Mais uma rodada…
Matias dá o último gole. O chopp desce fácil após um maçante dia de trabalho. Na mesa, a companhia de mais dois colegas de setor: Júlio, um homenzarrão tão alto quanto largo, riso fácil e poucas preocupações na cabeça; e Nanda, distante e enigmática como de costume. Reservada, abria-se apenas em discussões filosóficas decorrentes de excessos nos happy hours da turma.
MATIAS: Vou pegar mais uma, quem quer mais?
JÚLIO: Mais uma pra mim!
NANDA: Quero algo mais forte. O que você sugere?
MATIAS: Pro seu tamanho, uma caipirinha já resolve…
JÚLIO: Tá querendo ficar bem louca hoje, Nandinha?
NANDA: Eu sinto que estou chegando perto de algo…
MATIAS: Segura aí, que eu adoro quando você começa a pirar com essas coisas!
Matias volta rapidamente com dois chopps e uma caipirinha dupla, que coloca diante da mulher, aparentemente perdida em seus pensamentos.
MATIAS: Ok, estávamos falando sobre realidade virtual.
JÚLIO: Não era sobre pornô virtual?
NANDA: Você foi para esse tema sozinho, eu ainda estou pensando sobre a ideia de tudo isso ser uma simulação mesmo.
MATIAS: Se fosse, como provaríamos?
JÚLIO: Vão começar com papo chato, né?
MATIAS: Essa aí nunca fala, deixa ela se soltar um pouco. Manda ver, Nanda.
NANDA: A natureza da simulação é ser indistinguível da realidade, não?
JÚLIO: Opa!
MATIAS: O que isso quer dizer?
NANDA: E se… a própria realidade fosse a prova da simulação, e o que imaginamos que seja a simulação… fosse a realidade?
JÚLIO: Botaram alguma coisa nessa caipirinha, hein?
MATIAS: É, eu não estou acompanhando, Nanda.
NANDA: O que é esse copo de chopp? Ele é real?
Matias toma um gole.
MATIAS: Sim.
JÚLIO: Hahaha!
NANDA: O que é real é você achando que esse copo é real, e só isso. É que eu não sei colocar em palavras a ideia que está me vindo na cabeça.
JÚLIO: Bebe mais.
MATIAS: É como se…
Matias segura o copo diante do rosto, olhar fixo no líquido. A cena é observada por vários segundos pelos seus dois acompanhantes.
JÚLIO: E aí, achou a Matrix?
NANDA: Você está entendendo, não está?
MATIAS: Mas eu não sei explicar também… tem mais, tem mais coisa.
JÚLIO: Tem o chopp esquentando, seus nerds!
Matias fica em silêncio novamente. Nanda e Júlio voltam a beber, ainda curiosos com o comportamento de Matias. Após quase um minuto de silêncio, ele segura o copo com as duas mãos, desce de volta até a mesa e olha para o vazio, com uma cara de espanto.
NANDA: O que foi?
Ele, ainda sem dizer uma palavra, afasta as mãos do copo, agora repousado. Logo a seguir, o copo começa a flutuar. Poucos milímetros primeiro, mas ganhando velocidade para cima. Nanda e Júlio ficam embasbacados.
MATIAS: Entendi.
NANDA: O que é isso?
JÚLIO: Porra, bebi demais…
Matias sorri, e sem cortar contato visual com o copo, parece deliciar-se com a cena de duas asas de vidro brotarem do recipiente, por mágica. As asas são móveis e ágeis, de forma impossível para o material. Elas começam a chacoalhar, sustentando o copo no ar. Em poucos segundos, o copo começa a voar pelo bar tal qual um pássaro de vidro. Nanda e Júlio parecem incrédulos.
Sentimento compartilhado pelos outros ocupantes locais, num misto de espanto e pânico, ninguém deixa de reagir à cena fantástica. A visão de Matias abandona o copo, que agora voa a esmo pelo local, e concentra-se novamente na mesa. Com as mãos espalmadas, ele toca a madeira.
NANDA: Matias, o que é isso?
A mesa instantaneamente torna-se dourada. Júlio se assusta e num movimento brusco, bate o braço em sua superfície, que fica amassada com o golpe.
JÚLIO: Caralho, eu tô passando mal… a mesa é de ouro?
Nanda levanta-se de sua cadeira e vai até Matias, ainda rindo sozinho das cenas que presencia. O resto dos frequentadores ou fugiu dali, ou está olhando na direção dele em choque.
NANDA: Era isso que eu estava pensando, mas… como você conseguiu?
MATIAS: Eu não… aliás, eu sei. Eu estou lendo os seus pensamentos. Todos… todos eles? Uau…
NANDA: Espera! Espera! Não faça isso.
MATIAS: Está todo mundo falando comigo ao mesmo tempo. Silêncio!
Matias tapa os ouvidos com uma nítida expressão de desconforto.
NANDA: Calma, calma! Júlio!
JÚLIO: Eu… eu não sei o que está acontecendo.
MATIAS: SILÊNCIO!
Nanda tenta acalmar Matias, mas sua voz não funciona. Todo o ambiente está no mais absoluto silêncio. Ela se vira para Julio, que parece estar gritando para se testar, igualmente sem emitir sons.
MATIAS: Isso não está aqui.
O bar, conhecido dos três nos mais mínimos detalhes há anos, começa a se desfazer, grão por grão. Todos os objetos, incluindo paredes e chão, vão se desintegrando feito areia sendo carregada pelo vento, numa velocidade exponencial. Em pouco tempo, apenas os três estão se vendo, com um horizonte negro infinito para todos os lados que se olhe.
NANDA: O que você fez?
JÚLIO: Isso é de verdade? Isso está acontecendo mesmo?
MATIAS: Eu consigo montar de novo. Eu consigo. Eu só não quero.
NANDA: Matias, você está assustando a gente.
MATIAS: Porque você me fez pensar nisso? Você não sabia?
NANDA: Sabia do quê?
MATIAS: Que só tem um pensamento entre a realidade e fantasia. Que se você pensar nele, tudo se desfaz de uma só vez. Como eu vou voltar para o mundo agora que eu sei? Como? É tudo mentira. É tudo só pra ver o que nós fazemos!
NANDA: O que você pensou para fazer tudo isso?
MATIAS: Não existem palavras para isso. Eu só vi. Eu só vi que a única realidade era a que eu criava. Vocês não estão aqui, sabiam?
NANDA: Matias, você precisa deixar a gente voltar.
MATIAS: Vocês nunca saíram. Isso é a mesma coisa.
JÚLIO: Eu tenho mulher, eu tenho dois filhos… Matias, não sei o que é isso que vocẽs estão falando, mas tira a gente daqui, deixa eu voltar!
MATIAS: Eu posso fazer tudo. Vamos voltar. Mas nunca mais vai ter graça. Quando você sai dessa, vai para outra. A realidade é aqui. É só isso.
NANDA: Então não lembra, então não deixa a gente lembrar.
MATIAS: O tempo… o tempo é meu. Ele vai para todos os lados ao mesmo tempo. É só eu não pegar esse caminho de novo. Isso!
—
JÚLIO: Tem o chopp esquentando, seus nerds!
Matias fica em silêncio novamente. Nanda e Júlio voltam a beber, ainda curiosos com o comportamento de Matias.
MATIAS: Bem louco… sabem quando parece que você acabou de ver uma coisa repetida…
NANDA: Deja vu?
MATIAS: Isso!
JÚLIO: É falha na Matrix! Hahaha!
NANDA: Ainda tem alguma coisa que eu não consigo explicar… é como se a única coisa que estivesse nos segurando fosse…
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JÚLIO: Tem o chopp esquentando, seus nerds!
Matias fica em silêncio novamente. Nanda e Júlio voltam a beber, ainda curiosos com o comportamento de Matias.
MATIAS: Bem louco…
JÚLIO: Deja vu?
MATIAS: Você também sentiu?
JÚLIO: Estranho… às vezes parece que a gente está fazendo as mesmas coisas há mil anos, sabia?
NANDA: E se…
Para dizer que a conta vai ficar bem cara, para dizer que não entendeu nada, ou mesmo para dizer que o Júlio não merece essa turma: somir@desfavor.com
Etiquetas: contos
Thayná
Acabei de conhecer o blog pelo post “textão” e tenho que dizer que adorei!!
Esse texto ficou do caralho tbm!! No início confesso que não estava entendendo muito mas depois tudo se fechou, é exatamente assim uma sensação de déjà vu, e eu já tive tantas… nossa hahaha
Ivo
Pelo visto, a cerveja, alem de quente, foi mal tomada. E a mistura não fez nada bem.
Victor S.
Tenho que apresentar essa história pros meus amigos que gostam de sonhar com um mundo paralelo, e duvidar da real existência de tudo e de todos, eles devem se drogar junto com você! haha
Somir
Drogas até te levam para mundos paralelos, mas você fica hospedado nos piores hotéis…
Cath
Melhor analogia. Sobriedade é a droga mais potente.
Desfavorecido
Matias não devia ter tomado a pílula vermelha.
Somir
Eu acho que ele já seguiu esse conselho, mas teve que mudar de ideia.