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A frase.

A frase.

| Somir | | 4 comentários em A frase.

O sol acabara de se por em São Paulo, a cidade quieta como nunca. Nas ruas não haviam congestionamentos, as calçadas vazias, lojas fechadas. No horizonte, milhares de janelas escuras. Podia-se ouvir o latido de cachorros irrequietos há quilômetros de distância. Dentro de um centro comunitário, algumas dezenas de pessoas, principalmente idosos e crianças esperavam pelas palavras de um homem posicionado diante do microfone no palanque. O burburinho da sala cede rapidamente quando o homem pigarreia por atenção.

“Boa noite, se é que podemos chamar de boa uma situação assim… para quem não me conhece, meu nome é Charles Nogueira, eu sou… ou era repórter de um grande jornal durante os acontecimentos que nos trouxeram até aqui. Eu e meus colegas que estão sentados aqui nas primeiras fileiras, o Paulo, o Jefferson e a Adriana… nós que espalhamos os cartazes pela vizinhança. Fico feliz que vocês tenham comparecido, numa situação dessas eu acredito que temos que nos unir, apesar do medo. Conversando com outras pessoas que não foram afetadas, eu percebi que tinha muita coisa mal explicada sobre a Depressão, e ainda mais agora que nem a internet parece mais funcionar, é essencial que todos saibam bem o que aconteceu.”

Uma senhora, numa das primeiras fileiras, ergue o braço. Charles mostra a mão espalmada, sinalizando um pedido de espera.

“Eu pretendo responder todas as perguntas que puder, mas depois de falar o que eu preciso agora. Então eu peço que a senhora e todos os outros presentes esperem um pouco, senão corremos o risco de não passar a informação correta. Vamos começar assim: sim, está desse jeito no mundo todo. Pela concentração de pessoas, espalhou-se mais rápido em grandes cidades como a nossa, mas até onde eu fiquei sabendo, nem as áreas rurais escaparam ilesas. Com base nos últimos dados que eu coletei de colegas pelo rádio, a coisa é generalizada e ninguém achou solução até agora.”

Charles busca por uma folha específica no maço que mantinha sobre a mesa ao lado, assim que a encontra, recomeça:

“Mas não é uma doença, pelo menos ninguém provou que era um vírus ou uma bactéria, não passa pelo ar ou contamina qualquer coisa. E considerando como ficam aqueles que ficam com a Depressão depois de um tempo, não é mais tão perigoso assim nos encontrarmos em público. O que eu fiquei sabendo é que começou no Japão. Até encontrei a primeira reportagem sobre o evento, um vídeo mostrando umas dez pessoas sentadas ou deitadas no meio da calçada do centro comercial da cidade. Acharam que era protesto, foram entrevistar um dos caídos… e bom, estava ao vivo. Milhares de pessoas ouviram, e começou tudo. Por sorte eu não falo japonês e pude ver o vídeo sem maiores problemas. Um amigo nosso, o Carlos, falava… a gente viu antes dos governos banirem os meios de comunicação.”

Adriana, sentada de frente para o palanque, começa a chorar. O homem ao lado, Paulo, começa a consolá-la.

“Perdemos muitos dos nossos. Todo mundo aqui deve ter perdido alguém pra Depressão. Então é importante que nos protejamos, que cuidemos dos que sobraram, certo? Vamos quebrar um mito agora mesmo: isso te pega mesmo se você ler a frase. O que desencadeia o processo é entender a informação. Aposto que temos muitos analfabetos aqui. Nesse caso, é uma vantagem enorme para a sobrevivência. Eu obviamente sei ler e escrever, assim como meus amigos aqui, mas demos sorte do Jefferson… valeu amigo… do Jefferson ter notado logo o processo e ter nos alertado para tomarmos precauções. Jeff, você vem explicar melhor o que é a Depressão?”

Jefferson levanta-se e toma o lugar de Charles no palanque.

“Boa noite… vocês vão me perdoar se eu não tiver resposta pra tudo, mas pelo jeito que funciona, eu tive que tomar muito cuidado para não ouvir ou ler demais nessas últimas semanas. O que eu entendi foi o seguinte: quando você ouve a frase que a pessoa que já está com a Depressão diz, quando você entende o que ela quer dizer, não demora mais do que meia hora para você sentir os sintomas. Tem gente que desmonta na mesma hora. Quem fica com isso perde toda a vontade de agir, ficando cada vez mais quieto e imóvel até deixar de fazer coisas básicas como se alimentar ou se proteger de perigos. Nem todo mundo fica choroso, nem todo mundo fica com uma expressão triste. Depende muito de como cada um lida com a frase. Tem quem entre em choque, tem quem fique desesperado. Não, eu não sei como é a frase toda, até porque não estaria aqui se soubesse. O que eu sei é que ela precisa ser ouvida ou lida completamente para ter o efeito. Os que ouvem são perigosos por mais ou menos umas duas horas antes de cessar completamente suas tentativas de comunicação. E nessas horas, o certo é isolar a pessoa e evitar que ela tenha acesso a você de qualquer forma necessária, por mais querida que ela seja para você. Se ela te disser ou escrever a frase, você vai ficar do mesmo jeito. Ninguém parece ser imune. Agora parece que as coisas estão mais tranquilas, mas eu ainda sugiro andar nas ruas com proteção de ouvido e tomar muito cuidado para não focar a atenção em nada escrito depois dos primeiros casos. Mesmo que não tenha mais gente dizendo ou escrevendo a frase por aí, é muito importante se proteger agora. Tape os ouvidos, olhe pro chão, é o jeito mais seguro. Obrigado.”

Charles toca o ombro do amigo, que sorri de volta. Jefferson volta para sua cadeira, Charles retoma a palavra.

“Não acho nem saudável especular que frase seja essa, ou o que tenha feito ela tão poderosa assim, mas é importante ressaltar que ela não parece ser uma sequência de palavras muito comum. Eu escutei a versão em japonês, não me pareceu longa. O meu amigo que falava a língua e ouviu junto, para a minha sorte, foi um daqueles que reagiu em choque e não tentou repeti-la logo depois de ouvir. Mas ele chegou a falar, quase que pensando alto, que nada fazia sentido mais… ele logo caiu sentado no chão e só saiu dali carregado. Eu nunca vou esquecer a expressão dele. Os olhos imediatamente procurando o vazio, a boca aberta, o corpo se retraindo… muito estranho. E eu entendo que gere curiosidade, às vezes dá vontade de saber logo o que diabos é essa frase e descobrir o efeito que ela causa de verdade. Acho que muitos aqui compartilham comigo esse desejo, às vezes parece que tudo o que estamos vivendo é uma mentira e a verdade, quando descoberta, faz com que a vida toda perca a graça e o sentido na hora. Mas, assim como nós, tem mais gente ao redor do mundo que de uma forma ou de outra não foi impactada pela frase, e eu acredito agora, mais do que nunca, que precisamos nos unir e encontrar o nosso sentido nesse mundo que ficou completamente maluco.”

Um senhor, aparentando seus sessenta anos de idade, levanta a mão. Charles prepara-se para impedi-lo de falar, mas não o faz a tempo:

“Rapaz, você fala bonito… mas eu não entendi nada. Eu só sei que a minha véia e meus três filhos pararam de fazer tudo, da noite pro dia. A véia não aguentou não. Meu menino mais velho deixou essas duas meninas pra eu cuidar, não tenho mais como conseguir comida, acabou tudo nos mercados. Minhas netinhas estão magrinhas demais…”

Charles respira fundo. Acena em concordância com a cabeça.

“Ok, nós prometemos e vamos entregar várias latas de comida para todos vocês, conseguimos muitas no estoque de uma fábrica no interior. Mas é importante discutirmos também nossas estratégias para reorganizar uma sociedade e…”

A senhora que levantou a mão no começo do discurso de Charles interrompe:

“Pode dar a comida pra gente? Eu estou com fome… faz dois dias que eu mal como, moço…”

Charles sorri, resignado.

“Podem se servir. Continuamos depois…”

Os presentes começam a se aglomerar ao redor de uma pilha de latas de carnes e vegetais enlatados, as crianças disparando na frente. Há um princípio de tumulto, mas logo as coisas se acalmam. Alguns, com sacolas cheias, já começam a ir embora, apesar da insistência de Charles e seus amigos para mais algum tempo de conversa. Depois de alguns minutos, apenas metade do quórum inicial se mantém. Com a ajuda de um abridor de latas, forma-se uma roda no meio do salão para o consumo imediato dos alimentos. As crianças servem-se fartamente, os idosos começam a conversar entre si. Charles aproveita a situação para pedir a palavra mais uma vez:

“Se nos organizarmos, podemos até encontrar mais pessoas, nos reunirmos numa cidade menor e tentar colocar as coisas em funcionamento. O Paulo estava dizendo agora de pouco que sem manutenção, a energia e a água encanada não vão durar mais do que algumas semanas. Precisamos de algum especialista em…”

Uma das crianças, um garoto maltrapilho que parecia desacompanhado até ali, entre uma garfada e outra de um presunto enlatado, mal termina de mastigar antes de interromper Charles:

“Tio, posso levar as latas pra casa?”

“Você pode comer aqui sem problemas… mas pode levar sim.”

“Minha mãe eu acho que está com fome…”

“Ela não veio?”

“Não, ontem ela deitou na cama e ficou lá…”

Charles e os outros presentes se entreolham, entristecidos. Uma senhora que estava por perto abraça o menino, que parece confuso com o gesto.

“Se ela acordar e eu não estiver em casa, vai brigar…”

A senhora sorri e passa a mão na cabeça do jovem.

“Eu tenho certeza que ela não vai ficar brava com você. Vamos fazer assim, eu volto com você e te ajudo a levar mais comida, tá bom?”

O menino sorri de volta. Um pouco de esperança preenche o ambiente.

“Tia, o que quer dizer quando ela diz que


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