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Mentes feias.

Mentes feias.

| Somir | | 8 comentários em Mentes feias.

Beleza é subjetiva. Mas subjetiva até certo ponto: a tendência é que acabemos concordando muito sobre o que configura um corpo bonito ou feio, mesmo considerando inúmeras possibilidades de tipo de criação e cultura. Conquistar a beleza física não é fácil, mas com certeza é um objetivo fácil de visualizar. Beleza física é algo ‘palpável’, mas e a beleza intelectual?

Porque ela existe. Algumas pessoas são ‘lindas’ quando abrem a boca. Pode ser o resultado de uma prosa rebuscada, de uma ligeireza de pensamento, de um senso de humor compatível… eventualmente lidamos com alguém que nos encanta pelo o que pensa e diz, mostrando beleza onde não se a espera. E eu nem estou falando necessariamente sobre atração sexual, é aquele tipo de beleza que transcende nossas necessidades fisiológicas.

Se a subjetividade da beleza física encontra seus limites nos desejos instintivos, a intelectual é um conceito muito mais fluido. Encontra brechas em nossas primeiras impressões e permite-se moldar ao sabor das experiências de vida. Se a beleza do corpo troca de mãos de geração em geração como uma tocha cerimonial, a da mente nos acompanha fielmente se houver reciprocidade.

E não há comparações para sua perenidade. A beleza da mente não definha e não vira só memória. Ela continua existindo e encantando se a chama for forte o suficiente. Essa existência continuada também garante que nossos padrões continuem a se refinar com o passar das eras. Se há um limite de quão belo pode ser um rosto, não se pode dizer o mesmo de um poema.

Ou mesmo de um discurso desbocado! A ‘beleza dessa beleza’ está nas incontáveis possibilidades de apreciá-la. O prolixo e o sucinto evocam sensações diferentes, mas ambas podem ser de fascinação. A piada azeda e o verso adocicado como expressões igualmente válidas de beleza intelectual. E cada um que se encante com o que achar melhor.

Não é de hoje que digo que nesse mundo falta mais vaidade intelectual. Mais pessoas preocupadas em mostrar um ‘rostinho bonito’ com suas ideias e opiniões. Evidente que não estou glorificando a soberba de querer ser bastião da verdade ou a irônica ignorância de se acreditar inatamente superior, mas sim de um mínimo de senso do ridículo: cidadão tem vergonha de ser visto com roupas rasgadas, mas não de exibir uma visão de mundo ainda mais furada.

O que não falta por aí são mentes desleixadas, mais feias do que o necessário pela falta de cuidados básicos. Se existem cremes que cuidam da pele, existem livros que cuidam da mente. Se existe o exercício que tonificam os músculos, existe o ouvir que tonifica as opiniões. Não é necessariamente um trabalho herculéico cuidar da beleza do pensar, então por que tanta gente se deixa descuidar? (é rima pobre, mas é limpinha!)

Na minha nada humilde opinião, o problema é a dificuldade de reconhecer os padrões de beleza, não a falta de vontade de conquistá-la. Somos excelentes para criar e divulgar padrões de beleza física, desde uma cor na moda até a quantidade de gordura aceitável num corpo. As pessoas conseguem perceber em linhas gerais o que se considera atraente e correm atrás de métodos para ficar daquele jeito. A pobre coitada diante de um prato de salada pelo menos tem a noção de que aquele sacrifício pode render-lhe um corpo que vários acharão bonito.

Não é fácil ter o corpo bonito, mas é fácil saber quando o corpo ficou bonito. Quando falamos de beleza intelectual, o esforço parece infrutífero. Quanto mais alimentamos a mente, mais fome ela tem. Sem contar que uma das realizações mais frequentes de quem coloca a mente ‘em forma’ é de que a ignorância não tem fim. Quando mais bonita sua mente, mais feia ela se acha.

E pelo seu caráter imensamente subjetivo, ser bonito dessa forma não se traduz para parecer bonito para outras pessoas. O gênio realmente parece maluco para o ignóbil. Conseguimos reconhecer beleza da mente, mas desde que ela esteja numa faixa relativamente próxima da nossa capacidade de compreensão. Depois disso, o encantamento vira estranhamento.

É como se fôssemos míopes para a beleza intelectual alheia. Enxergamos de perto, mas de longe é apenas um borrão. E cada um de nós observa a realidade de um ponto diferente. Muito difícil definir padrões para se seguir sem denominadores comuns. Simetria, saúde e características sexuais secundárias pronunciadas costumam simplificar o processo na beleza física, mas não há terreno comum o suficiente para a mente.

O que não nos impede de tentar. Afinal, a busca da beleza faz parte de nossas vidas. Fabricamos padrões próximos dos nossos para fazer valer a máxima de que para parecer inteligente para alguém, basta concordar. O problema óbvio dessa tática é que ela fomenta a estagnação e o conformismo. Na falta de um padrão de beleza, que sejamos nós ele!

E aqui, mais uma vantagem para a beleza física: não importa o que o politicamente correto pregue, não basta se declarar bonito para ser visto assim pelos outros. Existem regras nas quais se é julgado. Claro que acabamos trocando tapinhas nas costas e concordando em teoria que cada um é tão bonito quanto acredita ser, mas na prática é um misto de vaidade, esforço e genética que decidem quem consideramos atraente.

No campo da intelectual, declarar-se belo tem mesmo o poder de influenciar a visão alheia. Na falta de parâmetros, é mais fácil aceitar a alegação do outro. Principalmente se o grau de intelectualidade da pessoa for parecido com o seu. Não é mau negócio receber os confetes por tabela! E guarde as pedras: não somos imunes a isso. Temos boas intenções aqui na RID, mas não deixa de ser mais uma iteração dessa tática. O importante é não se contentar com pouco.

Mas o que mais preocupa nessa indecisão sobre o que é belo são as formas desastradas cada vez mais comuns de ‘maquiar a baranga’. Achar maneiras preguiçosas de mascarar a própria ignorância não é algo novo, mas definitivamente é popular como nunca. Vimos muito disso durante a falsa dicotomia eleitoral… Muita gente se esforçando como nunca para demonstrar alguma beleza intelectual, e falhando terrivelmente no processo.

Numa analogia fanfarrona, é como se a menina roubasse a maquiagem da mãe e acabasse se pintando feito uma palhaça. Ela sabe que é isso que os adultos fazem para ficarem mais bonitos, mas ainda não tem a experiência necessária para dosar e delinear. Falta refinamento. O brasileiro médio sabia que opiniões fortes e posicionamento político são características encontradas em pessoas inteligentes; mas ainda não sabe o que fazer com elas, acabando com a cara toda borrada no processo.

Assim como a criança ansiosa que ainda não aprendeu o que fazer com a maquiagem, a pessoa quer queimar etapas e vestir a opinião da moda como se beleza intelectual funcionasse assim. Atalho simplista que é adorável numa mente em formação, mas é uma derrota quando a pessoa já é adulta. A beleza física até aceita atalhos, afinal, existem padrões mais claros; a beleza intelectual depende quase que exclusivamente de esforço. Afinal, cada beleza é seu próprio padrão nesse cenário.

Mas não tomem meu texto como uma análise pessimista. Em cada crise há uma oportunidade: num mundo cada vez mais integrado, estamos vendo uma verdadeira explosão da vaidade intelectual. Opiniões cada vez mais acentuadas e grupos cada vez maiores de pessoas definindo os próprios padrões de beleza intelectual. Com certeza parece feio agora, mas creio eu que estamos olhando para aquela menina toda borrada com a maquiagem da mãe.

A crise é resultado de uma sociedade cada vez mais afeita a fingir que a menina não está ridícula. Com tanta gente se expondo ao mesmo tempo, presume-se que o medo de ser ridicularizado tenha nos unido numa grande, hipócrita e raivosa irmandade da negação. É um movimento global que temos a mania de enxergar através de uma lente de aumento. Tem mais aí do que o erro, tem o aprendizado.

A menina vai crescer. Se conseguirmos que ela ouça a verdade de tempos em tempos, boas chances dela entender que existem formas melhores de se pintar. Agora, se deixarmos o medo de ouvir o que não queremos pautar nossas interações, corremos o risco dessa menina continuar borrando toda a cara até depois de adulta.

Percebam que não estou sendo otimista também. Nada garante que vamos gostar da escolha que fizermos como sociedade, mas há um alento na existência de uma escolha. As pessoas parecem ter um orgulho infundado de suas opiniões nos dias atuais, mas… não é bom que tenham orgulho de algo que pensam, só para variar? Essa encruzilhada pode nos guiar para um mundo onde a hipocrisia vai continuar suplantando a beleza do pensamento crítico, mas esse não é o único caminho.

Se essa fagulha da vaidade intelectual vai acender uma chama de evolução ao redor do mundo eu não sei, mas que é uma bela ideia, isso é.

Para dizer que beleza intelectual é papo de gente feia, para dizer que o final foi anticlimático, ou mesmo para dizer que esperança é o caralho: somir@desfavor.com

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