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Ele disse, ela disse: Custo orgânico.

| Desfavor | | 41 comentários em Ele disse, ela disse: Custo orgânico.

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Desta vez o assunto faz parte de cada um de nós. O comércio de órgãos humanos é proibido em virtualmente qualquer lugar deste mundo onde existam leis, mas mesmo assim Sally e Somir organizam uma discussão. Os impopulares trazem suas opiniões de dentro.

Tema de hoje: Deveria ser permitido que uma pessoa venda um órgão seu se quiser?

SOMIR

Sim. Evidente que a posição não soa nem um pouco agradável para quem ao menos se julga humanista, mas eu garanto que misantropia não é uma das minhas motivações aqui. Defendo o que defendo hoje por coerência com princípios básicos de liberdade pessoal e uso consciente das ferramentas de controle do Estado.

Achou complicado? Azar o seu. Não tenho pretensão de fazer um argumento palatável. Seria um contrassenso com a ideia principal que quero passar aqui: Compreensão é muito mais importante do que concordância. Se o ser humano não tem liberdade e as responsabilidades decorrentes dela, jamais vai aprender o que fazer com essa liberdade. Mas vamos construir essa ideia melhor…
Coerência. Eu não posso ser favorável à eutanásia e ao aborto ao mesmo tempo que refuto o direito de um cidadão de ter liberdade sobre o próprio corpo, ou mesmo partes dele. Se o órgão te pertence, você tem TODO o direito de fazer o que bem entender com ele. Inclusive comercializá-lo. Oras, a não ser que vivamos sob uma ditadura comunista e ninguém me avisou, o mercado ainda é livre.

Da mesma forma como você pode se dispor do estado de conservação de seus órgãos em forma de trabalho excessivo e estressante, você poderia também cortar o intermediário e se livrar dele por uma compensação financeira. A nossa sociedade até entende que alguns trabalhos são tão nocivos para a saúde que já vem com benefícios extras como aposentadoria antecipada.

Se é para enriquecer ainda mais as pessoas que detém o poder e os recursos, você pode foder completamente com seus órgãos; mas AI de quem não quiser pagar o pedágio, não? É bom entender que esse tipo de proibição não existe para proteger o povo, e sim para contê-lo. “Taí mais uma liberdade que você não vai ter… vamos fingir que te achamos burros o suficiente para não poder se cuidar, mas na verdade queremos que vocês não enxerguem valor algum na sua existência sem fazer parte do sistema. Sistema criado para te manter feito gado até sua morte.”

Mas ei, pode até colocar essa na conta da paranoia! Talvez essa aqui não seja a plateia interessada nessa brilhante e torpe estratégia de controle. Vamos ser mais práticos: Permitir a venda de orgãos seria regulamentar o que JÁ se faz de forma clandestina. Era previsível o nascimento de um mercado paralelo assim que o transplante de órgãos se tornou uma realidade. Já tem muita gente pagando um rim por aí.

Novamente, coerência: Se argumento sobre aborto e eutanásia sob a ótica que regulamentação e legalidade diminuiriam os problemas de falta de padrões mínimos de qualidade para os necessitados, não posso fugir dessa ideia sobre a venda de órgãos. Se cidadão VAI vender, que venda num ambiente seguro e que tenha a cobertura do sistema legal caso algo de errado aconteça.

Isso sim é usar o Estado ao seu favor: Ao invés de limitar liberdades pessoais do cidadão, regula e fiscaliza o MERCADO. Tudo bem que o Brasil é uma bagunça desonesta em geral, mas algum controle é muito melhor do que controle algum. Um mercado 100% clandestino só obedece ao lucro, seja lá as ferramentas necessárias para tal.

Muita inocência achar que abusos como coação de doadores ou “criação de orgãos” começariam a existir depois que a prática fosse legalizada. Gente fazendo coisas desse tipo claramente não levam a legislação vigente em consideração. Quando você joga luz nessas áreas previamente escondidas da visão do povo, a tendência é que quem quer que estivesse se escondendo lá acabe fugindo ou adaptando-se às novas condições.

Ilegalidade atrai mais ilegalidade. O que é um acordo com o crime organizado para quem já vende órgãos humanos? Quando não há para onde correr além das margens do sistema, evidente que o crime deixa de ser fator limitante. Um negócio de venda de órgãos de acordo com a lei teria muito mais poder de convencimento para clientes potenciais do que um onde as operações são feitas com facas de cozinha!

E preste atenção na parte final pergunta de hoje: “venda um órgão seu se quiser?”. Isso significa que vender órgãos de outros sem consentimento expresso ainda seria crime. E por tabela, nenhum deles oriundos de menores de idade poderia ser comercializado. Eles não podem consentir! A parte realmente podre da coisa continuaria na mesma situação que é hoje. Espero que Sally esteja acima dessa tática sensacionalista, mas ela é competitiva… então vamos reforçar: Não seria legalizada a venda de órgãos de quem não quer vender seus órgãos ou não pode fazer essa decisão (o que inclui todo mundo com menos de 18 anos). Não estou criando condições extras, estou só respeitando o enunciado do tema.

E caso achem que só os ricos se beneficiariam disso, pensem de novo. Evidente que os preços seriam proibitivos para os mais pobre no começo, mas a lei da oferta e da procura vale ouro aqui: Todo mundo tem os órgãos que podem ser doados em vida, MUITO menos gente tem a necessidade deles. Em pouco tempo os preços se tornariam bem mais amenos.

Ah sim: Morto pode vender alguma coisa? Não pode, né? Todos os que provém de mortes cerebrais continuariam a ser doados. Então pode esquecer a possibilidade de comprar coração. E se você acha que as pessoas venderiam os órgãos em vida “em caso de”, eu tenho uma torre linda de ferro fundido para te vender lá em Paris. Seria o negócio mais burro do mundo. E se você acha que as pessoas se matariam para vender os órgãos e deixar o dinheiro para a família, não entender como funciona o corpo humano. Morte cerebral passa longe de ser uma certeza mesmo controlando as condições da morte (e nenhum hospital poderia fazer isso de propósito). Quer mais? Vamos considerar que seja possível gerar morte cerebral fácil assim… esses órgãos não iriam para doação de qualquer jeito, a morte foi “arranjada”.

Ah! E o caso de doação em vida? As pessoas não prefiririam vender? CLARO QUE NÃO! Doações são feitas para pessoas que importam para o doador. Ou alguém entra casualmente num hospital para doar um rim para qualquer um que estiver precisando? Entre doar o órgão para seu filho doente ou vendê-lo para um estranho… sério que há alguma dúvida para quem iria?

Liberar a venda de órgãos aumentaria a disponibilidade deles sem comprometer o sistema que já existe. Colocaria regulamentação num mercado paralelo sem criar brechas legais para abuso de outros seres humanos. E, porra, os seus órgãos são de quem?

Para dizer que vai discordar só pelo costume, para reclamar que seria maldade com quem não cuidou dos próprios, ou mesmo para dizer que se interessou naquela torre lá em Paris: somir@desfavor.com

SALLY

Algumas restrições que a lei faz tem como objetivo manter a ordem, a paz social e sacrificam pessoas civilizadas em detrimento de alguns não tão civilizados. Porém outras são para o próprio bem do cidadão. A restrição que impede a comercialização de órgãos humanos se encaixa nesse segundo caso. A única razão pela qual a lei brasileira proíbe a comercialização de órgão é porque se ela fosse permitida, todo pobre teria apenas um rim. É para proteção.

Eu sei que soa estranho uma proibição como uma medida protetiva. Estamos acostumados a associar proibições a coisas ruins, a cerceamento de direitos, a restrições prejudiciais. Mas neste caso, e neste país, essa proibição tem sim caráter protetivo. Um país com uma desigualdade social galopante e um povo sem acesso a educação e oportunidades dignas de trabalho se tornaria facilmente um exportador de órgãos para países desenvolvidos caso sua venda fosse permitida.

Claro que pensando em você como referencial, existe espaço para argumentar de forma favorável à venda de órgãos. Mas sabemos muito bem que o brasileiro médio não é você. Estamos falando de uma lei que regeria todo o país. Um país de dimensões continentais, com milhões de realidades diferentes. É muito triste dizer isso, mas nem todo brasileiro tem discernimento suficiente para que lhe seja permitida uma decisão tão grave e irreversível.

Levemos em conta o aspecto social. Se fosse possível vender um órgão, quantos brasileiros vocês acham que doariam seus órgãos? Quantas pessoas vocês conhecem que, podendo vender algo, optam por dar de graça? Provavelmente poucas. Se a doação de órgãos hoje já é um problema, já tem gente morrendo na fila de espera porque muita gente se recusa a doar, imagina o quanto essa situação pioraria se houvesse a possibilidade de venda. Só receberia um órgão quem pudesse pagar (caro) por ele.

O desdobramento social disso seria que apenas ricos conseguiriam fazer transplantes quando precisassem, pois órgãos gratuitos virariam uma raridade. E provavelmente pobres precisariam de mais transplantes do que ricos, já que teriam vendido seus órgãos duplos. Isso soa um bom panorama para vocês?

Façam as contas, por alto, de quantos órgãos temos no nosso corpo. Agora coloquem um preço alto em cada um deles e imaginem quanto uma família não lucraria com a morte de alguém. Um morto renderia uma pequena fortuna para seus herdeiros, sendo os órgãos seu patrimônio. Permitir a venda de órgãos seria estimular que pessoas, no mínimo, desejem a morte de parentes que os cercam para poder embolsar uma boa quantia em dinheiro. Eu sei que você provavelmente não desejaria isso, mas, repito, estamos falando de centenas de realidades diferentes. Não demoraria a acontecer de alguém negligenciar a saúde daquele parente idoso para poder comprar uma TV de um zilhão de polegadas ou um iphone.

Infelizmente, permitir a venda de órgãos afetaria não apenas a pessoa que voluntariamente se dispõe a abrir mão de parte do seu corpo. Deixaria expostos milhões de vulneráveis que acabariam sendo vítimas da cobiça. A partir do momento que um ser humano tiver um valor tabelado expresso em dinheiro e este valor for suficiente para despertar a cobiça em outros seres humanos, teríamos sérios problemas sociais.

E eu não quero nem pensar em casos mais extremos, nos quais os pais venderiam órgãos dos próprios filhos. Talvez na sua realidade isso seja impensável, mas existem muitas situações de brutalidade e desumanidade nesse Brasil de Meu Deus. É plausível que aconteça, ainda que a pessoa minta e diga que é o órgão de um adulto. Existe um motivo para transplante de órgãos ter tanto controle e fiscalização: é algo sério demais para ficar nas mãos de poucas pessoas.

Venda de órgãos, além de ser ilegal, é imoral. Não concordo que um Estado encoraje uma mutilação que reduz a qualidade de vida da pessoa, principalmente quando é notório que esse Estado não vai conseguir fiscalizar se isso vai ser tratado com a devida seriedade. O Poder Público não consegue nem fiscalizar quem dirige bêbado, vai fiscalizar comércio de órgãos de uma forma rígida e organizada?

Hoje, salvo engano, só se permite a venda de órgãos no Irã, e as estatísticas são deprimentes: 80% dos “doadores” (são chamados doadores, mas são remunerados) se arrependeram. Gente não é mercadoria. Parte de gente também não é mercadoria. E, honestamente, acho que nem precisava ter argumentado nestas duas páginas, a simples noção de vender partes do corpo é repulsiva para quem tem um perfil mais sensível e humano.

Para dizer que ter dois rins é um desperdício, para dizer que acredita no poder de fiscalização do Governo brasileiro ou ainda para se espantar com o quanto o Somir é frio e mercenário: sally@desfavor.com

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