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Des Contos: O dono do mundo.

| Somir | | 7 comentários em Des Contos: O dono do mundo.

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Um livro distribuído de forma clandestina vem chamando a atenção de muita gente ultimamente. Mas ao invés de gritar “conspiração” como vários de meus colegas de profissão, pretendo me ater apenas aos fatos apurados sobre o assunto. E não se pode falar desse livro sem mencionar seu autor primeiro:

Michel ficara conhecido no meio jornalístico por suas matérias precisas sobre os bastidores do poder. Diversos prêmios decoravam as prateleiras na sala de seu acanhado apartamento, alguns até mesmo internacionais. O sucesso de crítica, como sugerido pelo adjetivo utilizado para qualificar sua moradia, não significava exatamente sucesso de público.

Apesar de acertar no alvo em suas denúncias, o teor mais realista de sua abordagem jornalística não o ajudava a vender mais revistas e jornais. Segundo seus últimos três editores, o consumidor médio da mídia de massa preferia histórias com um pouco mais… estimulantes à imaginação. Ou, num mundo sem eufemismos, mentiras e futilidades.

E Michel não estava disposto a se rebaixar apenas para tornar seu trabalho mais palatável para a massa desejosa por alienação. A combinação de excelência profissional com uma estrutura ética inabalável acabava criando, vez após vez, a condição determinante para sua alta frequência de recolocações profissionais. Contratar Michel conferia status, mas mantê-lo empregado não era tão vantajoso assim.

Sua última “saída amigável” rendeu um longo período de “tempo para si mesmo”. Mas com as contas empilhando, aspas não seriam o suficiente para aliviar a situação. As constantes mudanças ocasionadas por sua dificuldade de manter um emprego também cobraram um salgado preço em sua vida pessoal. Separado de sua ex-mulher há mais de uma década, alienado do crescimento de seu único filho, praticamente um estranho em reuniões familiares…

Tudo isso é importante para essa história. Michel gastou a maior parte de sua felicidade e saúde pagando por sua integridade. A decisão de escrever o best-seller traduzido em trinta línguas diferentes e com sua décima nona edição esgotada na maioria das livrarias foi uma das mais difíceis de sua vida. O livro em questão se chamava “O Dono do Mundo”. Fracasso de crítica, sucesso retumbante de público.

Utilizando-se de sua experiência nos mais altos círculos de poder, tanto de sua terra natal como de vários outros países, Michel foi capaz de criar um fantástico e assustadoramente verossímil relato sobre o misterioso Sr. F e seu papel como homem mais poderoso do mundo. Sr. F., segundo o livro, dava as cartas nas maiores corporações do mundo e tinha os líderes dos maiores exércitos e economias do planeta em seus bolsos.

Não bastasse isso, tinha sob seu poder tecnologias secretíssimas, algumas até mesmo emprestadas de vizinhos cósmicos. Com o apertar de um botão, Sr. F poderia desencadear uma série de desastres naturais, começar uma guerra apocalíptica, quebrar economias inteiras, conseguir os segredos mais íntimos de qualquer pessoa… Sr. F. tinha um plano, mas seus subordinados dele nada sabiam além de suposições vagas e retalhos de informações conquistados a duras penas.

O cuidado incrível com detalhes e a forma como Michel conseguira costurar fatos cotidianos e desconfianças do cidadão médio numa grande colcha conspiratória foram decisivos para tornar Sr. F. numa celebridade global. Mesmo que ninguém fosse capaz de provar nada. Mas segundo Michel, não se prova nada contra alguém que controla todas as informações…

Intelectuais e críticos, que antes concediam troféus e discursos elogiosos sobre seu trabalho, agora se resumiam a conceder farpas e escárnio. O livro de Michel era considerado literatura barata para a massa incapaz de reconhecer qualidade. Fabricações de um homem desesperado por uns trocados e lenha na perigosa fogueira dos malucos que enxergavam conspirações até mesmo em suas sombras.

Evidente que nada disso abalava a fé de seus fãs. Suas sessões de autógrafos criavam filas que davam voltas no quarteirão, suas entrevistas cada vez mais concorridas, pedidos desesperados da editora por novos livros… Difícil argumentar sobre as benesses da integridade quando seu abandono começa a render milhões. Michel nunca demonstrou nada além de convicção na sua biografia não-autorizada do suposto líder de todas as conspirações globais.

Apenas um ano depois do lançamento, a obra já estava comprada por um grande estúdio de cinema. Junto com os dividendos oriundos das livrarias, a fortuna pessoal de Michel já chegava aos milhões. E é aqui que eu quero que vocês prestem mais atenção: Antes de se mudar para sua ilha particular, ele gastou boa parte de seu patrimônio comprando ações de uma proeminente fabricante de armamentos. Que nem tão curiosamente acabou fechando o maior contrato de fornecimento para um grande exército meses depois.

Pelo o que sabemos, o passado de Michel como jornalista político o deu acesso a informações privilegiadas sobre a estratégia de ocupação do maior exército do mundo nos anos seguintes. Quando começou a guerra, seus milhões viraram bilhões. E esses bilhões não foram utilizados apenas para montar uma fortaleza ao redor de sua isolada residência, eles viraram mais e mais ações, de inúmeras empresas que se valorizaram de forma espetacular pouco tempo depois. Curioso que sempre depois de algum boato mencionando o interesse de um tal de Sr. F. na compra delas.

Claro, isso nunca veio realmente ao grande público. Através do depoimento de uma testemunha muito próxima a Michel, ele conseguira desmembrar sua corporação em inúmeras empresas virtualmente desconectadas de sua pessoa. Ele sempre aparecia na lista dos mais ricos do mundo, mas nunca com seu real valor de mercado. Numa das antigas que conseguimos preservar, sete dos dez mais eram diretamente ligados a Michel. Na época ninguém sabia, quer dizer, ninguém além de alguns “malucos” cuja palavra não carregava muita confiabilidade.

E a exposição exagerada na mídia já estava no passado. Não se passaram mais do que cinco anos do lançamento do livro para que nenhum meio de comunicação fosse sequer capaz de chegar perto da ilha onde passava seus dias recluso. Para o grande público, Michel havia se tornado um multimilionário excêntrico com medo de se expor. Na realidade ele já era um quase trilionário capitaneando uma megacorporação secreta, com participação ativa desde a produção de insumos básicos até mesmo eletrônicos de última geração e equipamento militar.

Até por isso, sua morte não ganhou muito destaque na mídia. Fãs fizeram belas homenagens, mencionaram o belo gesto de doar quase toda sua fortuna declarada para a caridade, mas nada que rendesse reportagens de grande duração. Ajudou nessa falta de interesse midiático o fato de que mulher, filho e parentes mais próximos ou não foram encontrados, ou se recusavam a dar entrevistas. Além disso, a certidão de óbito confidencial e o enterro em local não revelado impossibilitaram qualquer outra forma de aproximação de jornalistas e curiosos.

A memória de Michel se esvaiu rapidamente da mente do público. Até mesmo porque com a Terceira Grande Guerra Mundial acontecendo um ano depois, não havia mais muito espaço para outros assuntos. A Guerra todos sabemos como acabou… As crianças de hoje sequer entenderiam o mundo de antigamente. Muitas concessões foram feitas em nome da paz, cedemos de bom grado boa parte da liberdade que tínhamos em troca de um futuro.

Sabemos como a Guerra acabou, mas muito pouco ainda se diz sobre como ela começou. Aquele ataque nuclear ainda não faz sentido, principalmente da forma como ocorreu. Entendo que fizemos um compromisso para virar a página, mas algumas das palavras da página anterior ainda não formam uma sentença. E espero que minhas nem tão discretas insinuações não sejam vistas como um desafio ao regime de sucesso organizado pelo General Ferdinando.

Temos a civilização de volta, e por isso somos todos gratos, mas um dos pilares dos nossos melhores momentos como sociedade estava na liberdade de expressão, na capacidade de questionar e sanar nossas dúvidas. O acesso aos registros militares prévios à Grande Guerra nos ajudariam imensamente a dirimir quaisquer suposições sobre suas motivações e ajudar nesse difícil processo de reconstrução, tão ligado à confiança do povo em seus líderes.

O povo quer saber. Os boatos sobre as plásticas realizadas antes do acordo de paz também não ajudam. Sem uma versão oficial, muitas pessoas vão continuar distribuindo o livro de Michel, mesmo sob o risco de sanções legais, como as promulgadas recentemente.

Não peço a verdade apenas pela minha curiosidade jornalística, peço-a por me preocupar com esta grande civilização. A verdade nos libertará.

NOTA DO EDITOR: Ficou maluco? Essa porra de editorial nunca vai passar pela censura! E mesmo se passasse, não passaria por mim… Muito chato. Eu não te mandei escrever sobre o novo reality show “Três seios”? Seu salário é alto demais para você ficar perdendo tempo!

Para dizer que está desconfiando que eu mudo de ideia sobre o texto no meio do texto, para pegar a referência e ganhar meu respeito, ou mesmo para dizer que já sabia de tudo isso faz tempo: somir@desfavor.com

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