Des Contos: A festa.
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Eduardo começava a valorizar os últimos goles do uísque, na esperança de que sua longa estadia recostado no balcão do bar parecesse algo natural. O olhar perdido no horizonte simulava pensamentos profundos, de forma a dignificar a figura de única pessoa sozinha naquela festa de alta classe em uma mansão cujo dono nunca vira mais gordo. Arrastado para lá por seu grande amigo Salvador, ele não encontrava um rosto conhecido sequer na multidão. Nem mesmo o que o convidara: Salvador havia sumido com uma bela ruiva há mais de hora. Típico.
Ainda ponderando se tentaria se enturmar ou se chamaria um táxi, Eduardo repousou os olhos sobre um pequeno grupo que se formara do lado oposto da piscina. Mais precisamente numa voluptuosa morena, seios fartos quase escapando de um generoso decote em seu chique vestido. Ela ria e escorria os dedos pelos cabelos, terminando o movimento num lento e sugestivo encaracolar. Entre um sorriso e outro, os dentes mordiam caprichosamente o lábio inferior.
O flerte nem um pouco discreto tinha um alvo, mas com certeza não era Eduardo. A morena derretia-se para cima de um homem cujas vestes aparentavam mais caras que todos os bens de sua família. Ao notar o relógio dourado, Eduardo adicionou mais algumas gerações à estimativa. Sozinho com seus pensamentos, permitiu-se invejar abertamente, não sem antes tentar se convencer que se também tivesse esse tanto de dinheiro ele que estaria daquele lado da piscina.
Talvez por culpa do excesso de bebida, talvez pela sensação de alienação naquela reunião de estranhos; Eduardo desistiu de sua pose e resolveu concentrar a vista no que mais lhe interessara até ali: O decote posicionado estrategicamente na morena. Ou, naquela altura… vice-versa. Eventualmente ela fazia movimentos mais espalhafatosos enquanto ria, achando muita graça seja lá do que aquele homem sortudo dizia. Eventualmente também, os seios dela pareciam à beira da liberdade. Na falta de algo melhor, o prospecto se tornava suficientemente recompensador para mantê-lo por lá.
Enquanto tentava se decidir se no último passo dessa dança do acasalamento alheio havia enxergado um mamilo ou apenas uma sombra bem posicionada, um frio passou por sua espinha. Eduardo finalmente notara que não era o único olhando fixamente para alguém distraído com coisas melhores. A sensação se traduziu num rápido bater de olhos em um homem alto, vestido com um terno cor de chumbo, do qual se destacava sua gravata vermelha. Esse homem parecia observá-lo fixamente do jardim, distante tanto dele quanto da morena e seu par. Realizando o quão patético estava sendo em sua prévia sessão de voyeurismo, mal conseguiu perceber as feições do curioso estranho; recuando os olhos para o próprio colo e tentando disfarçar da melhor forma possível sua vergonha.
Eduardo continuou retraído por mais alguns intermináveis minutos, guiando apenas os olhos na direção onde o homem estaria. Nada. Eduardo procura então nos arredores da vista, tomando coragem para erguer a cabeça ao perceber que ninguém mais parecia ter sequer notado sua presença, quanto mais o que estava observando até aquele momento. Ao casualmente voltar sua atenção para a mulher, percebe que agora ela está acompanhada por dois homens. O que tentava seduzir e o estranho do terno cinza com o qual trocara olhares há poucos. Ela novamente só parecia dar atenção para o suposto ricaço.
Mas o estranho não demonstrava incômodo algum. Continuava estático ao lado da mulher. Mesmo quando mais um dos movimentos abruptos dos braços dela desarranjou seu vestido de forma a quase revelar o que Eduardo tanto queria ver. Frustrado novamente, Eduardo praguejou internamente. Foi quando aconteceu…
O estranho do terno cinza deu dois passos em direção à morena, esticou os braços e num movimento só, agarrou as alças do vestido e as trouxe para baixo, ao redor dos braços da mulher. Agora não havia mais nenhuma dúvida sobre jogo de sombras: Os belos seios dela estavam completamente à mostra. Eduardo não teve muito tempo de apreciar a vista, parte pelo choque da cena – compartilhado por todos os outros presentes, alguns de forma mais enfática – e parte pela agilidade dela em se recompor.
A bela morena não teve dúvidas, tascou um sonoro tapa na cara do homem com o qual flertara a noite toda. Ato contínuo, ela desandou uma sequência de impropérios – apoiados em palmas e assovios por diversos presentes – para cima do homem, claramente confuso. Tão desorientado quanto, Eduardo se perguntava se teria sido o único a notar o verdadeiro responsável pela exposição forçada. Mas ao notar quanto aquele homem que invejara até alguns minutos atrás estava lidando mal com a reação dos outros convidados, acabou se contentando em apenas aproveitar o momento.
O homem do terno cinza já havia se afastado. A discussão ficava mais acalorada, com um dos outros homens tomando as dores da donzela e partindo de forma mais agressiva para cima do dono do relógio dourado. Aquilo estava divertido, finalmente. Melhor ainda quando um empurrão jogou o playboy – de roupa e relógio – para dentro da piscina. Eduardo saboreava o momento, torcendo para durar o máximo possível.
O que de fato, começava a acontecer. Depois das risadas generalizadas, silêncio. As pessoas que se aglomeravam ao redor da água se entreolhavam, como se todos realizassem ao mesmo tempo que aquele homem não estava conseguindo retornar à superfície. Eduardo entre elas. Ao prestar um pouco mais de atenção, notou um vulto escuro logo abaixo do homem submerso. Parecia uma outra pessoa. Finalizando o surto coletivo de inatividade, um dos garçons mergulha apressadamente para fazer o salvamento.
Eduardo consegue finalmente fazer senso do vulto e reconhece: Uma gravata vermelha flutuando gentilmente presa a um homem vestido com um terno cinza. Antes mesmo do garçom finalmente conseguir trazer o homem à borda da piscina, Eduardo olha assustado ao redor, tentando encontrar aquele estranho no meio das pessoas. Nem sinal. Agora, inclusive dentro da piscina.
Um dos convidados, declarando-se médico, faz os primeiros-socorros. Após cuspir bastante água, o homem puxa o ar pela boca de forma audível, aliviando a grande tensão no ambiente. O responsável pelo empurrão está aos prantos, desculpando-se desesperadamente enquanto se reclina ao lado de sua quase vítima fatal, dizendo que não pensou na hora e sequer imaginava que ele não saberia nadar. Ainda de forma sôfrega, o homem completamente encharcado o desmente, dizendo que era um proficiente nadador e que sua roupa deveria ter ficado presa em alguma coisa… talvez por orgulho, talvez para acalmar os ânimos de uma pessoa genuinamente arrependida. Não havia nada que pudesse prender suas vestes.
Eduardo, agora convencido que estava vendo coisas por culpa do álcool, colocava em dúvida até mesmo o plano de voltar de táxi para casa. Seria mais seguro voltar com o amigo, sob o risco de acabar perdido pela cidade em plena madrugada. Mas, como de hábito, Salvador deveria estar perdido nos braços de alguma jovem inocente ao ponto de acreditar em suas histórias de riqueza e conexões no mundo do entretenimento. Eduardo buscava pelo seu amigo na multidão, ainda atordoada pelos acontecimentos recentes. Desejava que pelo menos uma vez ele deixasse de pensar com a cabeça de baixo e viesse socorrer seu melhor amigo…
O som de vidro quebrado foi seguido de um grito de desespero. Um vulto atinge o chão ao redor da piscina, a poucos centímetros de distância de Eduardo. Um homem nu. Por reflexo, todos olham para cima, reconhecendo a janela quebrada da qual a queda provavelmente teve origem. A altura com certeza não era das maiores, mas o homem não parece se mexer. Ele está caído com as costas para cima, e uma grande poça de sangue começa a se formar ao redor de sua face. Algumas mulheres começam a gritar, o médico que acabara de socorrer o homem caído na piscina corre para averiguar a vítima, evitando que os outros tentem mexer no corpo estirado.
Eduardo aproxima-se o suficiente para notar a extensão dos danos: Um longo caco de vidro parece atravessar o olho esquerdo do homem caído. De lá que o sangue parece escorrer com mais intensidade. Não fosse a cena traumática o bastante, logo reconhece naquele corpo seu amigo Salvador. Incapaz de sequer balbuciar uma palavra, ajoelha-se, tentando absorver o acontecido. O médico, após tomar o pulso de Salvador, faz sinal negativo com a cabeça. Eduardo olha mais uma vez para cima, agora reconhecendo a ruiva com a qual seu amigo havia se amaciado no começo da festa, segurando um lençol sobre o corpo nu, em estado de choque atrás do restante da grande janela do segundo andar.
Ao lado dela, outra figura recentemente familiar. O homem do terno cinza troca um rápido olhar com Eduardo, volta-se para dentro e desaparece. Mesmo interpelado por outros presentes, Eduardo não profere mais nenhuma palavra ou se permite qualquer outro pensamento mais complexo nas horas seguintes. Mesmo após a chegada da polícia. Em meio à confusão de testemunhos e versões, Eduardo é acomodado num grande sofá, numa das salas da mansão. Impassível e cabisbaixo, não faz nenhuma objeção à aproximação de uma mulher, que diz algumas palavras de conforto enquanto segura levemente em suas mãos.
Enquanto discursa algo irrelevante – como qualquer discurso proferido numa hora dessas – ela se agacha, mantendo o contato entre as mãos. Ele não faz sequer questão de levantar a cabeça, ocupando seu campo de visão com o generoso decote no vestido chique da mulher. Mesmo sem ver o rosto, é capaz de reconhecê-la. A noite passa diante de seus olhos.
—
Ao redor da piscina, todos podem ouvir um grito agudo. Os policiais correm para dentro da casa. Lá dentro, encontram Eduardo chorando copiosamente enquanto uma mulher caída tenta esconder os seios. Ela recoloca o vestido na posição correta e se afasta dele, expressão mais confusa do que revoltada.
Ela não prestou queixa, mas não faria diferença: Eduardo foi encontrado morto alguns dias depois, sozinho em sua casa… aparentemente sufocado por dois travesseiros.
Aaaah, o parágrafo final com o email já deu a dica…
não faz sentido pra mim, isso quer dizer que eu não entendi ou não tem sentido mesmo?
, me diverti com o texto:
Me lembrou as redações da minha filha, mas bem escrito.
No final ela estourava uma bomba e morria todo mundo. Só ficava impressionado como ela descrevia a cena dos pedaços dos corpos sangrando etc. Estranho pra uma criança, mas tb com um pai desses…
Matar todo mundo no final é desfavor.
Ao ver seu comentário, lembrei de um texto que escrevi em outra “vida”:
Agora que eu vi a dica no final. Somir, você estragou a brincadeira!
Muito relativo… Eu sempre achei o caminho mais recompensador do que o destino em casos desses. Ler só o último capítulo do livro não tem graça.
Quando você entende, é lindo.
Que festa estranha, com gente esquisita. Só que o final não foi o mesmo da música…
Gosto de acreditar que consigo ser um pouco mais imprevisível que o Wando de Brasília.
Porra, Somir! Wando de Brasília foi cruel demais!
é o q?
Talvez. Ou o contrário.