Skip to main content

Colunas

Arquivos

Des Contos: In nomine domini…

| Somir | | 8 comentários em Des Contos: In nomine domini…

desc_nomine

Jequitibá da Serra era a típica cidade interiorana criada apenas para abrigar cargos públicos: Composta de sítios, chácaras e pequenas fazendas; a única coisa que lembrava um ambiente urbano era a rua central, dotada de uma desabastecida mercearia, uma modesta igreja e um casarão caindo aos pedaços batizado como paço municipal. Quem quer que ficasse doente deveria enfrentar duas horas de estrada de terra em busca de tratamento na Santa Casa da cidade vizinha.

O jipe velho que desbravava essa estrada estava voltando justamente com uma paciente que recebera alta naquela manhã.

“Tem certeza que tá bem, fia?” – Dona Leonor, cuja idade estimava-se entre a quarta e a quinta década de vida, segura a mão de sua filha tentando compensar os constantes solavancos do terreno acidentado.

“Tô sim, mãezinha…” – A jovem Matilde reforça a mensagem com um sorriso acentuado pelo retorno da cor às suas bochechas.

“Eita porra!” – Vantuir, o dono da mercearia e normalmente o único motorista disponível no município, digladia-se com uma direção pouco responsiva enquanto tenta desviar de mais um buraco.

“Óia a boca, Vantuí! Tem criança aqui, ô!” – Dona Leonor imprime um tom reprovador.

“Descurpa!” – Vantuir se volta para trás e sorri para as duas.

“Mãe, eu já tô grandinha…” – Matilde retruca.

“Cê nunca vai tá grandinha dimais pra num sê minha minina!” – Dona Leonor abraça a cria, não sem antes tascar um beijo carinhoso em sua testa.

“Só espero que você não ignore meu óbvio desenvolvimento físico e intelectual.” – Matilde diz enquanto se aninha nos braços da mãe e fecha os olhos.

Vantuir se vira novamente e olha de forma de forma preocupada para Dona Leonor. Com um leve aceno de cabeça, parece perguntar se ela quer voltar. Dona Leonor pensa por alguns segundos e responde que não, também de forma gestual. Ninguém mais diz uma palavra durante a viagem.

Depois de vários minutos, os longos campos dão lugar a uma clareira de tijolos e telhas. Eles estavam de volta à sua cidade. Vantuir estaciona em frente à mercearia e pede alguns minutos para pegar uma entrega que faria nas proximidades do sítio onde as duas moravam. Matilde continuava dormindo.

O jipe, sem cobertura, deixava ambas à plena vista do homem de batina que se aproximava.

“Boa tarde!” – O padre Percival, recém-chegado para cuidar da igreja local, reclina-se na porta do veículo.

“Bença, padre!” – Dona Leonor estica as mãos em direção ao padre Percival, que gentilmente as acolhe entre as suas.

“E como está a menina? Fiquei sabendo agora de pouco que você saiu correndo pela manhã junto com o Vantuir.” – Continuou.

“O dotô disse que ela num tem nada dimais e devia de sê só cansaço… Graças a Deus!”

“Mas o que foi que aconteceu? Ela passou mal, desmaiou?”

“Ela começo a falá umas coisa estranha, padre… Nem parecia minha fia…”

“Coisas estranhas… coisas estranhas como?” – O padre solta as mãos de Dona Leonor.

“Ah num sei dizê direito… Mais falava difícil, umas palavra enorme que eu nunca tinha ovido antes!”

“Parecia que estava falando uma língua diferente?”

“É! Cê sabe que doença é essa?”

“Não tenho certeza ainda…”

Nisso, Vantuir sai de dentro da mercearia com um pacote. Ao se aproximar, cumprimenta padre Percival com uma leve reverência. O sacerdote abre espaço enquanto o homem adentra o veículo. Ao sentar-se no banco da frente, o jipe balança o suficiente para interromper o sono da jovem Matilde.

“Hnn… Já chegamos? Quero o conforto de minha própria cama.”

“Indanão, minina… discansa, discansa…” – Dona Leonor novamente a acolhe entre os braços, ninando sua filha. Ao certificar-se que Matilde havia fechado os olhos novamente, volta o olhar preocupado para o padre.

“Vão indo, eu preciso pesquisar em alguns livros que eu trouxe comigo da capital… Se for o que eu estou pensando, eu acho que posso ajudá-la.” – Padre Percival tenta manter um semblante confiante, mas não é o suficiente para retirar a expressão tensa dos outros dois ocupantes do veículo.

Pouco depois, Vantuir dá a partida e deixa para trás a cidade, deixando para trás uma nuvem de poeira e um padre aparentemente perdido em seus pensamentos. Ao finalmente chegarem ao destino, Matilde parece mais disposta, desembarcando sem dificuldades. Após uma breve despedida, Vantuir segue seu caminho.

Na frente da casa:

“Não mi assusta mais anssim!” – Dona Leonor diz num misto de imperatividade e ternura.

“Não se preocupe, mãe. O que está acontecendo comigo não é de forma alguma perigoso, creio que possa contribuir com a elevação de nosso padrão de vida nos anos vindouros.” – Matilde sorri antes de entrar.

Dona Leonor fica parada ali por mais alguns segundos, tentando fazer algum sentido do que acabara de ouvir. Reconhecendo a derrota, suspira e segue o caminho da filha.

Algumas horas mais tarde, o jipe de Vantuir chega apressado. Com uma freada brusca, levanta a terra batida e anuncia sua aproximação de forma inequívoca. O padre Percival salta do banco do carona de forma atabalhoada, claramente nervoso. Mas nem mesmo o desequilíbrio momentâneo é capaz de atrasar sua entrada na casa.

“Vai logo, Vantuir!”

“Já to ino, padre, já to ino…”

O casebre não deixa dúvidas sobre a pobreza vivenciada pelas duas. Ao atravessar a porta aberta, padre Percival começa a chamar por Dona Leonor. Nenhuma resposta.

“A gente chegamo tarde dimais?” – Vantuir coloca as mãos na cabeça após voltar de uma rápida inspeção nos poucos cômodos disponíveis.

“O poder de cura de Deus nunca chega tarde demais! Eu desconfio onde elas podem estar… Vamos!” – Padre Percival apressa Vantuir a voltar para o carro. Os dois seguem a estrada de terra em alta velocidade.

Alguns minutos depois, deparam-se com a mansão do Coronel Felizardo, de longe a construção mais luxuosa da região. O largo portão na entrada da fazenda estava aberto, sem ninguém para checar visitantes como seria de costume. O padre salta novamente do jipe, seguindo um passo apressado em direção à entrada da mansão. Vantuir, incentivado pela sangria desatada do emissário divino, acelera para acompanhar.

As grandes portas de madeira nobre estão entreabertas. Os últimos raios de sol do dia invadem o hall de entrada, as luzes da casa estão apagadas. O padre abre uma das portas cautelosamente, pedindo silêncio para seu acompanhante. Lá dentro pode-se ouvir o som de algumas vozes vindas do andar superior. Padre Percival e Vantuir sobem as escadas de forma vacilante.

Ao chegar ao segundo andar, percebem pela luz escapando pelas frestas de uma porta que apenas uma das salas está iluminada. As vozes vem de lá. Não se pode depreender muito do conteúdo das frases, parecem incoerentes. O padre segura a cruz que adorna seu peito, respira fundo e abre a porta com um movimento brusco.

“Em nome de Deus, o que está acontecendo aqui?”

Dentro da sala, na verdade uma espaçosa biblioteca, estão oito pessoas. Dona Leonor, Matilde, Coronel Felizardo, seus dois filhos e mais três trabalhadores locais, incluindo o vigia que não estava onde deveria há alguns minutos atrás. Todos mudos, imóveis, encarando o padre de volta.

Padre Percival começa a prestar mais atenção na cena. Todos estão segurando livros… Vantuir, que acabara de entrar, não resiste a quebrar o silêncio:

“O qui qui cês tão tudo parado aí?”

“Vocês todos, não vocês tudo. Concordância é muito importante, meu caro Vantuir!” – Genislene, empregada doméstica da casa e eventual caso do dono da mercearia, diz com uma segurança professoral.

“Ai meu Jesuis amado! É verdadi mesmo, sêo padre!” – Vantuir se esconde por detrás de padre Percival, que demonstra mais coragem diante da situação:

“Eu deveria ter percebido antes. Foi a garota que enfeitiçou vocês, não?”

“Oras, padre Percival, feitiços são mera fabricação da mente humana. Posso garantir que nenhum dos presentes encontra-se em tal condição.” – Coronel Felizardo diz enquanto folheia um pesado volume de Guerra e Paz.

“E pensar que esta obra-prima sentou-se aqui juntando poeira por tantos anos. Arrependo-me de não ter cedido aos prazeres da leitura mais cedo.”

“Vocês precisam ser exorcizados antes que isso se espalhe mais ainda! Isso não é natural!”

“Defina natural.” – Dona Leonor interrompe sua leitura de Assim Falou Zaratustra para interceder.

“Natural é a vontade de Deus! Saiam desses corpos, o poder de Cristo os compele!” – Padre Percival estica o braço direito e espalma a mão de forma teatral.

“Oras, com todo o respeito pela sua opinião, devo ressaltar que seu ponto de vista apresenta uma série de contradições… Podemos começar com a incoerência entre o conceito de naturalidade e… e…” – A argumentação de Matilde não se completa devido a uma súbita tonteira.

“O coisa ruim tá saino dela! Graças a Deus! Padre, tá funcionando! Creio eu… Não, espera… Não foi exatamente isso que aconteceu. Aparentemente eu fui acometido da mesma condição que os outros presentes.” – Vantuir até muda de postura enquanto fala, ombros mais eretos e queixo erguido.

Padre Percival fica pálido. Instintivamente recua um passo enquanto sussura algumas palavras estranhas para a cruz que segura firmemente entre os dedos.

“Não, padre, não tenha medo. Agora eu entendo perfeitamente… Não desejamos o mal de ninguém. E muito menos estamos possuídos. Na verdade…” – Vantuir olha para trás, como se pedisse confirmação dos outros. Matilde sorri e acena positivamente com a cabeça.

Uma grande explosão destrói a casa imediatamente, levando consigo as vidas de todos os presentes.

FIM
(ô diacho!)

Para dizer que vai sugerir uma punição ainda maior depois deste texto, para reclamar que minhas histórias nunca terminam direito, ou mesmo para falar que o diabo está nos detalhes: somir@desfavor.com

Comentários (8)

Deixe um comentário para Phill Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado.