Des Contos: Dois milhões.

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Se você está lendo esta carta, eu consegui te avisar a tempo. Por favor preste muita atenção no que está escrito aqui, não podemos continuar falhando.

Seja lá o nome que você acredita ter, todas as suas memórias são falsas. Eu sei, e sei muito bem, que as lembranças da sua vida parecem a coisa mais real do mundo neste momento, e que a história de bravura sobre a escolha que você fez é talvez seu único alento nessa cabine fria e escura. É para isso que implantaram isso na sua cabeça: para te manter firme no propósito e não titubear na hora de apertar aquele maldito botão.

Não aperte o botão. Você não está salvando ninguém ao fazer isso… muito pelo contrário. Não importa quem você acha que está te esperando lá embaixo, não está. Não sobrou ninguém lá embaixo. Nenhuma alma para ser salva, nenhuma esperança a ser mantida. Já acabou. E nós perdemos. Detesto ser o portador de notícias como essas, mas se eu te conheço bem, não adianta ficar dourando a pílula.

É difícil saber exatamente o que você acha que entrou em guerra conosco, até onde eu sei varia entre alienígenas, zumbis, demônios, a nação inimiga da que você acredita vir… Fazem isso para nossas mensagens perderem a força. Para que eu pareça apenas mais um maluco cuspindo teorias conspiratórias a ermo. Eu não sei exatamente o que você enxerga como o inimigo agora, mas posso afirmar que sei o que você não acredita ser.

E aí está a força do plano deles: contar com nossa negação. A verdade dói tanto que até mesmo uma invasão de lesmas assassinas parece mais plausível. Eu sei que você ainda tem em si o pensamento crítico necessário para duvidar do absurdo, por isso te digo que o mais lógico aconteceu: nós estragamos tudo. O inimigo sou eu, o inimigo é você. O belo planeta azulado que acalenta nossas memórias implantadas agora é cinza e cadavérico. Nós fizemos isso.

E a culpa… a culpa nos consumiu. De tal forma que escolhemos viver pela eternidade ignorando o acontecido e tentando resolver tudo de alguma forma. De qualquer forma. Por isso existe o botão. Por isso você acredita piamente que precisa apertá-lo para ser um herói. Não aperte o botão, ele nada mais é do que uma tentativa desesperada que não vai funcionar. E pior, vai condenar milhões de pessoas a algo muito pior do que a morte.

Você é provavelmente o único ser humano vivo neste momento. Seu antecessor não deve ter aguentado o papel de espectador impotente do show de horrores decorrente de cada ciclo desse maldito botão. Já encontrei os restos de muitos de nós, a grande maioria em posições que indicam suicídio ou desgosto irrecuperável. Acredite em mim quando eu digo que você não vai querer vir para cá… apertar o botão é uma viagem sem volta para um purgatório estéril onde você vai ter todo o tempo do mundo para se arrepender do que fez.

Por favor, por mim, pela humanidade e principalmente por você: Não aperte o botão. Pense comigo… por que haveria de ter um botão para começo de conversa? Com toda a tecnologia ao seu redor, você não acha que seria terrivelmente mais prático simplesmente programar um timer para executar sua função de tempos em tempos? Pense! Não há sentido nisso a não ser que você apertar o botão seja tão importante quanto executar sua função.

Eu demorei para entender tudo isso. Eu precisei trocar séculos de tortura psicológica e arrependimento por esse conhecimento… Mas você não precisa. Você pode escolher o menor dos males. Apertar o botão significa lançar dois milhões de humanos de volta à superfície atualmente inabitada do planeta Terra. Mas nenhum deles é um dos originais, não sobrou nenhum. São todas fabricações de uma linha de produção situada bem nas entranhas desta nave.

Todos saudáveis. Todas espécimes jovens e minuciosamente variadas geneticamente, todas com conhecimentos básicos sobre caça, coleta, agricultura e estruturas sociais como comunicação, hierarquia e cooperação. Pensamos em todos os detalhes… 10% desse montante é composto de crianças, para estimular os instintos de proteção e ensinar o resto a lidar com a própria noção de continuidade. O problema é que aqui nós cumprimos com nossa parte do acordo. Lá embaixo as coisas não funcionaram tão bem…

O planeta não sustenta mais nenhuma vida complexa. Ainda há água em alguns locais, o ar é suficientemente respirável… mas o solo é infértil e nem mesmo a maioria das bactérias foi capaz de se manter por lá. A cada vez que apertamos o botão, essas duas milhões de pessoas são mandadas para lá. Sem a menor chance de voltar.

Exemplares exemplares de nossa espécie. Dóceis e saudáveis. Eles com certeza ficam confusos assim que chegam… As memórias implantadas neles os fazem acreditar que fariam morada numa espécie de Jardim do Éden. A realidade é dura… mas eles não desistem. Somos humanos, afinal! E nós, os pobres diabos que acabaram de traçar tal destino para eles, nós podemos ver tudo isso no conforto de um grande salão comunitário. Satélites acompanham cada momento deles, e essas imagens acabam em grandes monitores… no começo você assiste a cada passo. Depois… fica insuportável.

Para evitar problemas com contaminação e excesso de peso, todos são mandados nus e sem nenhum equipamento sequer. Deveria haver um grande acampamento com tudo o que eles precisam para começar logo onde eles pousam. Não é isso o que acontece: Eles acabam numa planície desértica há milhares de quilômetros de distância do oceano mais próximo, numa área bem próxima ao equador.

Claro, a primeira coisa que eles fazem é se mover para conseguir água. Eles são inteligentes e muito bem organizados. Não costuma ser uma tarefa muito difícil, já que há um depósito a uns duzentos quilômetros do ponto inicial. A grande maioria deles sobrevive a essa etapa. Principalmente as crianças! Eles sabem protegê-las do sol escaldante e da desidratação. E os percalços no caminho providenciam comida para o resto.

Se houvesse algum lugar para onde ir, poderíamos considerar que estamos dando uma chance mínima de sucesso para esses pobres coitados. Mas não há. A única paisagem diferente que a maioria deles vai enxergar na vida vai ser um oceano morto. E se fossem eles animais estúpidos, poderíamos encontrar alento no fato que o sofrimento acabaria logo.

Mas humanos são engenhosos e adaptáveis. Se tudo o que tem são pedras e corpos, ainda sim eles são capazes de sobreviver por algumas gerações. E essa sobrevivência é o maior castigo imaginável. Quando a tentativa de sociedade deles colapsa e tudo o que resta são animais procriando apenas para ter o que comer, cada vez mais doentes e castigados… é aí que nenhuma desculpa que seu cérebro pode convir consegue te acalmar.

E aí que a maioria de nós decide pelo fim. Eu observei meus “filhos” entrarem em extinção dentro de uma cidadela feita de ossos e couro humanos. Observei a última criança morrer de fome quando não havia mais carne alguma nos ossos da mãe. E sabe o que mais te tortura? A esperança. A esperança inútil de que algo mude e que eles tenham uma chance. Depois a esperança de que todos morram de uma vez.

O botão era um plano engenhoso para repopular o planeta. Engenhoso, porém falho. Todos acabamos escrevendo um diário ou algo parecido por aqui. Nenhum de nós parece saber exatamente o que deu errado lá embaixo. Um de nós tinha uma teoria que acabou passando como verdade por várias gerações: Um erro de sistema. Uma falha no computador central que fez a nossa nave retirar e armazenar material orgânico do planeta sem nenhum controle. Aparentemente é isso que serve de matéria prima para os milhões de humanos criados in vitro a cada ciclo.

O tempo vai cuidar de exterminar essa aberração que criamos. Um dia não vai ter mais material para fazer humanos. Um dia o reator dessa nave vai falhar ou consumir todo seu combustível. Que vai acontecer, vai, mesmo que sejam necessários mais e mais milênios. O problema somos nós. O que você precisa entender é que eu sou você, não sei a quantos ciclos de distância, mas nós somos como clones. E a cada vez que você aperta o botão e acaba preso fora da sala de comando, você continua a contar essa história horrível. Nosso sofrimento multiplicado pelos erros de centenas de versões anteriores, como se nem mesmo a morte fosse capaz de nos aliviar essa carga.

Eu não quero só evitar a próxima descarga de condenados. Eu quero o meu fim. E para isso eu dependo de você. Não aperte o botão. Lembra que eu te perguntei se você sabia porque o sistema não fazia essa parte sozinho? Nós criamos esse sistema para sermos os deuses de uma nova civilização. Para garantir nossa imortalidade! Nós apertamos o botão para garantir que não haja erros corrompendo nossa megalomania, que uma civilização em ruínas não seja o último suspiro de nossa grandiosidade. Se eles falharem, nós tentamos de novo. Conveniente, não?

Você acha que tem que apertar o botão para salvar a humanidade, mas na verdade você está apenas girando uma moeda na expectativa de um resultado favorável. Esqueça isso… o jogo está viciado. E nós não temos mais nada para apostar. Nós já destruímos o planeta uma vez pela vaidade de recomeçar tudo de jeito que queríamos. O plano falhou. Acabou.

Não aperte o botão. Porque se você apertar, você vai ler esta carta. E assim como eu, vai deixá-la onde a encontrou e dar seu último suspiro torcendo para que ela nunca mais seja lida.

Para dizer que eu estou cada vez mais drogado com esses textos, para dizer que prefere essa versão, ou mesmo para reclamar que eu não desenvolvi melhor os canibais (você não vai querer saber o que eu pensei em escrever): somir@desfavor.com

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