Skip to main content

Colunas

Arquivos

Ele disse, ela disse: O ritual da discórdia.

| Desfavor | | 66 comentários em Ele disse, ela disse: O ritual da discórdia.

eded-rituais

Com um cérebro programado para perceber e analisar padrões, o ser humano sempre teve uma queda por rituais. Muitos deles baseados na esperança de trazer sorte e/ou confiança para o que se pretende fazer. Sally e Somir discordam sobre as benesses desses rituais. Os leitores seguem a rotina de comentar…

Tema de hoje: Rituais e superstições para trazer sorte e confiança são demonstrações de ignorância?

SOMIR

Sim. Quem ignora a falta de relação entre a superstição e o resultado concreto está sendo ignorante, ou pior: Escolhendo a ignorância. Não existe nenhuma evidência concreta ou mesmo lógica na ideia de que repetição aleatória de alguma ação, gesto ou palavras de forma ritualística (e supersticiosa) tenha qualquer relação com resultados positivos para quem os faz por si só.

E por experiência nessa discussão, já posso tratar dos argumentos mais comuns do lado “ritualista”. Em primeiro lugar, se você acredita em mágica, não tem lugar numa discussão racional sobre o assunto. A infância termina eventualmente e é patético que adultos fiquem estacionados nesse grau de compreensão do mundo. A partir da premissa que mágica existe, QUALQUER coisa é possível. Apesar de eu te achar ignorante, esse nem é o problema: Mágica faz qualquer discussão virar conversa de maluco, já que o argumento a favor de algo é tão possível quanto o que o invalida.

Partindo da premissa que não estou escrevendo para crianças ou para malucos, mágica não existe. Existe muito mais entre o céu e a terra que julga nossa vã consciência, mas não é festa! Milhões de pessoas por milênios tentaram provar a existência de influência do pensamento nas leis da física, mas todos deram com os burros n’água. E para os mais espertinhos: Até mesmo o princípio da incerteza não menciona a relação direta, e sim demonstra a impossibilidade da medição. Coisas diferentes.

O mais próximo que a turma dos rituais, superstições e religiões coseguiu chegar de algo comprovável na vida real foi o efeito placebo. A influência da crença em algo na manifestação de efeitos físicos e/ou psicológicos. Sim, ele existe, mas só te leva até certo ponto… Assim como preces, não consegue realizar impossibilidades ou mesmo improbabilidades. Nenhum placebo desse mundo faz membro amputado crescer de volta… Nenhuma superstição vai te fazer mover um objeto fisicamente com a força do pensamento…

E, vamos ser razoáveis: Um efeito que deixa de existir se você estiver consciente dele tem muito mais a ver com ilusão do que com causalidade. Céticos não enxergam fantasmas. O efeito placebo DEPENDE da ignorância sobre sua existência! Se você vai defender essa ideia como contra-argumento para a minha afirmação de ignorância, faça o favor de saber sobre o que está falando. Efeito placebo É ignorância.

Mas vamos além… Boa parte das pessoas que segue um ritual ou superstição (estou repetindo “superstição” porque aposto que minha CARA vai suprimir a palavra para tentar vencer a discussão) não acredita piamente nisso. Faz “por desencargo de consciência”, já que acha que mal não vai fazer. E esse é o segundo argumento mais comum… A maldita ideia de que essa ignorância seletiva é inofensiva.

Ignorar a realidade e agir de forma irracional é inofensivo desde quando? Muitas das piores coisas que já aconteceram com a humanidade foram resultado direto desse desdém pela racionalidade. Ao contrário de que gente que ganha dinheiro em cima da ignorância adora dizer, o ser humano é muito mais justo e altruísta quando está no controle do seu processo intelectual. Países onde a educação é levada a sério são mais pacíficos e acolhedores do que os onde a mentalidade supersticiosa é mais comum!

Se você dá três pulinhos antes de ir para uma reunião de negócios, você não está ferindo ninguém, mas está perpetuando a ignorância seletiva que pode e é usada contra o desenvolvimento da sociedade humana. A “habilidade” de criar falsos positivos é uma falha do cérebro humano explorada à exaustão durante nossa história. Os rituais insanos de TODAS as religiões nada mais são do que reforço inconsciente de uma ideia de que você pode levar vantagem na vida fazendo coisas completamente irrelevantes e arbitrárias. Desmotiva a busca de relações racionais entre os acontecimentos e facilita o trabalho de quem quer enganá-las.

E ao agir dessa forma supersticiosa, você acaba reforçando em outras pessoas ao seu redor a validade dessa falha óbvia de compreensão da realidade. As pessoas se sentem mais à vontade para exibir sua ignorância como motivo de orgulho se tiverem acompanhantes igualmente ignorantes. Mentalidade de bando.

Além disso, como o ritual é arbitrário e depende quase que inteiramente da aleatoriedade (quando o efeito placebo não entra na equação), pode ser que as coisas funcionem de acordo com o esperado. Não existe relação de causa e efeito, mas se o efeito é percebido como positivo, a superstição ganha força. Quanto mais a pessoa acredita nessa baboseira, mais poder essa baboseira tem sobre a vida dela!

O ritual criado para ajudar numa tarefa não tem função direta no sucesso dela, mas o efeito placebo pode funcionar ao contrário: Se a pessoa não consegue ou não pode fazer seu ritual, pode acabar se saindo mal no que pretende mesmo tendo todo o potencial para fazer tudo da forma certa. Ao delegar ao acaso as suas chances de sucesso, suas habilidades começam a contar cada vez menos, e a motivação para aperfeiçoamento pessoal acaba diminuindo.

Se der certo, foi o ritual. Se deu errado, o ritual não estava certo. Não tem espaço para responsabilidade pessoal nessa situação… Isso pode ser reconfortante para covardes, mas mesmo assim não compensa a escolha da ignorância e suas consequências.

Placebo não substitui o remédio. E quem escolhe a ignorância acaba definido por ela…

Para dizer acredita no que te aliviar de qualquer responsabilidade, para me fazer rir descrevendo seus rituais ridículos, ou mesmo para dizer que o ignorante nunca sabe que é ignorante: somir@desfavor.com

SALLY

Manter um ritual esporádico que supostamente te traz sorte ou confiança é ignorância?

Não acho, sendo algo pequeno, que não determine a vida da pessoa, e trazendo conforto, eu sou favorável. O grande problema são rituais que escravizam, que a pessoa faz por medo, porque se não fizer acredita que coisas horríveis lhe aconteçam. Um ritual que dê prazer, que seja feito com carinho, com gosto só gera coisas boas.

“Mas Sally, isso é uma ignorância, o efeito é meramente psicológico, a pessoa está se enganando, nada disso é real e bla, blá, blá”. Ok, mas se o resultado final é positivo, se isso melhora a vida da pessoa, pouco me importa se é real ou não. O problema são coisas que além de não serem reais soterram a pessoa em ignorância, impedindo sua capacidade de raciocínio e questionamento.

Algumas vezes (mais do que gostaria) eu me irrito durante o dia. Quando isso acontece, quase que involuntariamente eu respiro fundo algumas vezes para tentar me acalmar. Isso pode ser considerado um ritual que me acalma e me ajuda a não perder a cabeça e não tem nada. Este ritual tem até explicação científica, que eu só vim a descobrir muitos anos depois de coloca-lo em prática: respirando fundo desaceleramos os batimentos cardíacos e isso ajuda a controlar o estresse do corpo. Então, dá licença, nem todo ritual pessoal é ignorância, muitos inclusive tem seus benefícios explicados pela ciência. Muitos rituais acalmam a pessoa fisicamente.

Mas mesmo que não exista explicação científica, se os rituais atendem às necessidades da pessoa sem minar seu questionamento ou livre arbítrio, não vejo qualquer problema. É uma muleta? Talvez, mas quem nunca? Fumar é uma muleta que serve para acalmar a pessoa ou para melhorar sua concentração, só que causa câncer. Gostando ou não da ideia, todos nós temos rituais pessoais, ainda que muito discretos. Vamos dar preferência a aqueles que não nos matam, que tal? Pense na ideia com carinho, Somir.

Para quem possa estar achando que um pequeno ritual pessoal causa ignorância e retrocesso social, gostaria de lembrar que muitas vezes a pessoa SABE que não existe nada de mágico no ato praticado, apenas o pratica porque ajuda a manter a calma. Por exemplo, uma pessoa que usa sua “caneta da sorte” para fazer provas de concurso. É evidente que ela não acha que Jesus Cristo está na caneta, nem que vai psicografar as respostas encarnando um espírito notável. É apenas uma CANETA DE ESTIMAÇÃO. Só isso. Gera conforto, bem estar e passa longe de misticismo e emburrecimento.

Ser dar três pulinhos antes de sair de casa deixa a pessoa mais confiante e feliz para encarar o seu dia, quem sou eu para recriminar? Não altera a rotina de vida da pessoa, não mexe com sua conta bancária, não gera nenhuma restrição e certamente não causa câncer. Apenas o benefício de uma postura mais confiante. Todos nós temos momentos de fraqueza onde nos sentimos tentados a recorrer a qualquer tipo de ajuda (não necessariamente religiosa). Vamos parar de bancar os fodões aqui. Todo mundo precisa em determinadas situações, de uma forcinha. Pode ser ligar para uma amiga para que ela te tranquilize, pode ser usar um amuleto de sorte, pode ser acender uma vela. Pode ser qualquer merda, se não travar e limitar sua vida, não há prejuízo.

Assim como torcedores tem rituais durante os jogos dos seus times e não fazem disso nada “divino”, pessoas tem pequenos rituais em situações do dia a dia e nem por isso passam atestado de ignorância ou religiosidade. Muitas o fazem para buscar forças dentro delas mesmos e eu acho isso muito bonito. Quando o ritual serve à pessoa é bacana, quando a pessoa passa a servir ao ritual é ignorância e desfavor. Justamente por isso quando os rituais deixam de ser esporádicos e passam a ser frequentes e obrigatórios, escravizando a pessoa, ganham o nome de Transtorno Obsessivo Compulsivo.

O que a Madame aí de cima não consegue distinguir é que nem todo ritual escraviza, nem todo ritual cria dependência. Alguns apenas acrescentam um tanto de bem estar, porém as pessoas seriam perfeitamente capazes de vencer seus obstáculos sem eles. São apenas facilitadores e não viabilizadores. Podem praticados por pessoas plenamente conscientes de que não estão operando mágica, cujo único benefício é um conforto temporário mais pela própria execução do ritual em si, dos atos que o compõe, do que pelos efeitos místicos que ele poderia ter.

A prática esporádica de um ritual não quer dizer que necessariamente a pessoa se torne dependente dele nem recorra a ele em toda e qualquer situação difícil da sua vida. Não vejamos coisas onde elas não existem. A prática esporádica de um ritual é apenas a prática esporádica de um ritual, sem tanta problematização. Você deve ter o seu ritual pessoal, ainda que nunca tenha percebido. É HUMANO. Só que alguns mais comuns e por isso nem soam como rituais, como por exemplo vestir uma camisa do time no dia do jogo do seu time, e justamente por isso são mais bem aceitos. Porém não deixam de ser rituais.

Este texto é pelo sagrado direito da pessoa de praticar o ritual que quiser sem ser taxada de ignorante, e não apenas aqueles que são socialmente aceitáveis, que não deixam de ser rituais mas estão camuflados de “hábitos”. A pessoa que quer tomar um banho de sal grosso não é diferente da pessoa que coloca uma nota de um dólar debaixo do prato de massa no dia 29 ou da pessoa que carrega um trevo de quatro folhas na carteira. Cada um sabe de si e faz o ritual que lhe atender melhor, que lhe trouxer paz de espírito e bem estar, contanto que não fique escravo e dependente disso.

Ponha a mão na consciência: vai dizer que você não tem nenhum ritual… nunca? Na hora de comer, na hora de escovar os dentes, na hora de dormir? Aposto que tem. Combater com tanto medo pequenos rituais parece coisa de quem tem medo de ficar viciado neles. Eu não tenho medo de praticar pequenos rituais e disso comprometer meu intelecto. E você? Ignorância é se privar de algo que melhora sua qualidade de vida, sendo real ou não, sem te prejudicar.

Para dizer que meu texto até faz sentido mas soa mais inteligente concordar com o Somir, para dizer que tem medo de ficar viciado em rituais ou ainda para contar seu ritual nos comentários comprovando que rituais não tornam uma pessoa burra e limitada: sally@desfavor.com

Comentários (66)

Deixe um comentário para Helena Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado.