Doação premiada.

Sally e Somir concordam que filantropia faz bem para o mundo. Generosidade com aqueles que menos tem é uma excelente qualidade de algumas pessoas. Porém, na hora da divulgação do ato filantrópico, os dois não se dão mais. Os impopulares doam sua opinião.

Tema de hoje: tem menos mérito quem faz alarde da sua filantropia?

SOMIR

Não. Sagrado direito das pessoas de quererem seu confete. Somos seres sociais, e passa longe de ser uma surpresa para qualquer um de nós que pessoas gostam de reconhecimento pelo o que fazem. Caso não tenha algo meio torto com vocẽ, ajudar alguém e ser agradecido e admirado por isso é uma sensação excelente. A posição da Sally aqui é meio como dizer que gosta mais de sorvete quem faz careta ao comer! Não tira mérito algum, até porque o mérito não está na discrição sobre o ato.

É mais discreto quem faz filantropia e fica quieto sobre isso? É. Eu pessoalmente gosto de pessoas discretas, me geram mais identificação e mais tranquilidade no trato. Mas, não é o fato de eu gostar mais ou menos de um traço de personalidade que vai modificar minha visão sobre o ato da filantropia em si. Não tem gente que vem te contar tudo o que faz? Não tem gente que é mais reservada? Você pode até ter suas preferências de com quem vai conviver, mas os atos de ambas podem ser exatamente os mesmos, mudando apenas a forma de comunicação sobre eles.

Você, como a maioria das pessoas, também deve compartilhar da opinião que há algo mal explicado em quem faz propaganda da própria caridade. Se só queria o bem do outro, por que alardear? Parece egoísmo, usar a tragédia alheia para se promover, não? Não vou te dizer que a sua vida foi uma mentira até aqui e todo esse sentimento natural de desconfiança com o filantropo barulhento está totalmente errado, mas muito cuidado ao responder a pergunta da coluna de hoje apenas com o instinto inicial. Isso vem tão naturalmente por dois motivos: medo de inadequação social e uma saudável capacidade de desconfiar da boa intenção alheia.

E ambos não querem dizer que quem chamou atenção para sua caridade estivesse menos interessado no bem estar alheio do que aquele que não disse nada. Vamos começar com inadequação social: fazer o bem para outras pessoas costuma nos dar recompensas de bem estar interno porque a interação social e o pertencimento ao grupo estão “tatuados” nos nossos genes. E somos descendentes daqueles humanos que mais prazer tinham em formar laços e proteger a própria espécie. O filantropo assume um papel de provedor e/ou cuidador que pega um atalho para nosso senso de recompensa natural. E é natural que quem esteja vendo isso de fora comece a se medir a partir desse princípio. É o que fazemos, nos medimos pelos outros. Inescapável do mesmo jeito.

E quando nos medimos diante de alguém que agiu de forma caridosa e demonstrou sua adequação ao ideal instintivo da espécie (generosidade é só uma característica, existem pessoas que são terríveis na média mas ainda são generosas), é natural, muito natural, que isso gere inadequação em nós. Quem alardeia não só gera um ponto de comparação desagradável num nível primal para a maioria de nós, como ainda por cima torna isso público. Incomoda. Incomoda o suficiente para expressarmos isso de qualquer forma possível, mesmo que tenhamos que colocar em xeque o caráter do filantropo. E a verdade é que NÃO sabemos se foi um ato egoísta só pela pessoa ter chamado atenção. Se filantropia e comunicação em conjunto te fazem bem, sorte de quem está sendo ajudado.

E é claro, vamos falar da saudável desconfiança. Da mesma forma que temos instintos de integração social, somos egoístas por motivos tão primais quanto. A sociedade é a nossa maior preocupação assim que estamos nos sentindo providos e seguros. Seres humanos simulam intenções, e fazem coisas horríveis traindo a confiança do outro sob a ilusão de estarem agindo em benefício alheio. É bom que você tenha essa desconfiança com excesso de esmola. O filantropo midiático pode estar escondendo algo de muito ruim, mas enquanto você não souber dos fatos, só tem os seus palpites. E eles são tão válidos num sentido ou no outro. Não acho absurda a opinião da Sally, e francamente, da maioria de vocês, mas trago a dúvida razoável sobre essa visão diante dos elementos instintivos e emocionais envolvidos.

Mas mesmo que vocês não estejam interessados em analisar de onde vem essa percepção negativa sobre o alarde da caridade, pensem em outra coisa então: propaganda existe para compartilhar ideias com o mundo. Se você não sabe que dá para doar uma roupa velha de inverno num lugar próximo à sua casa, não vai conseguir simplesmente intuir isso, não? Alguém tem que botar uma placa, pelo menos. Quando o filantropo abre o bico e faz seu alarde, ele tem a possibilidade de mostrar o que fez e por tabela o que outras pessoas podem fazer. Uma celebridade babaca fazendo propaganda do que doou a uma instituição de caridade fica bem menos babaca quando se sabe que logo depois chegam muito mais delas por pessoas influenciadas pela mensagem, não?

Tem coisas que merecem ser comunicadas. Tem informações que abrem as cabeças das pessoas e as fazem perceber oportunidades de serem úteis também. Porque caridade faz bem até para quem está doando tempo ou dinheiro. Nada mais natural do que fazer propaganda positiva do que você gostou, não é mesmo? Se você vai ver um filme e sai do cinema empolgado, vai contar pra alguém. Se você come num restaurante muito bom, indica. Se você começou a fazer um exercício físico que está deixando muito disposto, pode apostar que pelo menos uma pessoa vai ouvir sobre ele.

E se você fez caridade e se sentiu bem fazendo isso, qual o problema de contar para mais alguém, ou… para todo mundo? Sim, tem gente muito cretina que esconde suas más ações ou mesmo tenta equilibrá-las usando a caridade como uma máscara de bondade, mas daí a dizer que todos somos assim e é sempre demérito comunicar o que fez? Faça-me a caridade…

Para me agradecer pela doação de um novo ponto de vista, para me criticar por alardear coisas erradas, ou mesmo para dizer que percebeu a palavra que eu evitei: somir@desfavor.com

SALLY

Tem menos mérito quem faz alarde da sua filantropia? Sim, com certeza, boas ações alardeadas viram marketing.

A premissa é fazer algo bom a alguém para ajudar, não é apenas sobre o bem que você vai gerar, mas também sobre suas intenções. Construir uma creche só para ganhar votos nunca pode ter o mesmo valor de construir uma creche para que crianças não fiquem abandonadas, por desejar uma vida melhor para estas crianças. O resultado prático é o mesmo? Talvez seja, mas eu não meço o valor das coisas apenas pelo resultado prático, felizmente tenho a capacidade de ser um pouquinho mais complexa do que isso.

Eu estou dizendo que se alguém alardear sua filantropia ela perde completamente o valor? Não, claro que não. Continua fazendo bem a outras pessoas, continua tendo seu lado positivo. O que estou dizendo é que tem menos mérito, apesar de continuar sendo uma coisa boa. Quem ajuda com a única intenção de ajudar e se sentir bem com isso certamente tem mais mérito do que quem ajuda com a intenção de ganhar respeito, admiração e presunção de bondade pela sociedade. O ato é bom, mas o objetivo é meio sujo e egoísta. E, sim, o objetivo da pessoa conta para mim.

Vamos supor que todos os dias um banhista vai à praia e vê uma pessoa se afogando. Ele não faz nada. Dia após dia, ele vê sucessivas pessoas morrendo, até que um dia, uma equipe de reportagem está no local filmando tudo. Nesse dia, o banhista nada bravamente, salva a vítima de um afogamento e depois dá entrevistas, vira capa de jornal, vira herói. Essa pessoa tem seu mérito, afinal, ela salvou uma vida, mas… será que tem o mesmo mérito do anônimo que salvou uma vítima do afogamento quando ninguém estava olhando? Em minha opinião, não. Tem mais mérito quem o fez por vontade de fazê-lo, não para que o mundo saiba.

A partir do momento em que se alardeia filantropia, a causa principal deste ato deixa de ser querer ajudar o próximo e passa a ser querer passar uma boa imagem de si mesmo. Acho mais meritório ser movido pela vontade de ajudar outra pessoa do que pela vontade de se autopromover. Ambos têm seu mérito, porém um tem mais mérito do que o outro. E não penso assim apenas na questão da filantropia, para a vida, para o meu dia a dia, para meu juízo de valor, a intenção da pessoa sempre conta muito. Se eu percebo que a pessoa está fazendo algo buscando benefício próprio e tenta camufla-lo de bondade, fico com um pé atrás.

O conceito de filantropia é “generosidade para com outra pessoa”, segundo o dicionário. Logo, a premissa básica é que o ato se funde na generosidade para com a outra pessoa. A partir do momento em que o ato beneficia o praticante tanto ou mais que o suposto destinatário, deixa de ser filantropia e passa a ser uma troca, uma compensação. Uma pessoa necessitada recebe algo em troca de divulgar sua condição publicamente para que o mundo saiba da bondade do “filantropo”. Acredito que isso deixe de ser filantropia e passe a ser escambo e tenha menos mérito.

Outro ponto pouco explorado é a dignidade de quem recebe a caridade. Eu não sei se todas as pessoas se sentem bem em que se alardeie massivamente o quão na merda elas estavam e o quanto precisaram de ajuda para comer ou pagar suas contas. Eu não acho bacana com a pessoa que está ferrada alardear sua condição, seja pela sua privacidade, seja pela sua dignidade. Então, ao mesmo tempo que se faz um bem, eu entendo que também se faça um mal, o que torna o ato menos meritório. Quem está recebendo a caridade não está em condições de reclamar disso ou de fazer exigências, mas quem está de fora pode se colocar em seu lugar e perceber que nem sempre o alarde será agradável.

Parto da premissa que cada um tem o direito de ostentar o que lhe diz respeito. Inclusive é esta a premissa que norteia a política do Desfavor: quer vir aqui e deixar o telefone e endereço da sua casa? Te acho bem louco, mas fica à vontade. Porém, expor terceiros não será tolerado. Tudo fica mais grave se pensarmos na situação de vulnerabilidade da pessoa que está recebendo a ajuda, uma pessoa que jamais vai poder fazer esse tipo de exigência. Me parece feio, meio covarde, meio aproveitador. Existe a opção de fazer sem alarde.

Essa ideia do “está ajudando, foda-se” é bem limitada. Parece que “quem paga” tem o direito de fazer o que quiser e quem recebe tem que calar a boca. Filantropia não te exime de julgamentos e de condutas éticas, não é por doar algo que você pode fazer o que quiser, como quiser e todos tem que aplaudir. Alardear filantropia desperta, no mínimo, uma desconfiança de que o ato é mais em causa própria do que pensando em terceiros, ninguém aqui é inocente, conhecemos um pouco sobre a natureza humana. E usar desgraça alheia para ficar bem na fita tira sim um pouco de mérito do ato.

Tenho certeza que todos concordam comigo que, entre um programa de TV que explora a pobreza e até a deficiência física e mental das pessoas, que leva uma criança deformada para o palco para anunciar que vai pagar uma cirurgia plástica (e recebe muitos pontos de ibope por isso) e um milionário que doa uma quantia em silêncio para ajudar essa criança, todos verão menos mérito no primeiro, que capitalizou em cima da desgraça alheia e expos o beneficiário. Todos exceto a Madame aqui de cima, o diferentão, o do contra, o relativizador a qualquer custo, o argumentador compulsivo.

Até mesmo a lei leva em conta a intenção da pessoa. Se você queria matar um animal selvagem para se defender de um perigo e mata sem querer uma pessoa, não é punido como se tivesse a intenção de cometer um assassinato. A intenção da pessoa vale mais do que o ato, e o viadinho campineiro aqui de cima sabe muito bem disso, pois foi na base disso que ele argumentou e eu o perdoei sucessivas vezes e ainda perdoo até hoje quando ele pisa na bola comigo.

Então, intenção conta e faz diferença quando falamos de mérito. O resto é argumentação esquizofrênica para confundir e distrair o leitor.

Para dizer que o tema foi chato, para dizer que aceita dinheiro em troca de exposição e humilhação ou ainda para dizer que como nós não doamos nada a ninguém não podemos falar do assunto: sally@desfavor.com

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Comments (15)

  • Considerando que o objetivo é matar a fome ou frio de alguem, ou um curso que vai gerar inclusão, mudar a vida da pessoa, não. Não se deve alardear. Ate porque o beneficiado pode ficar humilhado. Este post me fez lembrar o Faustão. Fiquei impressionado ao saber que ele sempre ajudou os pobres. Concordo que mostrar o que se faz em prol do outro massageia o orgulho, mas a satisfação que vem da discrição é bem melhor. A sensacao de poder que Nietzche fala nesse caso não exclui o mérito se isto e feito de modo discreto.

  • “A intenção da pessoa vale mais do que o ato (…)”

    A depender da intenção, e se a pessoa também se incumbir ativamente da filantropia de que fizer alarde, sim, pode trazer mais mérito.

    Tudo bem que a cultura e, com isso, a nossa postura em relação a se engajar com filantropia nos states seja bem diferente da nossa, mas o alarde em torno da filantropia feita por corretoras atingidas diretamente no 11/9, inicialmente com o intuito comezinho de levantar a moral dos empregados que sobreviveram, é um exemplo que vai ao encontro da minha opinião.

    Por conta desse alarde por meio da imprensa, houve lá um grande fluxo de doações do público em geral que soube da existência dessas iniciativas e, assim, algumas das fundações dessas empresas expandiram seu escopo inicial de ajudar as famílias dos funcionários mortos naquele dia (por exemplo, pagando a faculdade dos filhos das vítimas, alguns dos quais eram bebês em 2001 ou ainda não haviam nascido) para ajudar em situações de desastres naturais e de outros ataques terroristas mundo afora. Com o resultado positivo do alarde, as fundações ganharam uma sobrevida que não teriam obtido sem ele.

    Cabe lembrar que muitas dessas corretoras eram minúsculas e não abriram mão de suas fundações mesmo sem saber se elas mesmas sobreviveriam também ao 11/9.

    Algo muito diferente de uma Coca-Cola, que tem fundações para preservação da água, com atitudes até dignas de furar poços artesianos para acabar com as mazelas de populações africanas infectadas por consumir água de esgoto. Mas só faz isso porque a água (e os africanos livres da barriga d’água) é essencial para preservar seu negócio.

    Enfim, se esse alarde trouxer mais doadores, inspirados por um exemplo válido e digno que até então desconheciam, não vejo problema.

  • Para quem recebe, não importa a motivação.
    1 kg de feijão doado com alarde não perde uma grama em relação ao doado sem alarde.

  • Concordo com o Somir na questão ideológica, mas não gosto de alardear quando ajudo alguém. Já passei por uma situação de acharem que eu era obrigada a ajudar só porque tinha o costume de fazê-lo. Depois disso, tento até disfarçar quando faço algo. Prefiro manter minha fachada de egoístona, mesmo que isso não se sustente depois da primeira vez que a pessoa precise de mim. Antes pensarem mal do que me usarem.

  • Justamente por ser natural que alguém queira ser reconhecido e admirado por seus atos, que a filantropia praticada sem nenhuma divulgação ou anonimamente acaba sendo muito mais admirável. E isso levando em conta somente pessoas que fazem boas ações sem nenhuma segunda intenção, de coração mesmo.
    Já quando alguém faz alguma doação/boa ação, e depois espalha para todo mundo, visando somente o reconhecimento positivo que isso resultará para sua imagem, nós não podemos chamar isso de filantropia. Devemos chamar de negócio; propaganda; investimento; enfim, qualquer coisa menos filantropia.

  • Fico com a Sally nessa. Doação feita pra todo mundo ver não é altruísmo, é só investimento em sei mesmo, polimento da própria imagem. Até porque, muitas vezes, o que é doado por quem quer se mostrar publicamente como “gente boa” acaba muitas vezes sendo uma merreca quando comparado tanto com o que a pessoa realmente poderia dar quanto com o que acaba rendendo posteriormente a essa pessoa em certos “dividendos”, financeiros ou não.

  • Já ouviu falar do Karametendo porrada?
    O que acontece quando quatro brasileiros encontram um jogador argentino? Homicídio!

  • Sim!!!!! Absolutamente sim! Quem faz publicidade em cima de boas ações com certeza quer algo em troca do que fez. A partir do momento que as pessoas quiserem algo em troca do bem que fizeram ele nao é filantrópico!

      • Concordo, Sally. Sei de gente bem carola, freqüentadora assídua de igreja, que faz questão de dizer toda hora que doa uma cesta básica por mês, sendo que se quisesse mesmo ser altruísta, poderia dar muito mais e sem fazer tanto estardalhaço. Agem como se estivessem tentando dizer pro Deus que dizem louvar: “Olha aqui, Deus: tô fazendo a minha parte. Agora, vê se não esquece de mim e livra a minha cara, OK?” Como se fosse possível “comprar” Deus com esse tipo de postura ou tentar fazer algum acordo com Ele… Sabem, fica parecendo coisa de crianças mal-comportadas que, com medo de ficar sem presente no Natal, tentam entrar na “lista dos bonzinhos do Papai Noel ” de última hora fazendo qualquer coisa que achem ser uma boa ação…

        • Chega a ofender minha inteligência gente que faz isso, acham que o mundo não percebe que estão querendo se promover!

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