Pior do Natal.

Como o calendário da RID tem sua própria comemoração no dia 25, hoje é dia de Natal por aqui. Sally e Somir discutem sobre o que mais parece errado nessa comemoração praticamente universal. Os impopulares decidem se vão ser bons meninos.

Tema de hoje: qual a pior parte do Natal?

SOMIR

Com certeza a desconexão entre o clima tradicional da festa e o clima horrendo que vivemos no verão. Especialmente nesses tempos de aquecimento global, onde a estação chega pior ano após ano. Neve deveria ser pré-requisito básico para o Natal, e Jesus deveria ficar sem aniversário no hemisfério sul. Simplesmente não combina.

Pra quem não sabe, Natal na verdade é uma data cristã montada na gambiarra em cima do solstício de inverno dos pagãos. Os romanos decidiram cantar parabéns para Jesus mais ou menos nessa data, e acabou pegando. No hemisfério norte, o solstício de inverno é o dia mais curto do ano, então fazia sentido pegar para comemorar. E se nós conhecemos os romanos, a festa era padrão carnaval brasileiro: muita bebida e orgias. De sagrada a data não tem nada, tanto que quase a totalidade do mito natalino só pegou com força do século passado pra cá, com a Coca-Cola inventando o Papai Noel moderno e os americanos definindo todo o visual da coisa para estimular o consumo no país.

Quem estuda a possível vida de Jesus já sabe que ele não nasceu nem perto do dia 25 de Dezembro, e que nas regras do Cristianismo original, sequer davam bola para essa data. Mas, tem coisa que pega, e o Natal pegou. O problema é que quando falamos de hemisfério sul, especialmente em países quentes e grudentos feito o Brasil, a coisa não combina bem. Por lá, era a comemoração de resistência às estações mais frias, e a esperança do retorno da primavera em três meses, por aqui é um calor de derreter e o terror de imaginar que ele vai continuar por muito tempo.

No frio, faz sentido reunir as pessoas mais próximas para aproveitar o calor humano, comer e beber coisas quentes e gordurosas. Aqui em baixo é só sofrimento: as pessoas ficam mais comportadas no frio, economizando energia, mas o calor traz o pior de cada um. Gente suada, grudenta, com excesso de energia? Eu quero distância! Mas como é o costume, todo mundo resolve se amontoar. Não existe civilidade ou dignidade no calor, e ter que ficar perto dos outros justamente no pior da humanidade não agrada nem um pouco.

Todo o conceito da ceia é baseado em países frios, comida pesada que comem até passar mal, ainda mais calorias para gente que já fica com excesso de energia pela temperatura. Tudo bem que ultimamente só temos uma estação quente e outra mais quente no Brasil, mas bem que poderia ser uma festa de inverno por aqui também. Que diferença faz bater o nosso Natal com o dos americanos e europeus? Jesus provavelmente foi uma figura mitológica construída a partir de vida de várias pessoas diferentes copiando outras religiões mais antigas. Pode fazer aniversário qualquer dia.

Ainda mais considerando que a Black Friday basicamente matou a data comercial… seria até melhor para a economia brasileira passar o natal para Junho ou Julho. Mistura com as festas juninas e julinas, que no final das contas são as coisas mais próximas de Natal verdadeiro que temos por aqui. As crianças estão de férias do mesmo jeito. Deixa a gente passar mal de calor em paz em Dezembro.

Todo aquele visual de neve, renas e pinheiros não combina com nossa realidade, fica bizarro ver decoração com espuma no lugar de neve. Eu passo calor extra toda vez que vejo alguém vestido de Papai Noel nesses dias. Fazer alguém botar aquela roupa deveria ser considerado maus tratos no trabalho e render processo! E se você acha que para as crianças é importante, tudo bem: elas acreditam em qualquer coisa. Diz que Jesus comeu todos os legumes e o pai dele disse que ele podia fazer aniversário qualquer dia que quisesse. Finalmente um exemplo positivo!

E outra: nesse calor infernal, é mais complicado ter espírito natalino. Culturas mais acostumadas ao frio desenvolvem um senso de comunidade maior mesmo, estão sempre amontoados e sob risco de morte por causa do clima, então faz mais sentido trabalharem juntos e terem uma data para se perdoarem. Aqui no Brasil o que não falta é calor e espaço. O brasileiro se perdoa fazendo sexo desprotegido bêbado no Carnaval, o Natal não tem essa função por aqui. Acho que até melhoraria a relação entre as famílias não ter mais essa proximidade forçada durante o verão. Datas comemorativas de verão são baseadas em sair de casa e ficar longe da família enquanto faz as merdas habituais da temperatura corporal elevada.

Forçar interações familiares (ou profissionais com o horrendo amigo secreto) nessa época é pedir para as pessoas brigarem. Já tentou perdoar alguém com mais de 30 graus de temperatura? Parece que muda a química do cérebro, a necessidade de espaço para ventilação deve atuar no desinteresse de realizar atividades do tipo. Ainda mais se você tiver comido alguma comida gordurosa e pesada típica de climas frios como vivemos fazendo. Nesse clima, não tem clima.

Se o Natal fosse no nosso inverno, tenho certeza que todo mundo se sentiria um pouco melhor. O frio une as pessoas, somos descendentes (pelo menos quem tem sangue europeu, e com a mistureba genética brasileira, você provavelmente tem até se for negro ou índio) de pessoas que precisaram se aguentar só por causa de calor humano por milênios. A seleção natural humana discorda de Natal no verão. Imagina a ceia de Natal no dia mais frio do ano, não parece muito mais agradável? Imagina fazer as pazes com alguém sabendo que está frio pra caralho lá fora… não tem algo que parece muito mais certo nisso na sua cabeça?

Calor é o maior inimigo da civilização. E teoricamente, poucas festas são tão dependentes do senso de civilização como o Natal moderno. No calor, o que faz sentido é Carnaval mesmo. O resto é macaquice para inglês ver.

Para dizer que adora nosso clima natalino, para dizer que só se importa com o feriado, ou mesmo para dizer que o pior é sempre ter esse texto: somir@desfavor.com

SALLY

Difícil decidir, tem tantos desfavores orbitando o Natal… Acho que o pior do Natal é o clima de confraternização forçada, amor obrigatório e perdão compulsório, uma série de pressões sociais que eu resumi no termo “tem que”. No Natal “tem que isso”, “tem que aquilo”, afina, é Natal. Na boa? Nada agride mais do que pressão para não ser verdadeiro consigo mesmo, nem sequer um calor escaldante é tão ruim.

Natal é apenas uma convenção social: pessoas se reuniram e decidiram que esse dia seria especial, o que eu acho um tremendo desfavor, pois polariza as coisas: se um dia é pensado para ser generoso, bondoso e fraterno, isso automaticamente incute (nem que seja no inconsciente) de que no resto do ano não é necessário dar o seu melhor nesse sentido. O tal do “espírito natalino” deveria reger igualmente todos os dias da vida dessas pessoas.

E, por sinal, eu acho esse “espírito natalino” outro desfavor, pois ele se traduz basicamente em ações externas, sem que se mude o sentimento interno, ou seja, é a boa e velha hipocrisia. Natal é basicamente uma época onde você “tem que” fazer algo, mas não necessariamente sentir aquilo como verdade.

Existe uma lista de coisas que você “tem que”. Tem que perdoar e fazer as pazes com quem você brigou, tem que confraternizar com a família, tem que dezenas de coisa que nem sempre estão alinhadas com o que você está sentindo, causando muitas vezes uma violência contra você mesmo.

E, não me entendam mal, eu passo o natal com a minha família por opção. Poderiam me dar a escolhe que fosse: a viagem dos meus sonhos, a melhor festa do mundo, um passeio de disco voador… eu ainda escolheria passar com a minha família porque são pessoas maravilhosas e as pessoas que mais amo no mundo. Então, este não é um texto de revolta contra a família. É um texto de revolta contra o “tem que”.

A razão pela qual eu escolho passar o Natal com a minha família é porque temos um combinado: não “tem que” nada. Nosso natal é o que a gente quiser que ele seja, combinamos o que cada um quer até chegar a um denominador que seja bom para todos. Não precisa de peru de natal, não precisa de árvore, não precisa nem de troca de presentes. A gente se diverte do nosso jeito.

Ninguém “tem que” nada. Faz cada um o que quer, o que está alinhado com seus sentimentos, vontade e valores. Não tem que sorrir para quem desgosta, não tem que confraternizar com quem não se sente bem, não tem que fingir que está muito feliz quando na verdade não está. Agir em desacordo com seu sentir é uma violência enorme que, por mais que você não perceba, faz muito, muito mal. Mesmo que você tenha sido criado sem liberdade e sequer saiba o seu querer, por nunca ter recebido a oportunidade de se perguntar o que deseja, continua sendo uma violência contra você mesmo.

Essa conta chega, seja na forma de auto sabotagem, seja na forma de depressão, seja na forma de síndrome do pânico ou qualquer outra doença ou transtorno para sua vida. Por mais que você ache que lida com isso, não dá para não ser fiel a si mesmo sem consequências muito ruins para você. E se você não tiver muito pulso firme e personalidade, natal basicamente é isso: é ter que se obrigar a rituais, socialização e convívio com pessoas e situações que nos violentam.

É uma tradição milenar, que ninguém questiona e segue automaticamente, afinal, é sinônimo de “felicidade”, como se a felicidade estivesse na troca de bens materiais ou a reunião de um grupo de pessoas com as quais você nem tem muita afinidade, mas pode ser que um dia precise deles, ou por motivos de “são família”. Depois dos 18 anos, só é família quem você escolhe ser família, ninguém é obrigado a socializar com ninguém. Ao menos, não deveria.

Natal tem que ser aquilo que você quer que ele seja. Aquilo que te faz bem, que te deixa feliz: ver um filme e beber, jogar baralho até as três da manhã, fazer uma ceia com a família, jogar papel higiênico molhado nos transeuntes na rua… pouco importa. Cada um deveria ter o poder e voz de dizer exatamente o que o deixaria feliz no Natal em vez de aderir a essa cerimônia pré-pronta que acaba violentando metade dos envolvidos.

Um ritual com séculos de idade, engessado, que não pode ser questionado e que tem um roteiro bem desatualizado não pode ser interessante para pessoas um pouquinho mais criativas e questionadoras. É uma canalhice fazer milhões de pessoas completamente diferentes umas das outras em gostos, idades, crenças, vontades, desejos e sonhos aderirem a uma mesma cerimônia formatada. É escroto, é hediondo, é desrespeitoso. Esse “tem que” deve ser um dos grandes responsáveis pelos altos índices de depressão e suicídio de final de ano, graças ao sentimento de não pertinência que gera.

Ser humano não é computador, para ser formatado e funcionar dentro de um mesmo padrão. Pavimentar desta forma a individualidade de alguém é sim uma agressão maior que todos os outros desfavores relacionados ao natal. E o pior: nem sequer há uma justificativa decente!

Você toma vacinas para não ficar doente no futuro, mas faz coisas que não quer no Natal “porque é natal”. Assim como seus pais faziam, “porque é natal”. FODA-SE que é Natal, seu livre arbítrio continua, seu querer tem valor, se forçar a coisas continua sendo uma violência contra você mesmo.

“Porque é Natal” não é argumento para nada. Onde está escrito que Natal tem que seguir esse roteiro? Onde está escrito que todos tem que se adequar a esse roteiro se quiserem ser legais e felizes? Na cartilha dos Arrombados de Natal, só pode. Pessoas tem vontade própria, parem de tentar empurrar fórmulas prontas de como as coisas “tem que” ser. Isso é limitante. Provavelmente existem centenas de formas muito mais legais de comemorar que não estão sendo vivenciadas por essa falsa crença no “tem que”.

Padronizar uma comemoração de forma compulsória apenas por hábito ou falta de culhões de fazer diferente é o maior desfavor não apenas do Natal, como das principais celebrações sociais modernas: casamentos, batizados, carnaval, páscoa, etc. Aceitem: não existe fórmula para a felicidade. Aderir a essas fórmulas pré-prontas é pedir para se decepcionar e começar a acreditar que felicidade não existe. Existe sim, só que você tem que encontrar ela dentro do seu caminho individual e não em rituais engessados.

Existirão aqueles que são tão ovelhas que se anulam e se enquadram, formatados desde pequenos, incapazes de questionar, mas a grande maioria, em algum ponto, acaba cometendo uma violência contra si mesmo por conta desses “tem que”. E estes são os que amanhã estarão enchendo a cara de Rivotril sem entender o porquê de um vazio muito grande em suas vidas. Não seja essa pessoa.

Você não “tem que” nada. No máximo pagar suas contas, não cometer crimes e se respeitar. Não se violente neste Natal. Não se violente nunca.

Para dizer que nunca questionou porque não quer comprar briga, para dizer que faz sentido mas calor é pior ou ainda para dizer que pior mesmo é um combo desses dois fatores: sally@desfavor.com

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Comments (15)

  • Trecho da coluna do jornalista Carlos Brickmann publicada esta semana no jornal Correio Popular, de Campinas:

    “Esta é a maior festa cristã. Festeja o nascimento de um menino judeu, mas não no dia em que ele nasceu: a data foi fixada, para atrair novos fieis, no dia de uma festa pagã, do Deus Sol. Comemos panetone de origem italiana e esperamos a chegada de um monge turco, São Nicolau, que traz presentes num trenó do tipo usado no Norte da Europa, mas voador, e puxado por renas. São Nicolau é chamado pelo nome alemão de Santa Klaus (ou Pai Natal, em Portugal, ou Papai Noel, no Brasil). Cantamos música cristã: White Christmas, composta por um judeu russo, Irving Berlin, Noite Feliz, austríaca, de Franz Gruber, e Jingle Bells, americana, de James Pierpoint, originalmente composta para o Dia de Ação de Graças.
    Quando nasceu, dizem os Evangelhos. Jesus foi visitado pelos magos – não se sabe quantos, nem quais seus nomes, nem de onde vieram. Como lhe deram três presentes, imagina-se que sejam três. Foram chamados de reis uns 300 anos mais tarde; e 800 anos após o nascimento, São Beda lhes deu nomes e outras características. Belquior, 70 anos, saíra de Ur, hoje no Iraque; Gaspar, de seus 20 anos, vinha das montanhas perto do Mar Caspio; Baltazar, 40 anos, vivia no que hoje é a Arábia Saudita. Diz a tradição que os três foram sepultados na Itália; e há mil anos levados para a Catedral de Colônia, na Alemanha, onde há túmulos com seus nomes.”

  • Calor dá-se um jeito. Aturar a confraternização forçada, com gente hipócrita te dizendo como você deve agir, isso sim é o pior do Natal.

  • Pessoas comemoram o nascimento de um Jesus pobre e humilde, mas tem preconceito com pobres e não se mistura com quem não dá status, se acham melhores que os outros e levantam o nariz pra quem consideram inferiores. Veneram o Noel bondoso e solidário mas vira as costas pra quem precisa de ajuda. Cantam músicas bonitinhas em volta do presepio mas destroem as pessoas com fofocas e mentiras. Podiam abolir de vez a data ou mudar pra 1 de abril.

  • O calor, por mais que seja uma droga, ainda dá pra aguentar. Creio que esse “teatrinho” todo feito pra aturar parente/colega/whatever “porque é Natal” é um saco. Bem complicado ter que “perdoar” alguém que só pisou na bola contigo o ano inteiro por causa de “espírito natalino”.

  • Achei que era só eu que ficava incomodado com toda a decoração de natal fazer alusão a neve, as belas imagens do Papai Noel visitando casas e vilas confortáveis cobertas de neve, musiquinhas natalinas com aquele efeito sonoro que remete a uma neve suave caindo do céu, e voltar pro mundo real com um calor de 37 graus, suor e música ruim em volume alto.

  • Como decidir entre o calor que destrói o o corpo e a falsidade que destrói a mente? Este ano toquei o anti social, não dei nem recebi presente e vou curtir o feriado do jeito que gosto (trancado no quarto, com ar condicionado no máximo assistindo filmes e séries!) E sim, Natal em país quente tinha que mudar pra julho.

  • Acho que o pior é o combo. Primeiro que eu moro no Nordeste. Esse clima merda estraga qualquer data.
    Segundo que este mês de Dezembro eu mais chorei que sorri por causa da minha família. Eu já sou meio afastada deles pq não aguento tanta falsidade. Mas uma pessoa me sacaneou de uma forma horrível este ano depois de ter pedido para reatar laços e eu aceitar, então e eu me afastei de vez. Agora eu tenho que escutar merda dos outros, ser chamada de egoísta pq não quero contato de forma alguma. “Mas é Natal” “Não é época pra isso”. Mas o resto do ano é pra me fazer de trouxa? Se foder.

    • Pois é, no Natal as pessoas querem obrigar todo mundo a perdoar tudo. Faça apenas o que sentir verdadeiro, o que você julgar que deve fazer, não ceda à pressão!

  • Acho que esse clima de inverno da celebração mantém um pouco a dignidade da coisa. Como seria um Natal quente? Uma mesa cheia de frutas, sucos naturais e sanduíches leves? O Papai Noel usaria bermuda de tactel, boné e o trenó seria puxado por capivaras? Iríamos decorar um coqueiro com bolas coloridas?
    Só sei que o brasileiro usaria o Natal quente como desculpa pra estender o carnaval por mais um mês. Vocês realmente querem isso?

  • “Eu acho esse “espírito natalino” outro desfavor, pois ele se traduz basicamente em ações externas, sem que se mude o sentimento interno, ou seja, é a boa e velha hipocrisia.” Pra mim, a Sally ganhou com essa frase. Concordo sem tirar nem pôr. E na minha família também pensamos de forma muito semelhante ao que ela expressa quando diz: “Nosso natal é o que a gente quiser que ele seja” Já não tenho mais idade e nem saco pra “ter que” certas coisas, viu?

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