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Des Contos: Linhas inimigas.

| Somir | | 4 comentários em Des Contos: Linhas inimigas.

desc_linhasinimigas

O sol está a pino sobre as trincheiras no fronte ocidental da Zona Contestada da Nova Zargônia. Dois soldados se acotovelam na disputa pela limitada área de sombra formada por um jipe encalhado entre as paredes de terra sobre suas cabeças.

SOLDADO: Sai pra lá, Orelha!
ORELHA: Porra, Binho, você ficou aí embaixo a manhã toda…
BINHO: Isolação é uma das causas mais frequentes de quebra de concentração…
ORELHA: Blá, blá, blá… Todo mundo viu aquele vídeo. E é insolação, não isolação! Não quero explicação, quero ficar na sombra! Mexe!
BINHO: Tá, tá… *movendo-se*, vem cá, você tem água no seu cantil?
ORELHA: Não. Mandaram o Batata trazer uns baldes lá do poço. Mas ele está demorando…
BINHO: Você acha que eles pegaram o Batata?
ORELHA: Pegaram como? A gente não ouve um tiro há quase duas semanas… está na cara que eles também ficaram sem munição.
BINHO: Tá, mas eu ouvi dizer que eles são bem perigosos atirando pedras.
ORELHA: Faz sentido… tudo o que tem nesse maldito lugar é terra e pedra.
BINHO: A gente não poderia simplesmente entregar essa área para o inimigo? Não é perto de nada, não chega a lugar nenhum… Deixa eles se foderem debaixo desse sol desgraçado!
ORELHA: E fazer algo inteligente? Não, nossos líderes não vão correr esse risco.

Duas horas se passam sem novidades no fronte. Binho e Orelha alternam cochilos com sessões de empurra-empurra. Assim que um é deslocado para fora da sombra, acorda e retorna ao posto anterior, recomeçando o processo. Quando eventualmente os dois encontram uma posição confortável:

VOZ: SEUS VERMES! ACORDEM!
ORELHA: Hã?
BINHO: Mais cinco minu… *olhando* Capitão!

Os dois se recompõem de pé. Pelo menos o máximo de pé possível sem sair debaixo do jipe encalhado por sobre a trincheira.

CAPITÃO: Um avião dos nossos vai soltar uma caixa de munição de paraquedas…
BINHO: Paraquedas usa munição?
CAPITÃO:
ORELHA: Muito sol na cabeça, Capitão. E o senhor há de admitir que mesmo assim não tinha lá muito o que fritar pra começo de conversa… *cutucando o capacete de Binho*
BINHO: É… hã?
CAPITÃO: Então preparem suas sombrinhas, meninas. Vocês estão escalados para fazer a captura da caixa.
BINHO: Tem água na caixa?
CAPITÃO: *olhando para Orelha*
ORELHA: Sol. *sussurrando*
CAPITÃO: *suspiro* De qualquer forma, já posso ouvir as turbinas do avião, ele deve soltar a carga há uns dois quilômetros atrás de nossas linhas, numa área segura. A sua missão é sair pelo corredor A2…

O avião vai se aproximando, agora visível a olho nu.

CAPITÃO: …seguir pela área protegida C…

O avião não parece desacelerar.

CAPITÃO: …evitando serem avistados…

O avião passa por cima da trincheira com o capitão e os soldados. Os três olham para cima.

CAPITÃO: …montar a estrutura…

Orelha sobe uma escada improvisada, pega seu binóculo num dos bolsos do uniforme e começa a descrever a cena:

ORELHA: Capitão, o avião está soltando a carga agora. Posso ver o paraquedas abrindo… A carga está pousando… atrás… atrás das linhas inimigas.
CAPITÃO:
BINHO: Eu disse que as bandeiras eram parecidas, não disse? Esses caras da aeronáutica quase nunca aparecem por esses lados. Se a gente tivesse escolhido a bandeira com o coelhinho, como eu disse…
ORELHA: Até parece! Ninguém levaria a sério um regimento chamado “Coelhinhos!”…
BINHO: Mas é bom que diferencia. Todo mundo escolhe bichos perigosos, e como a única coisa que tem mais do que pedra aqui é escorpião, claro que eles também iam fazer uma band…
CAPITÃO: Calem a boca! Os dois…
BINHO:
ORELHA:
CAPITÃO:
BINHO: Também tem bastante cobra por aqui.
CAPITÃO: Eu odeio a minha vida.
ORELHA: Capitão, não tinha só munição na carga… Eles estão abrindo agora. Olha, tinha mantimentos… água!
BINHO: Ahá! *olhando para o capitão*

O capitão senta-se sob a sombra do jipe encalhado, pernas recolhidas e expressão distante.

ORELHA: Filhas-da-puta! Eles estão brincando com a água! Eles devem saber que a gente está vendo.
BINHO: Joga uma pedra neles!
ORELHA: Cala a boca, Binho!

Binho se abaixa, pega um pedregulho. Juntando toda sua força, arremessa-o para fora da trincheira na direção dos inimigos.

BINHO: Pegou neles?
ORELHA:
BINHO: Hein?
ORELHA: Não, Binho, não pegou neles. Se quiser tentar de novo, eu posso esticar o braço e pegar a pedra de novo para você.
BINHO: Não precisa, achei outra.
ORELHA: Eu estava sendo sarcás… Binho! NÃO! CARALHO! ISSO NÃO É UMA PEDRA!
BINHO: TOMA! *arremessando*

Orelha se joga do algo da escada para o fundo da trincheira, durante a queda agarra-se em Binho, derrubando-o junto ao chão. Assim que tocam o solo, ouve-se uma explosão. A trincheira os protege dos estilhaços, mas parte da parede de terra cede, soltando o jipe previamente encalhado.

BINHO: Pegou? Pegou neles?
ORELHA: Não, Binho, não pegou neles.
BINHO: Mas foi uma puta de uma pedrada, admite!

Orelha não dignifica o comentário com uma resposta. Prevendo a bronca do capitão, já se volta para trás para começar um pedido de desculpas.

ORELHA: Capitão, foi um… Opa.
BINHO: O braço saindo debaixo do jipe é… é?
ORELHA: Se alguém perguntar, foi o inimigo que arremessou a granada, entendeu?
BINHO: Mas não foi?
ORELHA: A ignorância é uma benção! Vem, vamos sair de perto daqui.

Algumas horas mais tarde, em outra trincheira, Orelha está visivelmente incomodado com a ordem que acabara de receber pelo rádio:

ORELHA: Sério?
VOZ NO RÁDIO: *ininteligível*
ORELHA: Irmão influente?
VOZ NO RÁDIO: *ininteligível*
ORELHA: Mas…
VOZ NO RÁDIO: *ininteligível*
ORELHA: Ok, ok, eu só precisava ter certeza. Ok… eu sei que é a sexta vez que eu confirmo… Ok… Tudo bem. Mas é certeza meeee…

O rádio fica sem sinal. Binho se aproxima.

ORELHA: Isso é uma piada.
BINHO: Ah… ah… aaaah!
ORELHA: *bufando* Isso é uma piada, senhor!
BINHO: *sorrindo*
ORELHA: E o que fazemos agora, Capitão Binho?
BINHO: Estou com sede. Notícias do soldado Batata?
ORELHA: Ele estava voltando com dois baldes do poço quando foi surpreendido pelo inimigo.
BINHO: Mataram ele?
ORELHA: Pior, atiraram nos baldes e ficaram rindo.
BINHO: Selvagens! Vamos retalhar!
ORELHA: Retaliar.
BINHO: Foi o que eu disse. Vamos atacar aqueles malditos, em nome da Rainha!
ORELHA: Rainha?
BINHO: A gente não tem uma Rainha?
ORELHA: Não.
BINHO: Eu acho que sim… Pergunta para o capitão.
ORELHA:
BINHO: Ah… é… então… bom, se eu sou o capitão e é o capitão quem sabe se temos uma Rainha… então temos uma Rainha. E vamos lutar por ela!
ORELHA: Tá… tudo bem… vamos seguir em frente. Binho, não temos munição. Você viu a caixa caindo do lado do inimigo.
BINHO: Mas nós temos pedras.
ORELHA: Senhor… pedras não vão nos ajudar muito contra metralhadoras e rifles.
BINHO: Verdade. Mas sabe o que também temos bastante aqui?
ORELHA: Escorpiões?
BINHO: Escorpiões!
ORELHA: Ok… E?
BINHO: E se nós amarrássemos escorpiões nas pedras que jogarmos?
ORELHA: Sem ofensa, senhor… mas… o plano tem alguns problemas.
BINHO: Verdade, estamos quase sem cordas. Então vamos voltar para o plano original e atirar neles, ok?
ORELHA: Estamos sem… Argh… Senhor, entenda que…

Uma grande explosão pode ser ouvida. Parece vinda detrás das linhas inimigas. Orelha corre para o ponto de observação mais próximo. Capitão Binho o acompanha. Novamente posicionado com seu binóculo, Orelha começa a descrever a cena para seu recém nomeado superior.

ORELHA: Senhor, tem uma grande nuvem de fumaça e destroços por lá. Parece que um dos tanques… é… um dos tanques deles explodiu. Uau! Tem muitos deles feridos… Estavam dando uma festa, eu acho.
BINHO: Bem feito!
ORELHA: Peraí… eles… eles estão jogando alguma coisa fora… Ué… a munição! Eles estão jogando a munição fora! Estão todos machucados e sem munição agora!
BINHO: SOLDADOS! PEGUEM QUANTAS PEDRAS E ESCORPIÕES PUDEREM! PELA RAINHAAAAA!

Algumas semanas depois, após uma cerimônia oficial de nomeação:

ORELHA: Binho…
BINHO: Ah… ah… aaaah!
ORELHA: Coronel Binho…
BINHO: Melhor. Gostou do uniforme?
ORELHA: Só ficaria melhor com alguns círculos vermelhos, senhor.
BINHO: Você acha? Ah, esse aqui é o meu irmão, Juan! Ele é muito importante no exército, sabia?
ORELHA: Ah é… E o que você faz?
JUAN: Sou dono da maior fábrica de munição do país.

Fim.

Para dizer que está surpreso(a) pela falta de surpresas, para reclamar que a história não tem moral, ou mesmo para dizer que se cagaria de medo de um exército atirando pedras com escorpiões: somir@desfavor.com

Comentários (4)

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