Des Contos: A ferida.

Clara mal conseguia sem lembrar do número de consultas médicas que marcara nos últimos meses. O tal de Dr. Joaquim que a fazia esperar por mais de uma hora vinha muito bem indicado por uma conhecida de uma prima distante, ou talvez a prima distante de uma conhecida… Ou talvez nenhuma dessas opções… Naquela altura do campeonato, Clara já não fazia mais tanta questão de referências. Sem contar que o sono por mais uma noite mal dormida não era nenhum alento. Desde que esse médico jogasse alguma luz sobre o caso de sua ferida aparentemente incurável, tudo seria válido.

ATENDENTE:: Clara Cortez, o doutor Francisco está te esperando.

Clara segue por um longo corredor até a última sala, cuja porta entreaberta sustentava uma placa com os dizeres “Dr. Francisco Arruda, psicoelectrólogo”. A inusitada especialidade deixa-a confusa por um momento, mas nada como o desespero para motivar uma pessoa.

Adentrando o consultório, depara-se com um senhor do alto dos seus sessenta anos de idade, volumosa cabeleira grisalha, curiosos óculos arredondados, pequenos demais para os inquisitivos e esbugalhados olhos que guardavam. Com um sorriso sereno, o homem estende a mão, apontando para a cadeira em frente à sua escrivaninha.

DR.FRANCISCO: Boa tarde.
CLARA: Boa tarde…
DR.FRANCISCO: Deixe-me ver… Clara Cortez, certo?
CLARA: Isso.
DR.FRANCISCO: E o que te traz aqui?
CLARA: Eu não sei mais se eu marquei a consulta com o médico certo… o senhor é… psicoelectrolista, isso?
DR.FRANCISCO: Isso mesmo.
CLARA: É que eu fui indicada para o senhor por causa de uma ferida que não fecha… Não sei se é com isso que você trabalha…
DR.FRANCISCO: Posso vê-la?
CLARA: Ah, sim… é aqui na barriga.
DR.FRANCISCO: Interessante. E você a tem a quanto tempo?
CLARA: Já vai passar de três meses. Fui em vários médicos, todos receitam antibióticos, pomadas, cremes, ataduras… Mas nada funciona.
DR.FRANCISCO: Você se lembra de como adquiriu essa ferida?
CLARA: Aí que está… Não. Eu me lembro de quando percebi que ela estava aqui, mas de uma certa forma… anh… deixa, bobagem minha.
DR.FRANCISCO: Parece que você tinha essa ferida desde que nasceu?
CLARA: Isso! Como o senhor sabia?
DR.FRANCISCO: Você está notando lapsos de memória cada vez mais frequentes, principalmente antes de dormir?
CLARA: Sim!
DR.FRANCISCO: Você sente que a cada vez que acorda o mundo está um pouco diferente do que estava no dia anterior?
CLARA: *estática*
DR.FRANCISCO: Às vezes é algo minúsculo como um móvel num lugar diferente, às vezes é algo incrível como um prédio deixando de estar onde você lembrava?
CLARA: É… Coisas estranhas assim… Mas eu nunca disse isso para ninguém… Às vezes eu tenho a memória de ter um cachorro, mas não tem nenhum sinal nem de que eu já tive um no meu apartamento. Eu estou ficando maluca?
DR.FRANCISCO: Eu não apostaria nisso. Por favor, sente-se naquela cama e levante a blusa. Eu vou fazer um exame para confirmar se é o que eu estou pensando.

Clara, ainda atordoada pelas perguntas certeiras do médico, faz o que foi pedido e senta-se sobre a maca na sala adjacente. Com a blusa erguida, espera enquanto o Dr. Francisco prepara um dispositivo eletrônico de formato retangular, do qual se destaca uma longa antena plástica.

DR.FRANCISCO: Vou fazer uma análise do campo psicoelétrico ao redor da ferida, não vou nem encostar nela, tudo bem?
CLARA: Tudo bem.
DR.FRANCISCO: Uau, setenta e três! Gatilho interno, REM…
CLARA: É grave, doutor?
DR.FRANCISCO: Eu tenho uma boa e uma má notícia. A boa é que eu sei o que você tem, a má é que se não tratarmos isso antes de você cair no sono, existe uma boa chance de você nunca mais se curar.
CLARA: Hã?
DR.FRANCISCO: Você está sofrendo de um caso agudo de Falha da Fábrica Espaço/Tempo. Essa sua ferida na verdade é um portal multiversal ativado por ondas elétricas específicas disparadas durante seus sonhos.
CLARA: HÃ?
DR.FRANCISCO: A cada vez que você dorme e sonha, você muda de universo. Você deve estar mais familiarizada com o termo dimensão nesses casos, mas o termo científico correto aqui é universo mesmo.
CLARA: Por isso que ando tendo tanta dificuldade de acompanhar as coisas da minha vida normal?
DR.FRANCISCO: Um humano normal só pode produzir uma quantidade limitada de energia para alimentar o portal. Dentre todos os multiversos possíveis, você tende a atravessar sempre para os mais próximos, onde as diferenças são pequenas o suficiente para que você fique apenas confusa.
CLARA: Isso é muito para a cabeça. O senhor vai me perdoar, mas eu nem lembro direito de quem me indicou, e eu vou querer uma segunda opinião…
DR.FRANCISCO: Você disse que já estava a mais de três meses tentando resolver o problema, certo?
CLARA: É…
DR.FRANCISCO: E eu aposto que quem quer que tenha te indicado, o fez hoje pela manhã.
CLARA: Foi! Agora eu lembro! Foi uma amiga na academia, ela viu a ferida, a gente conversou um pouco e ela me passou o seu número. Liguei para cá e tinha essa hora.
DR.FRANCISCO: É aí que entra minha preocupação, Clara. Anomalias psicoelétricas como a da sua ferida tem uma chance infinitesimal de se manifestarem em portais multiversais.
CLARA: Tá bom…
DR.FRANCISCO: Agora, imagine as chances de cair num dos multiversos onde casos como o seu já aconteceram e já existe medicina especializada? Estive numa palestra sobre o assunto semana passada, a chance de você dormir e acordar em outro universo próximo onde médicos como eu existam é de uma em setenta e seis trilhões.
CLARA: Eu não posso dormir?
DR.FRANCISCO: Em hipótese alguma! A tendência é que essa ferida comece a consumir mais e mais da sua energia, e eventualmente te transporte para um universo onde o planeta Terra não está nesse ponto, ou mesmo não exista. Você acordaria no vácuo espacial…
CLARA: Ai meu deus… ai meu deus… por favor, não brinca com isso. Eu estou uma pilha de nervos nos últimos tempos, se isso for uma piada, diz logo.
DR.FRANCISCO: Vamos começar administrando alguns estimulantes para evitar que você caia no sono, depois você vai ter que passar pelo menos vinte e quatro horas dentro de uma câmara especial para reduzir a anomalia a níveis mais estáveis.
CLARA: *pensativa*
DR.FRANCISCO: O pior que acontece é você dormir um pouco menos e ficar entediada na câmara, e o seguro cobre.
CLARA: Juro que não quero desconfiar de você, doutor, mas deixa eu pelo menos confirmar que isso tudo é verdade. Deixa eu pesquisar na internet.
DR.FRANCISCO: Ainda tem muita desinformação nessa área. Não acredite em tudo o que o Google diz.
CLARA: Não se preocupe, só preciso tirar essa dúvida.
DR.FRANCISCO: Ok, mas faça isso no computador da recepção, não quero você longe daqui, pode ser?
CLARA: Pode… Estou indo pra lá.
DR.FRANCISCO: Tudo bem, mas eu acho que ela está dormindo.
CLARA: Ela?
DR.FRANCISCO: Clara Cortez?
CLARA: Sim?
DR.FRANCISCO: Clara Cortez?
CLARA: O que foi?
DR.FRANCISCO: Oi? *cutucando*

Clara acorda assustada na sala de espera do consultório. A atendente está bem diante de seus olhos.

CLARA: Não me cutuca!
ATENDENTE:: Desculpa… Mas o Dr. Pedro está te esperando.
CLARA: Ai, perdão! Eu tive um sonho maluco. Obrigada por me acordar.
ATENDENTE:: Por nada. É só entrar por aquela porta e seguir o corredor até a penúltima sala.

Clara se levanta, pega sua bolsa e começa a seguir rumo a sua consulta.

ATENDENTE:: O seu notebook.
CLARA: Oi?
ATENDENTE:: Você esqueceu seu notebook na cadeira.
CLARA: Ah, claro… Se a cabeça não estivesse grudada… *sorriso*

Chegando no consultório do Dr. Pedro, o médico atende de forma rápida e desinteressada. Clara acaba recebendo mais uma receita de antibióticos, uma pomada cicatrizante e uma sugestão de repouso. Aproveitando que tirou o resto do dia de folga pelo horário da consulta, volta para casa, onde é recebida por um cão muito mais interessado em sua companhia.

Ela segue o dia arrumando sua coleção de livros, tomando um longo banho de banheira, colocando em dia seus rituais de beleza… Apesar do incômodo que sua ferida insistia em causar. Depois de assistir um episódio de sua série favorita, decide dar cabo daquele sono atrasado da noite anterior e segue para a cama bem mais cedo.

Já instalada na cama, com todas as luzes apagadas, uma pequena luz azulada e intermitente começa a incomodá-la. Era seu notebook, sobre uma cadeira adjacente, ainda em estado de suspensão desde a soneca na sala de espera da consulta. Clara se levanta e abre o notebook para poder desligá-lo corretamente.

Sua face congela, iluminada apenas pela tela brilhante que exibia a página de resultados do Google:

A sua pesquisa – psicoelectrologia – não encontrou nenhum documento.

FINS

Para dizer que aposta que psicoelectrologia não passa de charlatanismo barato, para dizer que não entendeu porra nenhuma, ou mesmo para dizer que agora vai ter dificuldades para dormir: somir@desfavor.com

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Comments (36)

    • Eu ainda deixei de escrever a parte sobre conservação de energia, supernovas nada mais são do que os resultados das canetas bics desaparecidas! Do que eu estava falando mesmo?

  • Eu gostei.
    Muito bom , Somir.
    Eu achei que o texto iria caminhar para um lado, mas voce o direcionou para outro bem diferente.
    Adoro quando um texto me surpreende.

      • Fico pensando que talvez a cópia da chave, na verdade, seja a mesma chave. O fato de a termos simultaneamente talvez tenha a ver com a materialização da nossa vontade de tê-la e, no fim das contas, abramos a porta com os próprios dedos.
        Essa teoria só esbarra no fato do chaveiro ter levado minha grana.

    • Já tentei algo do gênero e recebi impropérios extremamente inadequados em resposta… mulé-não-nerd não recebe muito bem esse tipo de senso de humor. Mas pelo menos ela se depila… fico com a não-nerd.

        • É impressionante a capacidade de alguém em SÓ argumentar usando falácias. EU não consigo de jeito nenhum…! Pago muito pau ._.

          • Se ainda fossem falácias inteligentes… mas é sempre essa coisa de nível primário. É divertido quando o pau come de forma inteligente… agora esse nível de “você é chato, você é feio, você fede, é a sua mãe, eu acredito em gnomos e ninguém tem nada com isso”… Porra Larissa, se esforça um pouco mais, vai?

      • Ao ler o comentário pensei o que leva uma pessoa que não gostou a se dar o trabalho de se manifestar. Ainda mais sabendo que será esculachada.
        Tem que ser muita falta de amigos para conversar, muita falta de vida social. Não consigo encontrar outra explicação.

  • Sabe aquela sensação de quando termina de assistir a alguns filmes e pensa: “…Não sei o que pensar…”

    Pois…

    • Talvez amanhã você saiba o que pensar. Ou talvez nem precise mais… imagina a probabilidade deste texto ser escrito de novo?

  • A Sally, e a Larissa, devem ter achado esse texto incrivelmente chato. Pra mim, foi nerd justo na medida.

    Somir, de curiosidade, você já jogou, ou gosta de jogar, Mago?

    • Nunca joguei. Sempre tive uma curiosidade, até baixei o livro quando estava na fase de jogar Vampiros (antigo WOD), mas nunca achei um grupo que “desse conta” de uma narrativa tão viajada.

      • Idem, Somir. Mas já cheguei a fazer um prefácio. Tem MUITO potencial, se o grupo for decente. Acho que, de todos os rpgs que já vi, esse é o que dá mais liberdade à pessoa de ela fazer o que bem entender, dentro de suas limitações. Inclusive tenho o livro da terceira edição… É, de fato, o melhor estimulante criativo que eu já vi.

  • Sabe que isso já me veio a cabeça? Uma ideia um tanto quanto matrixzada, talvez, mas e se, cada vez que acordamos, acordamos em um universo diferente, com memórias diferentes? Nunca saberíamos, exceto por uma ou outra memória fora do lugar… como se alguém não tivesse apagado ou refeito direito. Deja vu? Acho que poucas coisas me dão mais curiosidade que o fato de você ter CERTEZA de estar acontecendo um fato que não lhe é estranho. Alguns meus são tão fortes que eu consigo, levemente, claro, prever o que a pessoa vai dizer.

    Erro na Matrix?

    • Até onde eu me lembro, e com o apoio do Dr. Google: Deja vu é um bug da memória até que bem explicado: A informção pula a etapa da memória de curto prazo e acaba armazenada na área de longo prazo, o que passa a sensação de que o fato já ocorreu antes de acontecer. Existem condições neurológicas específicas que aumentam a quantidade dessas experiências, por isso é mais seguro dizer que isso ocorre dentro do cérebro.

      Se nos perdemos entre multiversos, o buraco ainda está mais embaixo. O que eu, pessoalmente, acho ainda mais bacana. Tem a teoria da “projeção” ainda, onde o universo não passa de uma ilusão e a manifestação física da matéria/energia não está onde achamos que está.

      • Chegou a ver este lance de que existem cientistas que estão tentando juntar evidências pela desconfiança de que realmente podemos estar vivendo numa Matrix?

        É essa teoria da ‘projeção’?

        • Seria uma Matrix mais “fundamental”, baseada nas próprias leis da física. Já vi essa teoria algumas vezes em livros e documentários sobre Teoria das Cordas.

          Tem uma palestra/video bacana do Michio Kaku que eu ACHO (memória falhando, acho que estou pulando de universo) que menciona isso. Aquele documentário da Discovery com o Morgan Freeman também tem uma parte sobre isso.

      • interessante as opiniões sobre o Deja vu… geralmente os céticos, ateus etc nem cogitam coisas como “o universo pode ser uma ilusão” e etc etc…

        • Você está confundindo Ateu com cético. Geralmente, céticos são Ateus, mas nem todos os Ateus são céticos. Considero, e MUITO, uma probabilidade de que haja alguma coisa além da minha imaginação que está por detrás de tudo… mas nem por isso sou burro nem desesperado o suficiente para pensar que é um Deus “bonzinho” que fica cuidando da nossa vida e amedrontando todo mundo que pense o contrário.

          A física é uma coisa muito extensiva, e a ciência ainda um pequeno gafanhoto, para dizer que não há probabilidades de universos ilusórios ou de teias de realidade distintas.

      • Entendi… nunca havia pesquisado a fundo sobre Deja Vu antes, e ninguém nunca tinha me dado uma explicação coerente… mas de fato, faz muito sentido isso!

        E, referente à teoria da projeção, eu agora tenho certeza: você deveria jogar Mago. Ou, pelo menos, ler o livro. Principalmente sobre a esfera da correspondência. É um pouco juvenil, mas o conceito é BEM interessante.

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