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Ele disse, ela disse: Garota interrompida.

| Desfavor | | 63 comentários em Ele disse, ela disse: Garota interrompida.

eded-aborto

Abortos são uma realidade, quer você concorde com eles ou não. Sally e Somir costumam concordar bastante sobre o tema, interrompidos apenas quando falam sobre assumir ou não o acontecido. Os impopulares geram suas opiniões e as colocam no mundo…

Tema de hoje: Uma mulher deve assumir publicamente um aborto?

SOMIR

Sim. Claro que estamos falando dos intencionais, os que correm o risco de reação negativa da sociedade. Mas antes de qualquer coisa, vamos entender melhor esse enunciado: não estou advogando que mulheres sejam obrigadas a vir à publico para dividir sua intimidade, seria totalmente incoerente com tudo o que digo normalmente. O “deve assumir” funciona como o inverso de “deve mentir” aqui. Estamos discutindo qual seria o melhor caminho, e não propondo alguma medida autoritária maluca…

Dito isso, considere-se chamado de burro quem usar o ângulo da obrigação como antagonismo à minha opinião. Acredito ter sido explícito o suficiente. Pois bem… faz sentido o que Sally provavelmente vai dizer sobre as consequências de dizer a verdade numa sociedade infestada por imbecis, mas nivelar por baixo tem sua dose de problemas e quase nenhuma recompensa. Quanto mais mulheres assumirem seus abortos intencionais, melhor o mundo fica.

Convenhamos: passamos do ponto no que diz respeito à reprodução humana. O crescimento exponencial da população no último século colocou-nos diante de uma série de problemas sociais e ambientais de difícil resolução. Muita gente disputando recursos finitos. Sociedades que só conseguem um mínimo de equilíbrio com desigualdade galopante e danos cada vez mais irreversíveis para o ecossistema. Não é único problema, mas é um dos maiores, senão o maior: tem gente demais no mundo.

Previsões otimistas dizem que pararemos de crescer depois de 2050. Pode ser tarde demais… E mesmo assim, vai ter ainda mais “gente demais” para dar conta. Está mais do que na hora de desmistificar o “milagre da vida” e começar a pensar feito animal racional. Praticamente todas os códigos de conduta ancestrais que influenciam religiões e legislações na nossa história privilegiam uma mentalidade de multiplicação humana. Homossexualidade e controle de natalidade são inimigos de povos desesperados para fazer mais gente (principalmente gente pobre para servir).

O problema atual é que ainda não percebemos (como um todo) que muitas das leis de outrora caducaram; soterradas sob o peso de bilhões e bilhões de pessoas. Ei, povos da antiguidade, vocês ganharam! Deu certo, a humanidade vingou! Mas agora precisamos de novos planos. Seria ótimo se as pessoas presas em séculos e milênios passados parassem de atrapalhar o desenvolvimento de toda uma espécie…

Conviver e discutir com a Sally nesses anos todos ajudou-me a entender melhor essa coisa de não ignorar leis só porque não gosta delas. É receita de atraso, e até arrogância de querer que o mundo funcione de acordo com o que você acha correto. Tudo bem. Compreendido. Mas mesmo assim há de se haver um espaço aí para evoluir essas leis. O status de legalidade do aborto em países como Brasil é um tapa na cara do bom senso e da compreensão mais básica da realidade. O mundo chegou num ponto onde perseguir e recriminar mulheres que escolhem o aborto é um absurdo. Não é que eu pessoalmente não gosto dessa lei, é que ela está em desacordo com a realidade atual.

E é aí que a desobediência civil vem a calhar. Assumir que fez aborto publicamente é mostrar a realidade para muito mais pessoas. É crime? É. Mas em dado ponto de nossa história, adultério também foi. Leis incompatíveis com a atualidade devem ser contestadas! E não é como se só umas vinte mulheres tivessem abortado filhos indesejados (mesmo que apenas temporariamente indesejados), tem aborto acontecendo aos montes por aí, em clínicas clandestinas e sob os cuidados de todo tipo de açougueiro. Os babacas que dedicam sua vida a atrapalhar a vida alheia ainda se escondem sob a ilusão de que pode-se controlar os abortos!

Acabou essa fase da história humana. Claro que a mulher deve admitir, chega de viver com essa culpa desnecessária, chega de sofrer para agradar confessos inimigos da vida humana (porque quem é contra redução do número de seres humanos na Terra hoje em dia advoga contra toda a espécie). Evidente que eu tenho mais argumentos sobre toda a parte da escolha pessoal e da bizarra ignorância científica e humanista de quem diz que a vida começa na concepção, e muito mais sobre a parte de que só deve ter filho quem pode cuidar de filho… mas esse nem precisa ser o ponto deste texto.

O direito de se calar ou de se proteger de represálias dos imbecis nossos de cada dia não pode ser extinto, evidente. Mas tem muita gente por aí que pode se dar ao luxo de enfrentar a opinião alheia. Que as mulheres que podem dizer a verdade comecem a dizer primeiro. Que comecemos a ruir as bases dessa proibição arcaica e danosa… precisa sempre de umas corajosas na frente, é sempre assim. Difícil pregar e acreditar numa revolução instantânea, mas pensando nisso como um processo fica claro que a liberação do aborto pode seguir os mesmos passos de outros movimentos que tiraram restrições sobre a liberdade das mulheres nas últimas décadas.

Sem contar que aborto já é uma experiência traumática (tenho até minha opinião terrivelmente insensível sobre isso, mas fica para uma outra situação), precisa carregar a culpa desnecessária sobre ter cometido um crime nas costas? Admita e diga que não é crime coisa nenhuma. Em muitos casos o aborto é até um gesto de amor para com o prospecto de filho. Sem condições (ou mesmo vontade) de criar um, é melhor não colocá-lo no mundo mesmo.

E deixemos os cães ladrarem. Tem muita gente no mundo, a realidade é essa e nem todo o bebê é sagrado. Tem sim o argumento que redução de natalidade custaria caríssimo a médio prazo quebrando as previdências sociais, mas alguém vai pagar a conta pela superpopulação! Essa conta VAI chegar, e quanto mais demorarmos para pagar, mais juros virão.

A mulher deve assumir sim. Pode ter sido algo triste, mas de forma alguma foi crueldade ou egoísmo. Os tempos mudaram…

Para dizer que eu sou hipócrita (opa! vivo abortando…), para dizer que é contra o aborto e não é uma pessoa ruim (é sim), ou mesmo para reclamar que é fácil falar (exatamente!): somir@desfavor.com

SALLY

Uma mulher que já tenha feito um aborto deve admitir publicamente que fez um aborto? Não. Na minha opinião é o tipo de informação que não se comenta publicamente.

Um aborto é algo muito pessoal, independente de você achar grave ou inofensivo. Não é o juízo de valor sobre o ato que determina a privacidade. Se você cagou um tolete enorme hoje, deve saber que não há a menor reprovação social no quanto ao ato de cagar e ainda assim eu insisto que isso não deve ser dito publicamente. Você conta o tamanho do seu tolete para alguém que pergunte? Portanto, não tem nada a ver com reprovação moral. Certas coisas só dizem respeito aos envolvidos, entre elas toletes e aborto.

Independente do julgamento moral, hoje, infelizmente, fazer um aborto no Brasil é crime. Não acho prudente alardear que cometeu um crime publicamente. Novamente não me refiro ao julgamento social, e sim a algum desdobramento infeliz estimulado por pessoas oportunistas que tenham a intenção de prejudicar quem faz esta confissão. E não me refiro necessariamente a um processo criminal, fazer um aborto, por exemplo, pode ser motivo para demissão dependendo de onde se trabalhe. Até ser ateu é motivo para demissão no Brasil, basta ler jornal para saber disso.

Se existirem filhos então, o cuidado deve ser maior ainda. Uma informação dessas que chega truncada a uma criança pode causar um belo sofrimento, coisas como: “sua mãe matou um irmãozinho seu que estava na barriga dela”. Não é uma frase inventada, é uma frase que todo mundo falava para um coleguinha de escola da minha sala depois que se espalhou que a mãe dele tinha feito um aborto. Desnecessário fazer seu filho passar por isso, não acha? Uma criança pode não compreender uma coisa dessas dependendo da idade. Vai saber o estrago que isso causa.

É um erro pensar que não contamos algo necessariamente pelo medo do que os outros vão pensar. Existem outros motivos pelos quais não se conta: para preservar terceiros, para preservar o emprego, para preservar a privacidade, para se poupar de aborrecimentos e outros. Também é um erro pensar que algo é grave apenas por ser omitido. Nunca vou compartilhar com ninguém a cor do meu cocô e nem por isso esta é uma informação relevante.

Minha opinião pessoal é de que o aborto não deveria ser crime. E o fato de uma pessoa desejar que não seja crime não quer dizer que ela é a favor ou que faria. Ela é a favor do direito de escolha. Mas, para que caminhemos nessa direção, não pretendo fazer as mulheres que se submeteram a isso de boi de piranha. Não é peitando a sociedade e se expondo individualmente que se consegue esse tipo de mudança. Colocar a responsabilidade dessa mudança nas mulheres que fizeram aborto é responsabilizar a vítima. Não acho exigível colocar as coisas dessa forma, como se a obrigação de compartilhar estivesse relacionada com cidadania.

Todos estes argumentos seriam perfeitamente válidos em qualquer contexto, mas, só para reforçar, gostaria de lembrar que estamos falando do Brasil, um local onde roupas são responsabilizadas por estupros e pessoas que apoiam tortura e torturadores. Dentro desse contexto específico, alguém acha exigível que uma mulher evada sua privacidade dessa forma? Quem respondeu “sim” não tem muita noção de causa-consequência ou não tem muita noção da crueldade de julgamento com a qual mulher é tratada.

Curioso como algumas pessoas, geralmente homens, tratam o aborto. Parece que é algo divertido: vamos falar sobre isso! TEM QUE falar sobre isso. Parece que o simples fato de FALAR no assunto e trazê-lo à tona não é doloroso por si só: “Tem que falar! Tem que falar!”. Pois é, Madames, para muitas mulheres é doloroso demais falar no assunto, ainda que seja para receber apoio do interlocutor.

Não TEM QUE falar porra nenhuma, falar vem sendo o grande mal da sociedade moderna. Se você é famoso, se você tem voz, se você tem peso, falar pode mudar algo. Se você é vulnerável não acho exigível essa cobrança por falar. Há momentos onde é melhor calar. A menos que a mulher queira muito falar, melhor calar. Afinal, quem cala sempre pode mudar de ideia e falar, mas quem fala não pode “desdizer”.

Como homem não engravida, não posso dar um exemplo exatamente igual, mas vamos pensar em algo que provocasse muito sofrimento a um homem? Vamos imaginar que um homem foi estuprado por outro homem e não quer contar para ninguém pois só o fato de lembrar disso é doloroso. Só o fato de mais alguém saber o humilha. Será que gostariam de ler uma mulher escrevendo sobre a importância de falar para a evolução da sociedade? Será que gostariam de ser colocados na posição TEM QUE falar? Quando se passa por algo doloroso e pessoal, foda-se o mundo, tem que fazer o que for menos doloroso para a pessoa.

Para que aborto deixe de ser crime (pode até ser desencorajado, mas com prisão?) não tem que pressionar a coitada que fez um aborto a falar. Para mudar isso se pressiona quem está no poder e combatem argumentos idiotas como “se liberar vai ser usado como método anticoncepcional”, como se mulher optasse por fazer um procedimento sofrido, perigoso e incapacitante desse regularmente como escolha de vida. Ignorância se combate com informação, com educação, não com evasão de privacidade. Quem tem que falar é o Legislativo, que tem poder de mudar a realidade.

Fazer um aborto é uma decisão de caráter íntimo do casal, eu honestamente acho que não tem que ser conversado com mais ninguém, até porque expõe o seu/sua parceiro(a), que pode não querer ver isso compartilhado. Sair falando sobre aborto que fez me parece até desconsideração com cônjuge. É quase como contar que tem herpes ou alardear uma prática sexual. Sério mesmo, ninguém quer saber. Guarde esta informação para a intimidade do lar ou para poucos e bons amigos confidentes.

Uma pessoa que bate de frente com a sociedade não muda o mundo, ela é trucidada. E uma pessoa que passou por um baita dano emocional (não é fácil para NINGUÉM fazer um aborto, estejam avisados) não merece ser trucidada. É uma decisão que muitas vezes assombra a mulher para o resto da vida, tudo que ela não precisa é ganhar de brinde vários dedos apontando para ela e julgando, muitas vezes dedos que também fizeram um aborto mas optaram por não contar. Então, vamos pensar primeiro no bem estar de quem passou por algo traumático, pode ser? Como eu disse, não vai mudar o mundo, só vai chatear os envolvidos.

Se homem engravidasse, aborto não só seria permitido como ainda seria incentivado.

Para encher o saco com um discurso moralista, para provar que o Somir está certo e contar, mostrando seu nome real, sobre um aborto que você fez ou ainda para dizer que hoje em dia não se deve contar nada a ninguém, apenas conversar sobre o tempo: sally@desfavor.com

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