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Vida nova.

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| Somir | | 3 comentários em Vida nova.

Não tenho certeza de quanto tempo se passará até que essa carta seja lida por outra pessoa, mas eu espero que não seja muito. Não sei mais em que ano eu deixei essa mensagem ou mesmo… o meu nome. Se tudo ocorreu como eu imagino que ocorreu, você acaba de ver uma cena difícil de se explicar. E espero também que você leve em consideração essa surpresa e estranhamento com a situação para entender melhor o que eu passei.

Mas, vamos começar pelo começo. Pelo menos a parte que eu acredito ser relevante para você. Por uma série de motivos que nem me vem mais na cabeça, memória confusa, entrei em contato com relatos de diversas pessoas sobre alguns fenômenos inexplicáveis que aconteciam com relativa frequência nesta região. Desde sensações estranhas de viajantes até mesmo avistamentos de luzes estranhas no solo por aviões. Fui visitar o local com uma equipe de especialistas para fazer um relatório.

Como vocês com certeza sabem agora, não é fácil de chegar. Foram dias de viagem precária por essa infinidade de rios e córregos, insetos, animais selvagens e um calor infernal. Lembro de conjecturar com a bióloga da equipe se não eram essas as condições que criavam os relatos, eu mesmo estava com sensações estranhas, mas nesse clima… ela me lembrou bem de que os relatos vinham dos nativos, que nasceram e cresceram por aqui. Menciono isso porque a tentação de achar que o que vocês viram não passa de uma alucinação gerada por calor, umidade e cansaço pode ser grande. Não é isso. Não mesmo.

Já havia esquecido o que era a civilização quando tivemos contato com os primeiros sinais de que algo realmente estava fora do padrão por aqui. Se o local continuou intacto no tempo entre a minha carta e a sua leitura, você já deve ter notado como as árvores ficam estranhamente retorcidas no raio de alguns quilômetros. A folhagem tem uma coloração distinta, mais vívida. Prestaram atenção no som dos animais? Ele praticamente desaparece quanto mais se embrenha nessa área. Nem mesmo o zunido dos insetos se faz tão presente.

E segundo nossa especialista, a pouca vida animal encontrada nesses arredores é formada apenas por espécies diferentes das encontradas em qualquer outro lugar do mundo. Lembro dela fascinada por um besouro avermelhado, enorme. Ficou horas pensando em como chamaria essa nova espécie… disse que faria uma brincadeira com o nome do filho. Pobre alma… seja como for, meu objetivo e o de alguns homens que me acompanhavam nessa expedição não estava ligado à diversidade natural. Captávamos um sinal de rádio bem focado, numa faixa bem diferente do que seria esperado de ruídos naturais.

E quando mais andávamos, mais forte ele se tornava. Nosso arqueólogo nos atrasava a cada minuto, encontrando pedaços do que dizia ser artefatos de um povo antigo local. Fascinado pelo avanço dos materiais encontrados, alguns inclusive impossíveis de serem encontrados nas redondezas, mal escutava nossas sugestões sobre serem mero lixo de visitantes e pesquisadores prévios. Aliás, foi esse encanto pelas novidades locais que o fez ser o primeiro a encontrar um destino trágico. Torço para que pelo menos algo parecido não tenha acontecido com algum de vocês, não podíamos deixar avisos.

Não sabíamos o que havia aqui. Nenhuma ideia mesmo. Quando escutamos os gritos do arqueólogo, mal sabíamos distinguir entre pânico e euforia. Naquele momento, a segunda. Corremos até ele, meus homens preparados para resolver a situação até mesmo se fosse necessário o uso da força. O homem estava extasiado diante uma pequena construção, a que vocês devem estar vendo agora mesmo. Quando a encontrei, era uma pequena cabana feita de tijolos de barro, telhado de palha colapsado, coberta de cipós e trepadeiras de todos os tipos. Parecia abandonada há muito tempo.

Muito tempo mesmo, havia uma grande árvore crescendo por dentro do lugar, a copa escondendo o céu entrelaçada com as diversas outras ao redor, todas tão distorcidas… o silêncio ao redor dela era sepulcral. Isso é, o meu e de meus homens, os cientistas pareciam crianças. A bióloga filmando insetos multicoloridos que se espalhavam nas imediações, gravando suas impressões. O arqueólogo tirava incontáveis fotos, pedindo para seu assistente anotar tudo o que pudesse. Nosso especialista fazia testes com os pulsos do sinal de rádio, surpreso com algo que por mais que tentasse explicar, caiu em ouvidos moucos para nós.

Com todos trabalhando dessa forma, e meus homens cercando a área para evitar surpresas, considerei meu trabalho feito. Só pensava em como organizar o trajeto de volta assim que as cabeças pensantes coletassem informações suficientes. Com a chegada da noite, montamos acampamento, seguindo as instruções do arqueologista de não ficarmos muito próximos da cabana. Todos assentados para o descanso, ouvimos um som metálico poderoso. Pelo protocolo, eu e minha equipe deveríamos sair primeiro e assegurar o perímetro antes de deixar os cientistas saírem. Mas, eles não conheciam o protocolo, apesar dos meus incansáveis treinamentos.

O arqueólogo não estava em sua barraca. O assistente idem. Corremos até a cabana, alguns metros acima. Dela vinha uma iluminação amarelada débil, como se houvesse algo emitindo aquela luz de dentro. Chamamos pelo arqueólogo, sem sucesso. Um dos meus homens seguiu até a entrada, iluminando com a lanterna de seu rifle. Só vimos o feixe de luz dele girando no ar e desaparecendo rapidamente. A situação havia mudado, eu já não estava mais no comando. Um dos soldados, o de mais alta patente, assumiu o controle e me deu ordens explícitas de avisar nossos contratantes junto com o oficial de comunicações.

Voltei até o acampamento imediatamente. Após poucos segundos, começamos a ouvir tiros. E aí sim gritos de pânico com a voz do arqueólogo. Não demorou muito para ouvir o resto do time que ficara na cabana gritando também, um por um. Lembro da bióloga começando a correr mata adentro, apesar dos meus protestos. Mas antes que ela pudesse sumir totalmente de nossa vista, um flash de luz quase me cega. Ainda com os olhos doloridos, sinto-me preso. Consigo ver o oficial de comunicações parado na minha frente, expressão distante. Não consigo me mover ou falar nada, e por algum tempo, nem ele.

Vejo, impotente, o arqueólogo, ou algo muito parecido com ele, atravessar as árvores e entrar no nosso acampamento. Algo não estava certo. A pele dele parecia solta da carne, o tronco virado de uma forma nem um pouco natural. Ele seguiu, passos cambaleantes, até a bióloga, no limiar da minha visão periférica… ela também estática. O que aconteceu depois… eu não gosto nem de lembrar para escrever. Com apenas um toque de sua mão, o arqueólogo ou seja lá o que tomou conta dele fez o corpo da mulher se contorcer de forma horrível, pele rasgando enquanto seus membros se reorganizavam de uma forma assustadora.

Queria gritar, mas não conseguia. Ela desaba, finalmente. Corpo se liquefazendo diante de meus olhos incrédulos. O arqueólogo se volta para nós, corpo cada vez mais retorcido e passos mais confusos. Parece uma eternidade até ele finalmente alcançar o técnico de comunicações, e mais longo ainda o mesmo processo se repetindo com o rapaz. Um toque na pele descoberta, seu corpo se descontrolando automaticamente num processo que parecia terrivelmente doloroso. Logo em seguida, sua pele começa a se desfazer, seguida pela carne e os ossos. O ser, agora irreconhecível, volta sua atenção para mim.

Ele, com imensa dificuldade, toca meu rosto. Suas mãos úmidas de sangue não duram muito tempo sobre a minha pele antes de tomarem o mesmo rumo dos outros dois que vi se desfazerem na minha frente. Com um grunhido sofrido, o que eu conheci como o arqueólogo da nossa expedição vira uma poça de resíduos humanos. Mas eu… eu não sinto nenhuma mudança no meu corpo. Apenas sono, muito sono.

Já é dia quando sinto meu corpo novamente. Acordo como se tivesse dormido por dias, e talvez tenha sido o caso, estava coberto por folhas e aqueles insetos estranhos. Meus movimentos recuperados, limpo aquela bagunça e expulso meus inquilinos temporários. Não havia nenhum sinal de ferimento ou mesmo picadas no meu corpo. As barracas estavam lá, algumas ainda de pé, mas igualmente com sinais de exposição prolongada aos elementos. No chão da floresta, algumas manchas avermelhadas já ressecadas. O silêncio estranho continuava lá.

Ainda atônito e sentindo o corpo extenuado, andei vagarosamente de volta ao local onde estava a cabana. O que restava dela, pelo menos. A maioria da estrutura havia desabado, o que ainda estava de pé tinha inúmeras marcas de tiros. Ao redor, várias manchas como aquelas vistas no acampamento. Eu me aproximo um pouco mais, e posso notar algo reluzindo no meio dos escombros, refletindo a pouca luz solar que ainda passava pela cobertura vegetal.

Parecia metálico, imaginei ser uma das armas dos soldados ou mesmo um dos equipamentos científicos, mas era algo diferente. Com os cacos da construção e a folhagem morta tiradas de cima, revelou-se uma espécie de disco impecavelmente liso, muito mais pesado do que parecia. Nele eram visíveis padrões de reflexão de luz incompatíveis com a superfície, era como se os raios de sol batessem e fossem guiados por caminhos. Fiquei encarando aquele disco por vários minutos. Até que senti algo finalmente fazendo sentido… era como se os caminhos da luz pelo disco tivessem um padrão, e como se… significassem algo para um olho treinado. Não sei como, mas os padrões falaram comigo. Assim como estão falando com você. Incrível, não? O que eu descobri me foi dito sem nenhuma introdução, sem nenhuma humanização, o erro que estou tentando corrigir dessa vez.

É algo muito difícil de lidar, e é fácil odiar quem faz algo assim com você. Não me odeie, eu, assim como você, fui forçado a estar nessa situação. Isso aqui é o começo de tudo. Este disco que você segura. Ele foi feito por alguém, não sei quando, com o único objetivo de espalhar a vida pelo universo. E para fazer isso, ele precisa fazer muitas… experiências… com a matéria local. Engraçado imaginar que a vida neste planeta começou aqui, neste ponto. E eu sei disso porque por mais que você tente, não vai conseguir afastá-lo da cabana. Que aliás, deve ter sido construída pelo último que o controlou antes das mãos curiosas de nosso arqueólogo.

O disco fica consideravelmente mais pesado a cada passo que se dá para longe deste ponto. Sem contar a sensação horrível que só passa quando ele volta exatamente para cá. Não sei explicar o que acontece. O que eu sei é que a parte boa é nunca mais ficar doente, cansado, ter sede ou fome. Parece que o próprio ar que você respira te sustenta. A parte ruim é que sair de perto dele vai te deixar daquele jeito, todo torto, apodrecendo de dentro para fora, e pior… contagioso. Sinto muito pelo o que eu devo ter feito com as pessoas que estavam com você. É mais forte que eu, mas pelo o que eu entendi e devo ter colocado em prática há pouco tempo atrás, minha única alternativa era encontrar uma nova cobaia para o disco. Pelo tempo que ele precisar.

Imagino o alívio que senti ao provar para ele que você serviria no meu lugar. Desejo boa sorte para você. E que você possa deixar uma mensagem mais esclarecedora para o próximo…

Para dizer que não entendeu porque a coluna veio para a quarta, para dizer que não entendeu nem a história mesmo, ou mesmo para dizer que essa coisa de disco saiu de moda faz tempo: somir@desfavor.com

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