Memórias – Parte 2

Parte 1

Bar’hai procura abrigo detrás de uma das mesas, fazendo senso do ambiente através de uma débil iluminação lunar que parece brotar de vãos entre as paredes e o distante teto. O som das batidas e grunhidos anasalados dos Calados é abafado pela grossura da porta, conferindo uma sensação de segurança que só aumenta depois de alguns minutos, quando os sons da tentativa de invasão finalmente cessam.

O silêncio permite que volte sua atenção novamente para estudar seu novo ambiente. Como percebera anteriormente, as paredes não parecem estar totalmente conectadas com o teto: a luz da Lua é mais pronunciada nesses vãos. Ele cuidadosamente se aproxima da parede oposta à porta, evitando que seus passos e os equipamentos em sua mochila façam sons que entreguem sua localização. Olhando para cima, percebe que a torre é feita de duas estruturas distintas: um prédio central feito de pedra envelopado por uma armação de metal e vidro negros, o que provavelmente conferia a aparência distinta da torre quando vista de fora.

Os andares superiores eram sustentados por enormes colunas espalhadas pela área onde se encontrava, e em cada uma delas, uma porta metálica. Enquanto a maioria era composta de duas placas que se encontravam no meio, uma delas tinha uma aparência mais convidativa à interação, com uma grande barra sugerindo que poderia ser aberta com um puxão. É o que ele faz, com o máximo de cuidado possível para não fazer muito barulho. A porta é surpreendentemente silenciosa para uma feita de metal, sem os rangidos que aprendera serem inerentes ao material. A textura também impressionava: não era áspera. Por trás da porta, a escuridão era ainda mais opressora do que no salão, mas a luz refletida era suficiente para perceber que se tratava de uma escada, tanto para cima quanto para baixo.

Com o estômago vazio de uma longa viagem e a lembrança da mensagem misteriosa que recebera antes do apagar das luzes, decide buscar pelos mantimentos descendo. O corrimão guia sua descida sem maiores incidentes. Depois de quatro lances de escada, encontra um corredor. Sem o lampião, que perdera ao fugir dos Calados, é obrigado a tatear seu caminho rumo ao desconhecido. O corredor termina alguns metros depois, numa outra porta dotada da mesma barra metálica, Bar’hai a empurra, e consegue notar que está entrando em outra grande sala, pelo eco da porta e seus passos. A escuridão é total. Suas mãos buscam a parede, os pés tentando encontrar obstáculos.

Assim que finaliza o primeiro passo sala adentro e solta a porta que segurava com o corpo, ela se fecha. Ele pode ouvir um zunido, que logo se torna mais grave. Luz. Ele instintivamente fecha os olhos, mas começa a abrir um aos poucos: o local estava iluminado pelos mesmos focos brancos que o fascinaram no térreo. O salão tinha as mesmas proporções do andar superior, mas uma configuração bem diferente: num dos cantos, várias camas adornadas por lençóis e travesseiros brancos; em outro, uma série de prateleiras com as cobiçadas refeições desidratadas que só os Calados tinham. Entre eles, mesas cheias de objetos que só vira em fotos e ilustrações até hoje: brinquedos, livros, ferramentas e todo tipo de objeto dos Antigos em estado espetacular de preservação.

Mas talvez mais impressionante do que tudo isso, numa das paredes havia uma profusão de telas, aparentemente conectadas a criações pelo ritmo frenético no qual símbolos da Língua Complexa as percorriam. Ele estava sozinho lá dentro, sozinho com acesso a coisas que tinha certeza que seus vizinhos no vilarejo matariam para ter. Bar’hai não perde tempo: segue para a seção dos alimentos e prepara um dos pacotes. Carne com batatas. Uma pia em perfeito estado de funcionamento providencia água, e um curioso fogão sem lenha ou fogo parece funcionar muito bem para aquecer a refeição, assim que consegue decifrar o funcionamento dos botões.

Ele se senta numa das mesas, usando pratos e talheres para comer como um dos Antigos, pela primeira vez na vida. O sabor é diferente do que estava acostumado, com vários temperos diferentes que não consegue identificar, mas agradável mesmo assim. A refeição enche o estômago, e a aparente calmaria tranquiliza sua mente o suficiente para prestar mais atenção nos monitores. Agora ele consegue perceber que há uma contagem regressiva no maior de todos, centralizado na parede: 255 dias, 18 horas, 32 minutos e segundos em redução constante. Reconhece o padrão: era o tempo até a torre se iluminar novamente.

Nas horas seguintes, Bar’hai monta uma barricada feita de camas e quaisquer outros objetos pesados que encontrara por lá para proteger a agora confirmada única entrada do recinto. Próximas ao teto, algumas entradas protegidas com grades parecem trazer ar-fresco para o recinto. Pequenas demais para a maioria dos calados, mas talvez grandes o suficiente para uma das crianças. Reconforta-se com a noção de que se um dos selvagens tivesse acesso a esse ambiente, com certeza não encontraria tantas refeições intocadas, e especialmente, não encontraria livros. Desde que a tribo tomou conta de Omega, todos os encontrados viraram combustível para fogueiras.

Esgotado pelo dia de exploração e principalmente pela fuga desesperada pelas ruínas até ali, ele decide finalmente ceder e aproveitar o conforto da cama que mantivera intacta. A maciez era incomparável com qualquer coisa que experimentara anteriormente, o cheiro do travesseiro, embora neutro, passava uma sensação de limpeza que não sentia há muito tempo. Não demora mais que alguns minutos para cair num profundo sono.

“Bar’hai está agachado atrás de uma parede de tijolos, metade dela destruída por uma chuva de balas e explosões que não param de chegar. O céu está escuro pela fumaça, mas a luz do Sol ainda atravessa por algumas frestas. O fogo confere uma cor avermelhada ao ambiente. Ele está segurando uma grande arma dos Antigos, nova e reluzente. Ao seu lado, outro homem vestindo um uniforme militar como o dele, o rosto está coberto por um tecido preto, deixando espaço só para os olhos. Ele também carrega uma arma. No seu ouvido, algo parece falar diretamente com ele. Uma voz carregada de estática, abafada como numa transmissão de rádio. A língua falada não se parece com nada que conhece, embora seja tão rápida e cheia de sons diferentes como as que ouvira nas Memórias dos Antigos.

O soldado ao seu lado faz um gesto com dois dedos em riste, apontando para o outro lado do muro. Bar’hai tenta dizer algo em resposta, mas sua boca não obedece seu comando. Ao invés disso, concorda com uma expressão da Língua Antiga. O outro soldado se levanta, salta por uma falha no muro e desaparece de sua visão. Os tiros ficam mais numerosos, mas Bar’hai não se mexe. A voz em seu ouvido, da língua estranha, sobe o volume na hora. Não entende as palavras, mas a irritação não precisa de tradução. Ele coloca a mão no ouvido e retira um pedaço de plástico, a fonte da voz que não para de gritar.

No seu campo de visão, a iluminação das explosões distantes por vezes atravessa a fumaça e exibe uma cidade em ruínas. Algumas das construções parecem familiares. Ele rapidamente se volta para a parte destruída do muro e olha na direção oposta. No horizonte de prédios progressivamente mais deteriorados, uma construção chama atenção: a torre. Ele se esconde novamente atrás do muro, a tempo de ver outro soldado com o mesmo uniforme se aproximando. Ele faz o gesto com os dois dedos seguidas vezes, e passa para o outro lado do muro. Uma grande explosão pode ser ouvida, o muro começa a desabar sobre Bar’hai.”

Ele dá um salto no ar, buscando em vão sua arma. O cheiro do tecido rapidamente o traz de volta à realidade: ainda estava na cama. Um pesadelo. Embora não tivesse ideia alguma de quanto tempo dormira ali, sentia-se descansado e disposto, uma sensação muito rara em sua vida até aqui. Ele se levanta, checa cuidadosamente cada uma das entradas de ar, observa se algo foi mexido na barricada da porta, mas não encontra sinais de preocupação. Toma um café da manhã reforçado com pacotes de ovos, biscoitos, cereais e leite. Finalmente se lembra que era possível sim saber quanto tempo dormiu: observa a tela na parede.

232 dias, 02 horas, 56 minutos, 15 segundos.

Não era possível. Bar’hai estava cansado, mas não teria sobrevivido a tantos dias apagado. Ele se aproxima da parede com as criações, buscando alguma resposta para aquela situação. Encontra alguns botões desenhados parede, aperta cada um deles até encontrar uma reação: a tela principal deixa de mostrar a contagem e pede por uma palavra-chave. Ele limpa a garganta, receoso com o som da própria voz depois de tanto tempo calado.

“Eu Bar’hai.”

Um símbolo surge na tela por uma fração de segundo antes de aparecer uma mensagem escrita dizendo que aquela palavra-chave estava errada.

“Eu esperar.”

Novamente erro.

“Sair. Bar’hai sair. Sem dor.”

Erro.

Bar’hai suspira em decepção. Ao virar as costas para a tela, ouve um bipe. Ao voltar sua atenção, nota que em uma das telas inferiores há uma palavra piscando: caleidoscópio.

“Ca… le… pi.”

Erro.

“Ca… lei… doco…”

Erro.

Bar’hai tenta mais algumas vezes, a palavra é extremamente longa, até mesmo para os padrões dos Antigos. Uma coisa era ler, outra completamente diferente era falar, tendo ouvido apenas uma vez recentemente nas Memórias. Não ajudava também o fato de não ter a menor ideia do significado dela. Ele tenta seguidas vezes, em várias com a certeza de ter acertado. Mas não o suficiente para os padrões daquela criação. Eventualmente a tela muda a mensagem: “Excesso de tentativas. Nova palavra-chave criada. Siga o Protocolo 32.”

A tela menor com a palavra se apaga. Bar’hai decide voltar sua atenção para os objetos espalhados por sobre as mesas no centro do salão. Numa delas, vários livros estão empilhados. Ele se senta diante de uma pilha, e começa a identificá-los pelas capas. Ele conhecia alguns: havia lido pedaços deles entre os restos que sua família acumulou em casa. Os diante dele estavam inteiros, páginas brancas, e mais importante: completos. Eram histórias dos Antigos sobre os mais diversos temas. Um falava de seres incríveis chamados baleias, outro sobre uma garota que encontrou um mundo novo atrás de uma pequena porta, tinha uma história sobre Antigos com orelhas pontiagudas, e até a história sobre um assassinato num trem, seja lá o que fosse um trem.

Bar’hai separa numa pilha os que já conhecia, e em outra bem maior os que eram novidade. As horas passam sem que perceba. Devora dois livros, um falando sobre robôs que dominam o mundo e outro com uma triste história de amor entre dois jovens, parando apenas para encher o estômago. Sente uma felicidade única ali. Seguro, confortável. A contagem regressiva não o incomoda mais:

225 dias, 17 horas, 12 minutos, 40 segundos.

Enquanto ele olha para a tela, o tempo corre normalmente. Quando se distrai, ele parece disparar. Nada disso o preocupa mais. O sono vem naturalmente, e ele volta para a cama.

“Bar’hai está no topo de um dos prédios de Omega. A torre ainda visível no horizonte. A guerra continua, ele pode enxergar vários soldados se matando nas ruas abaixo. Ele está com as duas mãos segurando uma enorme metralhadora fixada no parapeito. Outro soldado está do seu lado. Ele estica a mão e aponta para um grupo de soldados no chão. Pode ouvir novamente a voz vinda direto do seu ouvido:

– Vai logo, mata eles! Eu só caio em time de retardados, caralho!”

Continua.

Para dizer que é muita palavra para pouco acontecimento, para dizer que nem lembrava dessa história, ou mesmo para dizer que é por isso que eu sempre perco as disputas de acessos: somir@desfavor.com

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