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Ele disse, ela disse: Estava escrito.

| Desfavor | | 67 comentários em Ele disse, ela disse: Estava escrito.

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Talvez pela ressaca anti-intelectual de falar sobre o que se falou no último sábado, Sally e Somir escolhem os escritores que mais os fascinam. Além, é claro, de colocar em disputa quem escolheu melhor… Os impopulares ficam livres para escrever suas entradas na discussão.

Tema de hoje: Qual o(a) melhor escritor(a) que você já leu?

SOMIR

Lars Silmoy. Não deve ser nenhuma surpresa para quem já leu meus Des Contos que sou fã de ficção científica, da extrapolação de narrativas, contextos e personagens atuais para realidades alternativas. Sejam elas futuras ou longínquas. Claro, sem esquecer de uma fundamentação na nossa realidade e no que conhecemos sobre o universo. E favor não confundir coisas como Guerra nas Estrelas com ficção científica, fantasia é bacana, mas é outro gênero (muito embora Duna seja praticamente inclassificável dessa forma).

De qualquer forma, sempre gostei do gênero, passando por livros de autores famosos como Aasimov, Clark e Niven até mesmo pelos de ilustres desconhecidos como o que menciono hoje. Silmoy calhou de nascer na Finlândia, o que com certeza é melhor do que nascer no Brasil, mas também quer dizer que se não traduzirem a obra dele, foi-se a chance de apreciar sua imaginação incrível. Sério, finlandês não só é uma língua complicada quanto com pouca gente disposta a ensiná-la (até porque é virtualmente impossível achar um finlandês sóbrio… Ei, se você morasse na Escandinávia, acharia graça da piada!).

Lars escreveu sete livros durante seus 81 anos de vida, e como nos deixou em 2007, essa é a extensão de sua obra. E não é que ele começou tarde, é que uma das suas principais qualidades sempre foi a preocupação com a qualidade do material. O primeiro livro, “Yksinäisin Planeetta” (entenderam o drama do finlandês? Traduz-se como “Planeta Solitário”) foi publicado em 1961, depois de DEZ anos em produção. O último, “Unohdettu Vallankumous” (A Revolução Esquecida), em 1999, agora sim com preguiçosos quatros anos até ser completado.

E foi só em 1996 que um dos livros dele foi traduzido pela primeira vez para o inglês: “White Hole” (e talvez por acharem ser um livro erótico…). Sendo um sucesso de crítica, mas não de público, temos atualmente cinco dos sete pelo menos em inglês. Estou pensando seriamente em aprender finlandês para finalmente ler DIREITO os dois primeiros livros dele (tradução automática ninguém merece).

Como já disse, a atenção aos detalhes e à ciência é impressionante. Lars segue a linha de ficção científica dura (tradução fanfarrona), com uma grande dose de respeito pelas leis regentes do universo. Nada de som no espaço ou viagem no tempo para o passado. Uma das coisas mais bacanas na obra dele é como ele se adapta à evolução do conhecimento humano e vai revendo seus conceitos com o passar dos livros. Não há vaidade que se compare com o método científico!

Mas é claro que não é só isso que me faz escolhê-lo como o melhor que já li. Nunca vi alguém que respeitasse tanto a história contada como Silmoy. Tem gente que se amarra em estilo, no uso da escrita em si como ferramenta para transmitir emoções; entendo o apelo, mas nada como se deparar com um escritor tão apaixonado pelo conteúdo da sua narrativa que tudo vem naturalmente para o leitor. Você tem tantos subsídios da cena e tanta coerência no desenvolvimento da história que é como se o livro fosse uma memória sua. Que já vem cheia de significados atrelados aos elementos e não à forma de representá-los.

E apesar dos detalhes e da coerência, tem outro fator preponderante nessa representação nítida do universo ficcional dele: Não espere que alguém segure sua mão e te lembre do que é importante lembrar durante a leitura de uma das obras de Lars Silmoy. Ele manda um turbilhão de informações por página, e é sua responsabilidade notar como elas se entrelaçam e desenvolvem. É mais do que ler, é testemunhar.

Não quero entregar a história de um dos livros, mas ao ler “Shield” (o quarto livro dele, e porra, não vou traduzir do inglês!) pela primeira vez eu entendi o final da história de uma forma, afinal, eu leio de forma meio compulsiva por natureza e queria saber logo o que ia acontecer. Depois de ler um comentário (traduzido do finlandês) num fórum perdido sobre o livro em questão e não entender o que a pessoa tinha compreendido do final, li de novo, agora com calma… Estava lá o tempo todo, dicas sutis como a descrição de um olhar de desaprovação e uma porra de uma pedra caída no canto de uma sala (sério, Lars era um gênio, mas era doente com essa coisa de detalhes) davam a entender que a MINHA impressão do final fazia parte de um plano! A história verdadeira era outra!

Depois disso eu não consegui me concentrar em nada enquanto não conseguisse cópias digitais (spoiler: eu GOSTO de ler no monitor) do resto dos livros traduzidos dele, e até mesmo os não traduzidos. Realidades paralelas, mundos alienígenas, futuro-nem-tão-distante… Lars consegue ir para cada um desses lugares e pinçar deles uma história humana e surpreendente. Para imaginar o tipo de história que ele conta, é só lembrar das que eu conto por aqui. Mas adicionar talento, dedicação e compreensão da natureza humana… Se ME deixa humilde, pouca coisa não é (contradição-ção-ção).

É sobre natureza humana, mas não se rende ao lugar comum de colocar uma roupa de ET ou de robô num estereótipo de nós, macacos pelados. Em “Forty Tribes” (o penúltimo), Lars passa o tempo todo descrevendo uma civilização alienígena que REALMENTE parece alienígena; diferenças fisiológicas baseadas em condições de existência muito diferentes das nossas geram uma raça inteligente que trata distância física como tratamos dinheiro. É uma das coisas mais difíceis de se explicar para quem não leu, mas quando o estranhamento passa e as personagens ficam conhecidas e dissociáveis, tudo faz sentido. Você está em outra realidade e acaba de se adaptar a ela (eu fiquei meio claustrofóbico por mais ou menos uma semana depois de ler…). Pelo menos para mim esse é o objetivo final de qualquer obra de ficção científica: Te levar para longe e te fazer se sentir próximo.

No final das contas não é sobre escapismo, é sobre empatia. E, claro, sobre uma boa história.

Para dizer que os livros devem ser a coisa mais chata do mundo para eu gostar tanto, para dizer que indicar autor em finlandês é muito hipster, ou mesmo para arriscar um pedido de casamento meu ao dizer que também é fã: somir@desfavor.com

SALLY

Confesso que fiquei na dúvida para escolher o melhor escritor de todos os tempos. Na verdade, eu sempre soube a resposta, mas justamente por ele não ser muito popular no Brasil (e talvez no mundo) eu titubei. Para ser bem sincera, acho que ele apenas é conhecido na Argentina, e ainda assim, mais pela elite intelectual: Gatoi Moris ou, se preferirem, algum dos diversos pseudônimos que ele usa. Só fato de alguém conhecê-lo faz a pessoa subir de forma estratosférica no meu conceito, se apreciar sua obra então, faço uma reverência.

O que mais me fascina nas obras de Moris é que ele, assim como o Desfavor, não tem a menor pretensão em ser popular ou famoso. Ele apenas quer escrever, e o faz por vocação, por amor. Nunca se esforçou para divulgar seus livros, eles se sobressaíram única e exclusivamente por sua excelência, apreciado por poucos, quase que em um clube secreto elitista que não faz a menor questão de ostentar o que está lendo em rede social. Discreto, genial e blasé. Tem como não amar? Ele não se importa com a fama nem com a não fama, ele simplesmente escreve independente disso.

O primeiro livro que li dele, “Hoy es el dia mas importante de mi vida”, me marcou profundamente. Parecia que eu estava vivendo a experiência da protagonista, me angustiei, fiquei nervosa, chorei e torci, emoções que não sinto comumente lendo um livro. Sua narrativa envolvente me fez virar uma noite lendo, eu não consegui largar aquele livro enquanto não o terminei, porque não conseguia dormir sem saber como a história da protagonista ia acabar. E acaba de uma forma surpreendente, ao menos para mim. Mas chega de falar de detalhes, não quero dar spoilers, apesar de ter quase certeza de que dificilmente se tenha acesso às obras dele traduzidas para o português. Não é o tipo de autor que se ache no eMule.

Confesso que muito da minha forma de escrever vem inspirada nas obras de Moris, apesar de saber que nunca vou alcançar seu nível, procuro ao menos seguir uma linha similar: escrita simples, informal, que faça com que o leitor sinta que está conversando com o autor, que faça o leitor visualizar não apenas o que está sendo narrado, como também o sentimento do narrador. Nenhum outro escritor que eu tenha lido consegue capturar o leitor e envolvê-lo dessa forma e isso para mim é o maior dos dons. Aluísio Azevedo meu ovo inexistente! O difícil é fazer o simples, o rebuscado muita gente faz. Erudição se aprende, empatia e carisma são dons.

O livro dele que mais gostei foi “Solo necesito de una oportunidad”, apesar de ser um dos mais controversos. Ou as pessoas amam, ou odeiam. Não vou me aprofundar para não estragar a surpresa, que consiste mais na trama em si do que no desfecho, mas confesso que senti um tipo brando de inveja. Eu queria ter escrito aquilo. Pena que não fui eu, mas que bom que existe alguém no mundo que o escreveu! É o tipo de livro que quando você acaba de ler pensa “Eu sou uma pessoa melhor depois de ter lido isso”.

Acho que a melhor forma de definir os livros de Moris é: alimento para a alma. Algo que te diverte, te deixa leve, mas, ao mesmo tempo, acrescenta, instiga o questionamento, a reflexão. Um mix de coragem e doçura propositadamente camuflada, uma genialidade propositadamente disfarçada na tentativa de ser acessível. A generosidade quase que inconsciente de se rebaixar ao nível de “reles mortais” para compartilhar conosco sua escrita. Fico me perguntando se ele sabe do alcance do seu potencial. Provavelmente não, genialidade costuma trazer consigo algumas mazelas, conflitos internos e cobranças.

Confesso que chego a ser tomada por um sentimento que beira ao egoísmo. Me sinto tão privilegiada por ter descoberto sua obra e vejo como ela é exclusiva, no sentido de ser para poucos, que muitas vezes me privei de compartilhá-la com pessoas que talvez a pudessem apreciar. Uma sensação boba de que se aquilo se popularizasse eu não seria mas tão especial, não seria da elite de pessoas que o descobriram e leram seus livros. Enquanto sua obra fosse um reduto para poucos, ela me ajudaria a filtrar pessoas. Ser apreciador ou leitor de Moris seria um passaporte para ganhar a minha admiração. Besteira, hoje estou aqui desapegando dessa ideia mesquinha e compartilhando com quem quiser ler: Moris é um gênio, daquele tipo mais atraente, aquele que não se sente gênio.

Você pode estar se perguntando o que ele tem que tantos outros escritores geniais não tem. Não sei. Juro que não sei. Por algum motivo o que ele escreve me causa uma identificação profunda. Talvez um mix da sua postura, da sua escolha de vida com a genialidade da sua obra, não sei. Fato é que seus livros me causam um impacto que mais ninguém causa. Aquela coisa de você ler e, linha após linha, fazer que “sim” com a cabeça, concordar com tudo e pensar “essa pessoa estava lendo a minha mente quando escreveu isso!”. Mais do que ler mente, ele desvenda coisas que eu sentia e não conseguia organizar na minha cabeça de forma racional para perceber que as sentia. Não sei se alguém aqui já se sentiu assim durante uma leitura qualquer, mas para mim isso é o elo mais forte que liga um autor a um leitor.

A capa dos livros é, sem trocadilhos, um capítulo à parte. Eu sei que não se deve julgar um livro pela capa, mas, como se não bastasse o conteúdo excepcional, as capas são lindas! Por exemplo, a capa do livro “No te vas a arrepentir” virou estampa de um vestido meu, de tão fascinada que fiquei por ela. Mandei estampá-la em um vestido branco que eu gostava muito, mais precisamente por todo o vestido. Até hoje me param na rua para perguntar onde comprei esse vestido, isso quando não ficam olhando fascinados para o desenho. Poucas pessoas sabem, mas é o próprio Moris quem faz as capas de seus livros. Aliás, ele é multifuncional, ele participa de praticamente todos os momentos, do processo criativo, até o livro pronto.

Moris só reforça minha teoria de que tem muita coisa boa “escondida” por aí, que só pode ser encontrada garimpando muito ou por uma daquelas sortes absurdas que acontecem com a gente de vez em quando na vida. Eu tive essa grande sorte e tentei agarrá-la com unhas e dentes. O popular, o consenso, o massificado cada vez me atraem menos. Os verdadeiros tesouros estão no anonimato ou então esmagados por aqueles pretensamente populares, justamente porque não há quantidade suficiente de seres humanos geniais para apreciá-los a ponto de popularizá-los.

Então, independente de quem seja seu escritor favorito, tenha sempre em mente que assim como há muita coisa ruim, também há muita coisa boa por aí, no anonimato, esperando para ser descoberta ou mesmo em evidência, mas sem muito destaque. Seja curioso, dê uma chance aos desconhecidos, aposte. Não se deixe desanimar pela premissa que a maioria é porcaria, às vezes nasce uma flor no meio do estrume.

Para discutir a obra de Moris comigo e me dar uma grande felicidade, para criticá-lo sem nunca ter lido, apenas pelo fato de ser argentino ou ainda para falar comigo nas entrelinhas: sally@desfavor.com

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