentes…

Assim que o rapaz termina de abrir a porta, Lauro pode enxergar uma belíssima mulher, do alto dos seus trinta anos de idade, cabelos negros, jóias exuberantes e trajes elegantes. Ela está sentada atrás de uma mesa de madeira maciça, acenando para que eles entrem logo.

Lauro fica paralisado. Se sua ansiedade já era um problema normalmente, defrontado com uma mulher tão atraente como a que via diante de seus olhos as coisas ficariam muito piores. Com um não tão gentil empurrão do segurança, ele segue em direção ao centro da sala, bem maior que a anterior.

MULHER: Você não está aqui para desperdiçar meu tempo, não é mesmo?

Lauro pensa em contar a verdade e sair correndo dali, mas sua voz fica represada sob o nó que se forma na garganta. O máximo que consegue é acenar a cabeça em negativa, tal qual uma criança envergonhada.

MULHER: Ótimo. Você não é muito de falar, não é mesmo?
LAURO: *fazendo não com a cabeça de novo*
MULHER: Boa notícia. O último que subiu aqui não parava de falar. Cadê o seu currículo?
LAURO: *expressão de pânico*
MULHER: Aliás, deixa! Eu já li uns vinte hoje e não me adiantou pra nada. Todos falharam no teste… Eu já estou cansada, vamos economizar o meu tempo e te colocar para fazê-lo de uma vez.
LAURO: É… Não. Eu…
MULHER: O computador está ali, você tem cinco minutos.
LAURO: O… Eu…
MULHER: Quatro minutos e cinquenta segundos!

Ele olha ao seu redor e percebe uma escrivaninha com um computador ligado num dos cantos. Ele aponta para a máquina enquanto olha para ela. A mulher responde com um olhar irônico. Lauro segue vacilante, atrapalha-se ao se sentar, derruba o mouse…

MULHER: Eu saí da cama hoje de manhã para isso? *bufando*

Lauro finalmente se ajusta em frente ao monitor, e mesmo com alguma experiência com computadores, o que encontra na tela não faz o menor sentido. Vários números parecem correr da esquerda para a direita, enquanto várias formas geométricas curiosas aparecem e desaparecem na parte inferior. Palavras aparentemente compostas de caracteres aleatórios descem do topo.

Tomado pela insegurança, ele demora quase três minutos para tomar conta do mouse. Ao mexer o ponteiro pela tela, os padrões ficam ainda mais caóticos, letras se misturando com formas, números mudando de cor e sons acompanhando cada uma das interações.

MULHER: Não vai fazer nada? Seu tempo está acabando. Parece que eles ficam cada vez mais burros… Pelo menos os outros clicaram várias vezes. Não é vaga para deficiente não, viu?

Sem conseguir entender o que deveria fazer, Lauro decide se arriscar a vencer a paralisia muscular temporária e clicar para acabar logo com aquilo, voltar para casa e pensar nas respostas brilhantes que poderia ter usado para impressionar aquela beldade impaciente.

*click*

COMPUTADOR: PERFECT SCORE.
MULHER: Hã?
LAURO: … *sorriso incrédulo*

A mulher se levanta de sua cadeira e segue em direção a Lauro. Ela se aproxima, curvando o corpo sobre seu ombro esquerdo e conferindo a tela.

MULHER: Você… acertou de primeira? Resultado perfeito?
LAURO: É… Não… Eu…
MULHER: Você estava escondendo o jogo, né? *sorriso empolgado* Esse jeitão estranho, vacilante… Uau! Resultado perfeito. Espera só até aqueles abutres do comitê de acionistas ficarem sabendo disso. Ha! Haha! Você nem imagina como isso resolve tudo! *abraçando Lauro*
LAURO: D-desculpa, suado…
MULHER: Você tem o cheiro do sucesso! Você começa agora! O Beto vai te mostrar sua sala, seja bem vindo à empresa!
LAURO: Obrigado!

Os dias se passam, Lauro ainda não sabe o nome da empresa nem o que ela faz, mas aparentemente é o funcionário mais importante dela. A cada dia ele tem que realizar uma tarefa diferente na frente do seu computador, todas tão aleatórias e ininteligíveis como a que realizou na entrevista. Embora não consiga mais resultados perfeitos, mantém sua média na casa dos 90%. Lauro acaba entrando na dança e fingindo saber o que faz diariamente, por causa do obsceno salário prometido, mas principalmente pela admiração gerada em sua bela patroa.

Mas nada como o tempo…

Lauro está sentado preguiçosamente em frente ao computador, esperando que algum daqueles testes malucos o obriguem a tirar os pés de cima da mesa. Alguns minutos depois, o dever chama. Parece uma versão do primeiro teste que fez, o que o deixa mais seguro. Praticamente um escravo da aleatoriedade naquele ponto, resolve que não faz diferença esperar ou não. Quanto mais cedo clicar, mais cedo pode voltar a descansar.

*click*

COMPUTADOR: ERROR! ERROR! ERROR!

Ele sente o ar ficando pesado, a visão fica turva, o corpo parece não responder mais ao pensamento. Suas pálpebras desabam sobre os olhos, o som da voz robótica acusando erro vai se distanciando… Tudo fica escuro.

As mãos se abrem e a luz volta a atingir seus olhos. O calor do meio-dia castigava Lauro. O ar parado e poluído do centro tornava a sensação térmica ainda mais desconfortável…

FIM?

Para dizer que se identificou com Lauro mais do que gostaria, para reclamar que já leu este mesmo final em outro Des Contos (ou seria neste?), ou mesmo para perguntar se eu voltei a ver Lost: somir@desfavor.com

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