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Des Contos: Aliados.

| Somir | | 15 comentários em Des Contos: Aliados.

desc-aliado

O mais novo corre desembestado, atravessando caminhos alheios com a típica inconsequência juvenil. O avô, impedido de acompanhar o ritmo frenético de sua cria graças à prótese que tomou o lugar de sua perna esquerda, pede apoio à neta. Não sem antes protestar com um grunhido ininteligível, ela acelera o passo enquanto grita alguns impropérios para o irmão. Em poucos segundos ambos desaparecem na multidão.

Preocupado, o avô desvencilha-se lentamente da confusão, procurando um campo de vista mais privilegiado. Para seu alívio, ambos estão apenas alguns metros à frente, observando o imponente monumento que agora é centro da maior praça da cidade. Com alguma dificuldade, finalmente se aproxima dos netos.

AVÔ: Já disse que não é para sair correndo assim!

O menor não faz a menor menção de registrar a informação. Ao invés disso, exibe uma expressão de desgosto enquanto aponta para as enormes esculturas à sua frente. Soldados de bronze em formação, batendo continência. Seus olhos miram o infinito, seus rostos inclinados de forma orgulhosa.

NETO: Eca! Feio!
NETA: O melequento até que tem razão… precisava colocar essa coisa feia aqui?
AVÔ: RESPEITO! RESPEITO COM ELES! ELES SÃO HERÓIS!

Os dois jovens arregalam os olhos. Nunca antes ouviram o avô de palavras ternas e índole mansa reagir de forma tão agressiva… O mais novo começa a emitir um gemido assustado, sendo consolado pela agora estupefata irmã.

AVÔ: Desculpa, desculpa. Não queria assustar vocês… Mas esse monumento não está aqui à toa. Esses soldados merecem todo o nosso respeito…

NETO: Desculpa… *voz chorosa*

AVÔ: Tudo bem, tudo bem. Vem cá…

O idoso abraça o neto com um dos braços enquanto o outro toca gentilmente a placa dourada que adorna o pedestal da estátua central. A jovem, num raro momento de empatia, aconchega-se com os dois e recosta a cabeça no ombro do avô.

NETA: Eles lutaram na guerra?

AVÔ: Sim. Um deles salvou a minha vida… Bom, eles salvaram todas as nossas vidas. Se não fosse por eles, querida, a gente não estaria mais aqui. O que eles te ensinam na escola é enfeitado para parecer que os nossos fizeram a maior parte do trabalho! Pfft! Foram eles. Eles ganharam a guerra.

NETA: Por que dizem que foram os nossos soldados que ganharam?

AVÔ: Política. Vergonha… culpa… *suspirando* Quando nós os encontramos pela primeira vez, era até engraçado o quanto eram atrasados. Qualquer bugiganga os impressionava! Hehe… Lembro quando um deles tentou usar um Reorganizador para esquentar a comida no quartel. Ah, sabem qual o nome que eles se davam? Humanos!

NETOS: Hahahaha!

AVÔ: Coitados, não sabiam o que essa palavra significava por aqui. Nós os chamamos de terranos para evitar essas risadinhas… Mas eles não eram necessariamente burros. Só inocentes. Tiramos muitos dos recursos deles nas primeiras transações comerciais, mas em troca eles se livraram de doenças, fome e todas essas coisas típicas de seres primitivos. Claro, as melhores coisas nós mantínhamos em segredo… Principalmente as armas. Nenhum de nós queria ver eles com tecnologia militar Escala 2 nas mãos.

Com as pedras e paus que tinham até o encontro, eles já tinham causado muito estrago! Criatividade e violência andavam de mãos juntas com eles. Obras de artes incríveis inspiradas por muita dor e sofrimento… Eles tinham algo bem único. Mas com a tecnologia de segunda mão que passamos eles se acalmaram bastante. Aprendiam rápido, os danados.

*suspiro*

Mas não rápido o suficiente para lidar com os azuis. O ataque pegou todos nós de surpresa. Aquela era uma área segura da galáxia… Os azuis tinham sumido há milênios! Depois descobrimos que foi um dos nossos sistemas de transmissão que entregou a posição dos coitados. E os azuis eram tão perigosos como se conta nas histórias… O planeta dos terranos mal girou sobre o próprio eixo antes de todas suas cidades serem destruídas. E nós… nós falhamos com eles.

Ao invés de mandar nossas melhores armas para ajudá-los a enfrentar os invasores, enviamos aqueles robôs estúpidos, alguns retirados às pressas de museus! Nosso líder parecia mais preocupado em se proteger de um salto tecnológico terrano do que salvar uma espécie que servimos de bandeja para a raça mais agressiva que jamais conhecemos! Isso não contam na sua escola, pode apostar.

Como medida de segurança, cortamos todas as linhas de comunicação instantânea e qualquer possível indicação de nossa localização. Os azuis que se contentassem com os terranos e ficassem por lá. Vários anos se passaram, algo em torno de dez dos deles… Dávamos o planeta deles como perdido até que recebemos um sinal bem fraco de um sistema estelar próximo. Eram eles. Os terranos estavam vivos!

Como eu já disse, eles eram atrasados. Quando viram uma esquadra sucateada de naves e robôs de guerra descer dos céus para lutar ao seu lado, acreditaram piamente que estávamos dando tudo o que tínhamos para ajudá-los. E contra todas as previsões, eles enfrentaram os azuis de forma magnífica! Com a ajuda de nossos brinquedos usados, eles foram capazes de montar uma resistência feroz. Os azuis não tinham sido derrotados, mas consideraram o planeta deles muito trabalho para pouca recompensa. Os terranos tinham milênios de história de guerra… Sempre lutando. Sempre evoluindo. Aprenderam com nossa tecnologia e desenvolveram as próprias máquinas de guerra.

Mas aquela transmissão não trazia boas notícias. Os azuis haviam descoberto nossa localização através de um transmissor que esquecemos naquele planeta. Os terranos nos contaram como tentaram de tudo para destruir o equipamento, sem sucesso. E quando aceitaram que não teriam sucesso na empreitada, esconderam e tentaram protegê-lo a todo custo. Imagino quantas vidas eles não perderam para nos salvar… A última frase da transmissão está aqui na placa: “Um aliado nunca luta sozinho”.

Na data daquela transmissão dos terranos recebemos os primeiros sinais da invasão que estaria por vir. Tínhamos muito mais capacidade de nos defender do que os terranos, mas mesmo assim eles fizeram questão de mandar praticamente metade de seu exército no encalço dos azuis para nos retribuir o favor. Quer dizer, achávamos que nossa tecnologia seria o suficiente… depois de tanto tempo em guerra, os azuis tinham surpresas extremamente desagradáveis para nós. Eles estavam mais violentos e ousados do que nunca. Não estávamos preparados para a destruição do escudo orbital, muito menos depois de apenas duas horas de guerra.

Quando os azuis colocaram as patas em nosso solo, nosso exército mal tinha encontrado suas armas. Os robôs se mostraram uma nulidade como linha de defesa inicial. Se não fossem as naves terranas pousando logo em seguida, não estaríamos aqui contando a história. O que os terranos faziam deixava até mesmo nós assustados!

Eu lembro do meu primeiro dia no exército… Fomos mandados para uma área praticamente perdida, aterrissamos no meio da área ocupada pelos azuis com a missão de destruir um gerador de energia. Um grupo de soldados terranos nos liderava… Sim, liderava! Eles sabiam muito mais como enfrentar os azuis do que nós. Não sabiam ligar um Atomizador, mas sabiam como desmantelar esquadrões inteiros dos invasores mais cruéis da Galáxia! Nunca vou me esquecer como um deles deu a vida para tirar eu e mais dez dos nossos de uma habitação cercada por soldados azuis. Perdi uma perna naquele dia, mas ganhei minha vida.

Com a bendita insanidade dos terranos e a nossa tecnologia militar real, conseguimos espantar os azuis. Comemoramos por dias e dias! Foi ali que eu conheci sua avó… Mas essa vitória não veio sem um custo, é claro. Dois milhões de soldados terranos chegaram aqui… Nenhum voltou. Reunimos o que restava de nossas defesas e mandamos em direção ao planeta terrano. Já no caminho percebemos algo de errado, uma onda de estática gigantesca prenunciava o nosso maior temor.

Os azuis eram péssimos perdedores. Não havia mais um planeta ali… Eu gosto de imaginar que pelo menos alguns deles conseguiram fugir, mas nunca mais encontramos um terrano, ou mesmo sinal deles.

Quer dizer, nenhum sinal além deste monumento. Apesar desses seres terem apenas dois olhos e nenhuma escama no corpo todo, essa é a estátua mais bonita de todo o universo. Arte e dor. Do jeito deles…

Para dizer que a parte dos alienígenas é mais verossímil do que o papel dos terranos na guerra, para perguntar quem são os azuis, ou mesmo para dizer que desaparecer numa guerra baseada em mentiras é a verdadeira cara da humanidade: somir@desfavor.com

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