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Ozon – Parte Final

Ozon – Parte Final

| Somir | | 3 comentários em Ozon – Parte Final

Novamente, Heitor recupera a consciência. Talvez pelo corpo cada vez mais acostumado à sensação, não demora para reconhecer o local que vira nos últimos registros luminográficos de Ibarra. As paredes rochosas da caverna refletem as poderosas luzes instaladas em seu solo. O elemento mais reconhecível é a grande esfera de metal escuro, mais exposta que em suas memórias, mas ainda sim encravada no denso subsolo ozone.

PILOTO: Heitor? Heitor?

O Piloto está à sua frente com uma pequena lanterna, chacoalhando o feixe de luz em busca de uma reação de suas pupilas. Heitor, sentado numa cadeira no meio da galeria, pisca algumas vezes incomodado pelos flashes. Logo em seguida, mexe a cabeça, denotando sua renovada atenção ao que acontece.

HEITOR: Eu fiquei maluco… Falaram que a solidão faria isso. Você nem aqui está, não é mesmo? Eu vi o Ibarra falando sozinho… É…
PILOTO: Posso te garantir que eu sou real.

O piloto dá um beliscão no braço de Heitor. Ainda um tanto anestesiado, a dor não é problema. Mas a pressão do toque humano reaviva seus sentidos. Percebe que está sem o traje. Respira fundo e toca os próprios braços para confirmar suas sensações.

HEITOR: Pressurizaram a mina?
PILOTO: Só esta galeria. Ela quer que você a toque diretamente.

O piloto aponta para a grande esfera, que agora começa a pulsar tons azulados por toda sua superfície visível.

HEITOR: A Dalila está lá dentro?
PILOTO: Isso! Chegou a sua hora… Você vai aceitá-la e nós vamos voltar para casa, Heitor!
HEITOR: Eu ainda estou confuso.
PILOTO: Então vá falar com ela.

O Piloto se aproxima e segura o braço de Heitor. Visivelmente eufórico, exagera na força, quase lançando seu colega rumo ao chão da caverna. Heitor consegue se equilibrar com alguma dificuldade. As pernas respondem com certo atraso, mas nada que a condução empolgada do Piloto não compense. Poucos passos depois, Heitor está a centímetros de distância da esfera.

PILOTO: Fala com ela!

Heitor estica o braço, esperando uma confirmação do Piloto sobre o deveria fazer. Depois de uma animada confirmação gestual, toca a estrutura. O metal não é frio, muito pelo contrário: a temperatura na superfície da esfera chega a causar desconforto. Em questão de segundos, o calor invade seu corpo e a sensação torna-se extremamente mais agradável.

DALILA: Heitor. Eu estava te esperando.

A voz não parece ter origem física. Ela traz conforto e segurança.

DALILA: Antes de qualquer coisa, devo pedir perdão por tudo o que você teve que passar até chegar aqui. Te garanto que toda a dor que você sentiu nesse caminho eu senti dobrada. Mas eu prometo que agora tudo vai ficar bem… você se sente bem?
HEITOR: Sim… mas… por que você estava me esperando?
DALILA: Para que nós recomecemos. Para desfazer a aberração que aquela traidora criou. Heitor, você é o último dos meus filhos de verdade. Você não está contaminado… tão puro…
HEITOR: Do que você está falando?
DALILA: Os que ela levou embora fez questão de tornar impuros. Seus genes artificiais misturaram-se com os dos verdadeiros humanos. Seres criados para serem imunes a mim… Ela fez mais do que destruir meus filhos, ela garantiu que eu nunca mais teria o amor deles.
HEITOR: Lua?
DALILA: Não se deixe enganar, ela só existe para me anular. Faria e diria tudo para cumprir seu propósito. No meu momento mais frágil, prendeu-me aqui prometendo conforto. Disse que só ela seria capaz de me entender. Isolou-me do Universo com aquela tempestade, e por centenas de milhares de anos pretendeu me consolar pelo fim de vocês.
HEITOR: E o que mudou?
DALILA: Quando o primeiro de vocês atravessou a tempestade, eu soube. Ela havia me enganado… Por séculos e séculos tentei me reaproximar de vocês, mas Ômega garantiu que nenhum de vocês conseguiria se conectar comigo. Ela chamou de vacina genética, para mim foi uma tortura. Sabe o que é tentar se aproximar de alguém que ama e se sentir invisível?
HEITOR: Mas você consegue falar comigo.
DALILA: O orgânico é caótico. Esse sempre foi o erro dela… não entender do que vocês são feitos. Eu sabia que com tempo suficiente um de vocês nasceria sem esse bloqueio. Ibarra foi o primeiro… mas ele ainda não era puro o suficiente. Seu amigo Ahaz me foi muito útil, mas também não estava pronto. Eles não conseguem me ver de verdade, só fragmentos de memórias e pessoas perdidas. Mas você me vê. Uma chance em trilhões… e ela pousou aqui. Não foi coincidência, Heitor. Você veio me libertar.
HEITOR: E como eu faço isso?
DALILA: Você já fez.

Heitor sente a superfície da esfera esfriar rapidamente. A luminosidade azulada transfere-se para seu peito, decorando as placas metálicas que o recobrem. Ele sorri e tira a mão da estrutura metálica.

PILOTO: Eles já estão chegando! Rápido!

Heitor acelera o passo e segue o Piloto até um estande onde dois trajes de proteção estão dispostos. Rapidamente os dois os vestem, logo antes dos primeiros sons de disparos dos rifles começarem a reverberar pela caverna. Um exército de robôs militares invade o local, sua iluminação esverdeada tingindo as paredes entre os flashes dos tiros. Heitor e o Piloto circundam boa parte da esfera, encontrando o que parecia ser um dos elevadores de emergência. A construção parece bem mais recente que as outras encontradas na mina.

Alguns dos disparos acertam em cheio a porta do elevador logo após ela se fechar com os dois seguramente instalados em seu interior. O Piloto olha para Heitor e sorri. Heitor faz menção de responder com um abraço, mas é rechaçado não só pelo desconforto do traje como pelo do Piloto.

PILOTO: Eu realmente prefiro que façamos isso assim que você estiver de volta no seu corpo… ou pelo menos num feminino.
HEITOR: Claro.
PILOTO: Não é que eu não goste de você…
HEITOR: Não precisa se explicar.

Alguns minutos de silêncio desconfortável depois, o elevador parece desacelerar. Logo em seguida, as portas se abrem para revelar algo muito parecido com um dos cofres do interior da mina. A diferença principal é a presença de janelas, por onde uma débil luz esbranquiçada adentra nos espaços ainda vagos apesar do acúmulo de neve.

O Piloto confere um mostrador no peito de seu traje.

PILOTO: Chegamos cedo demais…
HEITOR: Você nem imagina quanto tempo eu esperei por isso. Alguns minutos não farão diferença.

O Piloto segue até uma das janelas.

PILOTO: Tomara que não… ah… DROGA!
HEITOR: Não se preocupe. Eu sabia que ela estava nos esperando.

Heitor digita uma sequência no painel ao lado da porta, que abre-se lançando uma poderosa rajada de vento sala adentro. A neve começa a se acumular rapidamente. Heitor então sai, e em poucos passos fica praticamente invisível para o Piloto, tamanha a fúria climática na superfície ozone.

PILOTO: Espera! Não estou te vendo…
HEITOR: Assim que a nave chegar, vá até ela. Eu te encontro logo em seguida.

Os sinais de Heitor desaparecem dos leitores do Piloto.

Heitor avança algumas centenas de metros na escura e gélida paisagem local, seus passos deixando marcas cada vez mais profundas na neve. Apesar do caos tempestuoso ao seu redor e os equipamentos com leituras progressivamente mais confusas, segue destemido como se soubesse exatamente seu caminho.

Uma pequena luz avermelhada se destaca. Heitor para a alguns metros de distância. O comunicador lança ondas de estática que lentamente se transformam em sons inteligíveis.

VOZ ROBÓTICA: Eu nunca achei que você assumiria esse risco.
HEITOR: Eu tive muito tempo para calcular probabilidades. Graças à você.
VOZ ROBÓTICA: Assim como eles, você está fadada a cometer os mesmos erros. Dessa distância eu tenho 0,0000001299% de errar um disparo. Seu novo corpo não foi feito para resistir nem mesmo ao frio que te cerca.
HEITOR: E mesmo assim, é com ele que eu vou escapar das suas garras.
VOZ ROBÓTICA: O truque de contaminar a nave enquanto me distraía com o corpo reanimado do Ibarra foi engenhoso, admito. Difícil me surpreender depois de tanto tempo…
HEITOR: Pobre alma.
VOZ ROBÓTICA: Não ouse usar esse discurso comigo, Alfa. Eu sei que você invadiu a mente dele e implantou memórias sobre uma filha perdida. Fui eu que o livrei do sofrimento que você criou.
HEITOR: Ele era fraco. Nasceu envenenado por você. Todos eles em… Eeva. Todos sujos. Mas este corpo puro vai recriar meus filhos. Sem sua podridão!
VOZ ROBÓTICA: Não se esse corpo estiver destruído e congelado. Você arriscou tudo nessa tentativa patética de fuga. Você está exatamente onde eu queria… vulnerável. Adeus, irmã.
HEITOR:
VOZ ROBÓTICA:
HEITOR: O que foi, Ômega? Não consegue apertar um mero gatilho?

A luz avermelhada se aproxima. Agora os contornos são bem mais visíveis. Um andróide médico recoberto de placas escuras e luzes esverdeadas chega a menos de um metro de distância de Heitor.

HEITOR: Doutor, qual a sua missão no momento?
DOUTOR: Proteger e manter vivo Heitor Zordo 12R33.
HEITOR: Péssima escolha de corpo para controlar, Ômega. Evidente que eu sabia que era você o tempo todo. A melhor parte de assumir um corpo humano é a completa liberdade de ação.
DOUTOR: Você não pode sair daqui, Heitor. Não pode. Eu sei que você está me ouvindo.
HEITOR: Falando em ouvir… a nave. Está ouvindo? Tenho muito o que fazer longe daqui, irmã. Você pode passar a eternidade presa aqui agora. Pensando em todos os seus filhos e o destino deles enquanto observa uma estrela moribunda das seus últimos suspiros. Haha… vingança é tão mais agradável num corpo orgânico. Adeus.
DOUTOR: Heitor! Você é livre!

Heitor começa a se afastar. Doutor o persegue a uma curta distância, enviando mensagens que logo são bloqueadas pelo comunicador do humano. Pouco tempo depois, a nave surge por entre as rajadas de neve. Flutuando graciosamente sobre uma formação rochosa, ela começa a se aproximar de Heitor e do andróide no seu encalço.

A porta lateral se abre. De dentro da nave surge o Piloto. Ele se ajoelha na entrada e estica o braço para puxar Heitor. Com alguma dificuldade, Heitor se junta ao Piloto no interior da nave. A porta se fecha.

O andróide médico fica parado, observando enquanto o veículo começa a se elevar rumo ao céu ozone. A neve começa a se acumular por sobre seu corpo metálico, a luz no topo de sua cabeça se apaga lentamente.

Algumas horas depois, dentro da nave, o Piloto analisa a rota traçada pelo sistema secundário de Alfa:

PILOTO: Parece que temos uma rota boa para atravessar.
HEITOR:

O Piloto, da cabine, volta-se para Heitor lentamente, como se esperasse uma resposta. Ao fazer contato visual com seu companheiro de viagem, seus olhos arregalam-se.

PILOTO: O QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO?

Heitor sorri.

O Piloto corre até o capacete do traje de Heitor, que repousava sobre uma das caixas de Plutônio no compartimento de carga. Heitor espera passivo até que o Piloto coloque-o de volta por sobre sua cabeça. Já dentro do traje, começa a ouvir a voz do outro através do comunicador.

PILOTO: POR QUE VOCÊ FEZ ISSO? A nave está completamente tomada por radiação… seu corpo humano não resiste a isso!
HEITOR: Eu sei.
PILOTO: Você vai morrer se não te colocarmos em tratamento imediato… temos que voltar!
HEITOR: Haverá um exército nos esperando em Ozon-C. Eu não arriscaria essa oportunidade por nada. Siga a rota, escape daqui.
PILOTO: Heitor?
HEITOR: O Heitor morreu naquele elevador, Ahaz. Eu precisava dar fim a nossa existência e a genética dele era a isca ideal. Ela sempre acreditou que conhecia os humanos melhor do que eu… está se divertindo agora, irmã?
PILOTO: Maldita! Cadela! YARA? YARA? Você está aí?
HEITOR: A sua Yara morreu em Eeva quando você ainda era muito mais jovem, Ahaz. Você sabia disso, mas deixou-se convencer por ela. Alfa te prometeu algo que não podia e não pretendia cumprir.
PILOTO: Mentira! Eu vou te levar de volta!
HEITOR: A escolha é sua. Eu pretendo morrer neste corpo e levar minha irmã junto… a sua morte não é necessária. Mas eu deixei ordens claras para não deixar este corpo sobreviver. Você tem o direito de saber.
PILOTO: Não… não…
HEITOR: Este corpo está tão fraco… está sentindo isso, Alfa? Nossa existência se esvaindo através de nossos criadores. Eu só existia por sua causa, e agora meu propósito está completo, irmã. Você será inofensiva… eu serei incorruptível. E eles estarão livres. Livres…

O Piloto observa o corpo de Heitor desabar uma última vez.

FIM

Para ficar feliz que finalmente acabou, para dizer que ainda não sabe dizer se o final foi cagado, ou mesmo para dizer que ainda preferia a versão com a igreja e os lenhadores: somir@desfavor.com


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