Exociedade.

Sugestão do Mauro: “Esse é para o Somir. Se ele encontrasse um planeta viável à vida humana. Como ele organizaria a sociedade? Como formaria um sistema econômico a partir do zero? Sistema político e afins. Como se coloca um mundo para funcionar do zero?” – Uma pessoa normal se assustaria com esse tema, mas para a sorte de vocês e o azar de todas minhas ex-namoradas, esse não é o meu caso! Excelente sugestão! Vamos criar um mundo novo?

Mas antes disso, precisamos de regras. Não porque regras são divertidas, mas porque são necessárias: se é a sua primeira vez pensando em como desenvolver uma sociedade do zero em um novo planeta, você provavelmente não teve tempo de calcular a quantidade absurda de variáveis envolvidas. Não só sobre sua responsabilidade como criador dessa sociedade, mas também pela tecnologia envolvida. Cada pequena variação no cenário prévio ao estabelecimento da humanidade em um novo planeta gera um plano completamente diferente! Eu tenho certeza que poderia escrever uma série de livros só com essas variações. Mas, nosso tempo é mais limitado aqui. Por isso, vamos escolher algumas perguntas básicas e criar as sociedades baseadas nas respostas.

Pergunta 1: conseguimos viajar mais rápido que a velocidade da luz? Isso importa pois o mais próximo que um planeta habitável pode estar da Terra atualmente é ao redor de Próxima Centauri, distante quatro anos-luz de nós. Parece pouco, mas sua mensagem de WhatsApp demoraria oito anos para ficar com a marquinha azulada de mensagem lida caso você tivesse um amigo por lá. Sem viagem mais rápida que a luz, esse planeta estaria efetivamente isolado do resto da humanidade.

Pergunta 2: temos inteligência artificial generalista? Vulgo inteligência artificial que “pensa sozinha”. Se sim, provavelmente já estamos independentes de trabalho braçal e temos uma segurança gigantesca sobre manutenção de conhecimento acumulado. Se não, o ser humano precisa prosperar pela própria capacidade e ser capaz de se autorregular se quiser ter qualquer chance de sucesso.

Pergunta 3: existem úteros artificiais? Essa pergunta não é importante apenas pela repercussão no papel da mulher biológica na sociedade, mas também pode dar uma grande sobrevida à humanidade em caso de algum problema.

E finalmente, pergunta 4: o criador dessa sociedade terá alguma consequência negativa se tudo der errado? Vejam bem, se eu estiver pressionado para a sociedade funcionar, é melhor não reinventar a roda. Se for algo mais descontraído, existem várias alternativas mais divertidas.

Vamos começar então, partindo dos seguintes princípios: não viajamos mais rápido que a luz, nem temos inteligência artificial generalista ou úteros artificiais. E mais importante: eu preciso mostrar resultado e fazer essa sociedade funcionar sob pena de coisas horríveis acontecerem comigo. Esse será o planeta Opressor 1. Em Opressor 1, temos que aceitar algumas realidades difíceis: não existe uma estrutura funcional, trazemos tecnologia na nave, mas demorariam décadas até alguém conseguir mandar qualquer coisa da Terra para nós. Precisamos lidar com necessidades básicas primeiro, e não há espaço para “problemas de primeiro mundo”.

Eu escolheria um grupo de pessoas mais ou menos homogêneo, composto prioritariamente por uma raça, com uma dose saudável de 20 a 30% de mestiços dessa com outras raças para manter o pool genético minimamente funcional. E antes que me chamem de supremacista branco, podem ser negros, orientais, indianos ou qualquer outra raça, desde que as pessoas se pareçam o suficiente. Isso é importante para gerar um senso tribal inicial. É quase como proibir a torcida do time visitante de entrar no estádio, apesar de saber que a maioria deles não vão brigar, se uma minoria começar, não demora muito para que uma camisa de cor diferente seja motivo de desconfiança e desumanização entre pessoas. Como as primeiras décadas serão bem difíceis, o objetivo é tirar o máximo de motivos para pessoas se subdividirem em grupos ainda menores nessa hora tão delicada.

Já estou parecendo o Hitler aqui, mas não acabei ainda: como não temos úteros artificiais, precisamos de homens e mulheres dispostos a procriar. Procriar muito. Algo em torno de uns 4 a 5 filhos por casal. Uma civilização com tecnologia para chegar a outro planeta provavelmente consegue manter a mortalidade infantil bem baixa, mas como vai ficar claro a seguir, precisamos de uma taxa constante de crescimento populacional. Por isso, sinto dizer, mas essa viagem não é “LGBT friendly”. Eu sei que existe inseminação artificial, mas é um processo muito complexo para um planeta começando sua civilização, e esse grupo ia ser muito difícil de lidar considerando as próximas coisas horríveis que vou sugerir. Não podemos ter divisões.

Mulheres, me perdoem, mas precisamos de seus úteros. Isso significa estabelecê-las como cidadãs de segunda classe. Patriarcado, aqui vamos nós: infelizmente para o nosso exemplo, mulheres muito educadas geram menos filhos e tendem a buscar funções maiores na sociedade. Mulheres precisarão ser criadas com um foco muito grande em criar filhos e manter grupos sociais unidos. Para uma sociedade num estágio tão inicial, homens podem dar conta do trabalho fora de casa sem nenhum problema. Precisamos reduzir também sua capacidade de organização, afinal, por mais que as regras estejam claras para as imigrantes originais, suas filhas não assinaram contrato nenhum e precisam ser moldadas pela sociedade. Sem voto, sem emancipação e proibição de assumirem cargos de comando ou profissões que as retirem da casa.

Você deve estar pensando que nenhuma pessoa inteligente toparia essa mentalidade retrógrada, e você está certo(a): precisamos de religião. Uma religião que já seja aceita pela maioria da população. Eu sugeriria o cristianismo, porque já temos exemplos históricos que a religião pode ser vencida futuramente por movimentos iluministas e avanços científicos. Penso nela como uma vacina: você coloca uma religião já enfraquecida na mente das pessoas, que sabe que os anticorpos da racionalidade podem atacar com o passar das gerações. Não escolhi o budismo porque normalmente é uma religião pouco agressiva, o que diminuiria a proteção contra outras religiões e provavelmente faria as pessoas pensarem um pouco mais do que o desejado.

A organização política seria centralizada, com todas as terras inicialmente na mão do Estado, mas sendo utilizadas como moeda de troca para incentivar a iniciativa pessoal. Precisaríamos de um exército que agiria feito polícia por várias décadas antes de considerarmos a divisão (coisa que não conseguiram fazer no Brasil até hoje…). Parece absurdo, mas da leva inicial, podemos considerar pelo menos 1 soldado para cada 20 habitantes. Sim, estamos falando de um exército que ocupa 5% da população global. Nosso sistema é repressivo e exige extrema estabilidade, especialmente no caso de qualquer tentativa de independência. Com o desenvolvimento de uma indústria militar decente, podemos ir reduzindo esse contingente até 1% da população, já que armas compensam mais do que números. Claro que teremos impostos, precisamos pagar por esse exército.

Sim, estamos falando basicamente de uma ditadura aqui. Todo o plano passa por reduzir ao máximo a pluralidade política no planeta novo. Povo que ainda não produz alimento suficiente para gerar uma economia básica não pode ficar pensando em quem vai votar. Ditadura é horrível, mas faz as coisas acontecerem. Fere nossas sensibilidades modernas, mas democracia é muito para a cabeça de quem está apenas tentando sobreviver. O que não quer dizer que não vamos fingir ter uma… o modelo comunista de novo é útil aqui: ao simular uma democracia com um partido único e representantes do povo que sempre ganham a eleição, mantemos uma Constituição que prevê o modelo democrático, mas não o realiza até que o povo tenha capacidade de se mobilizar o suficiente ou seduzir o Exército. Teremos Executivo, Legislativo e Judiciário, todos fantoches no começo, é claro.

Evitaríamos ao máximo ter um sistema prisional nos modelos terrestres, afinal, eles custam muito caro ao Estado. A maioria dos crimes não violentos gerariam penas de trabalho forçado. Somos uma sociedade agrícola, e precisamos de muita comida. Cidadãos considerados perigosos para a sociedade serão enviados para colônias prisionais distantes, apostando no potencial de desenvolvimento econômico de bandidos (funcionou na Austrália) e gerando um plano B caso a civilização original tenha problemas muito sérios. Para evitar que o Estado tome decisões que não possam ser desfeitas, a pior punição de todas seria o retorno para a Terra. Os cristãos podem acabar tentando implementar a pena de morte, mas temos um exército enorme justamente para isso.

Ah, aborto será proibido. Precisamos mesmo dos bebês… nessa mesma linha, prostituição igualmente: precisamos de mulheres presas dentro de matrimônios, sem alternativas. Importante avisar: eu quero chegar num Estado livre que respeita direitos humanos, por isso nenhuma das leis opressivas será protegida em especial pela Constituição. Todas podem ser derrubadas se o Partido perder a maioria no legislativo.

O sistema econômico seria essencialmente socialista nas primeiras décadas, mas ainda chamaríamos de capitalismo. Teríamos dinheiro, até para importar valor da Terra e dar uma vantagem inicial para a população local. Usaríamos uma moeda terrestre por várias décadas para manter essa ilusão de valor universal. Quando finalmente as notícias da Terra chegassem para fazer o povo entender que seus dólares não valem nada com anos de demora para atualizar a cotação, já teríamos criado e substituído as verdinhas por uma moeda local.

O truque de misturar capitalismo e socialismo é adicionar planejamento central da economia com metas claras em ciclos de 5 ou 10 anos, mas já com o conhecimento acumulado de ver governos socialistas errarem incrivelmente nesses planos aqui na Terra. A primeira meta seria segurança alimentar. O básico o ser humano já faz sem ninguém para o controlar: as pessoas vão fazer seus tetos e produzir alimentos para a subsistência, mas o planejamento central vai induzir sistemas de cooperativas agrícolas por vantagens fiscais e distribuição de terras. Precisamos disso para gerar entidades competitivas para produzir inovação e gerar algum grau de desigualdade social. Economias saudáveis dependem disso. O sistema de cooperativas evitaria a concentração rápida de renda em apenas uma família, mantendo o grau de competitividade um pouco maior entre os mais ricos que inevitavelmente vão surgir. O foco dos primeiros ciclos é aumentar a produção alimentar imensamente.

E como evitar que os ricos comecem a reduzir a produção para manter os preços altos? Bebês. Muitos bebês. Para manter o ciclo capitalista funcional depois da primeira fase “socialista”, é obrigatório manter a ilusão de crescimento infinito, para que haja interesse em produzir mais e mais para alimentar, vestir e saciar os desejos de uma população que não para de crescer. Mais pessoas significam mais mão de obra também. A economia passaria de fase para uma industrialização assim que os líderes da fase agrícola conseguissem prover alimentos suficientes para tornar agricultura de subsistência uma péssima ideia. Nossa meta é criar valor por número de pessoas até a mecanização tomar conta da economia.

E se você acha que eu estou maluco por achar que um povo que chegou numa nave precisa passar por fase agrícola antes da industrial, não está lendo direito: eu estou falando de décadas. Já sabemos os atalhos, já chegamos com tecnologia. Por isso precisamos fazer filhos aos montes: o que a humanidade demorou centenas de anos para estabelecer aqui, esse povo vai fazer em uma ou duas gerações. E se não fosse a religião oficial atrasando um pouco esse processo, corríamos o risco disso sair em uma geração. Uma sociedade avançada não ter a menor chance de conter as mulheres, e assim que elas escaparem das garras do Estado opressor, a taxa de natalidade desaba. Aí dependeríamos basicamente só de imigrantes para povoar o novo planeta. Isso não dá certo. Gera divisões sociais numa população muito pequena para acomodar essa tensão.

Ah, já que eu acabei de escrever tanta coisa inaceitável, teríamos uma limitação severa de imigrantes por pelo menos um ou dois séculos. Se o planeta for muito longe da Terra, nem precisamos escrever essa lei, porque daria tempo de gerar uma identidade própria e um senso de comunidade forte nos primeiros que chegaram lá.

Eu basicamente recriei a China? Eu basicamente recriei a China. Mas nesse mundo, essa China pode crescer sem concorrência e não precisa de política de filho único. Acabaríamos com um oligopólio? É meio que inevitável no capitalismo. Mas seria um com muito mais participantes pelo planejamento inicial de cooperativas e espaço o suficiente para quem quisesse fugir disso ter para onde crescer também. E para quem ficou com medo da população crescer além da capacidade de produção de alimentos: não tem para onde migrar, não tem ajuda estrangeira (extraplanetária) rápida o suficiente. Seria triste, mas a população encolheria até o limite da produção naturalmente… e não adianta se rebelar: exército grande.

Pronto. Não vai ser bonito por alguns séculos, mas essa sociedade vai funcionar. O segredo é não querer fazer tudo direito de cara: você tem que plantar as sementes de uma sociedade moderna e deixar ela crescer num ambiente fértil. Pessoas precisam de comida, teto e um mínimo de ordem para funcionar. E mesmo que você tenha odiado as minhas ideias, serve como uma análise de como a humanidade chegou até aqui. Quase tudo o que consideramos horrível hoje em dia em questão de organização social já foi necessário para algum povo no passado. E dificilmente dá para pular essas etapas num planeta novo sem tudo o que já construímos aqui.

Cacete, eu nem arranhei as possibilidades desse tema e já estou na quinta página! Faltou o sistema fiscal! Como não quero brincar com a sorte e usar um “tecnicamente” contra o C.U., mês que vem, quando estiver com temas livres de novo, continuo com o que faria em outras condições iniciais. Enquanto isso, quero ver se você monta uma sociedade melhor com todas as limitações que eu me coloquei (à toa). Somir para presidente da Terra!

Para dizer que começou a valorizar mais a vida que tem, para dizer que os cristãos vão estragar tudo, ou mesmo para dizer que não acredita que leu essa abominação até aqui: somir@desfavor.com

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Comments (6)

    • Era só uma granada recreativa. Desde que ele não tenha violado o pacto de não agressão de outra pessoa, não vejo problemas.

  • Tirando a tecnologia você basicamente fez o Planeta dos Amish. Férteis, religiosos, tradicionalistas e sabem lidar com trabalhos manuais ditos primitivos. Dizem que, assim como as baratas, Amish são capazes de sobreviver à uma guerra nuclear.

    • O mundo moderno já tem muita gente, mas esse mundo novo precisa de úteros trabalhando a todo o vapor! Aposto que até os Amish teriam uma revolução industrial se tivessem espaço “infinito” para se expandir.

  • Falando em natalidade, todas as tentativas atuais de “salvar” nações com baixas taxas de natalidade são no mínimo patéticas. Cursos de namoro? Incentivo financeiro a casais que já tem grana mas simplesmente não querem filhos? Importar milhões de pessoas cuja maioria não vai conseguir emprego e vai viver de welfare? Spoiler: imigrante também envelhece. Spoiler 2: o declínio procriativo já está chegando nos países pobres. Oriente Médio, Ásia central, Bálcãs, leste europeu, América latina… praticamente só faltam África e sul da Ásia, mas um dia chega lá. E duvido que as mulheres vão querer retroceder seus direitos e liberdades pra fazer um novo baby boom, nem as mais conservadoras passam de dois filhos atualmente. Fica minha sugestão de texto: possíveis soluções e adaptações à futura redução da população humana.

    Pra mim primeiramente é preciso parar de ver a futura redução populacional como catástrofe. Uma população menor, consequentemente com mais confiança e coesão social, salários mais altos, menos criminalidade e menos poluição? Só vai ser catástrofe pros políticos e super ricos, isso sim. Menos gente pra explorar e consumir compulsoriamente pra manter o sistema que beneficia apenas a eles.

    Adendo: Pra quem tem curiosidade, Brasil está em 1,7 filho por mulher e o IBGE estima que nos próximos 40 anos literalmente TODOS os estados brasileiros vão encolher (até São Paulo, que é arregaçada de imigrantes). Gráficos valem mais do que mil palavras:
    https://www.ibge.gov.br/apps/populacao/projecao/index.html?utm_source=portal&utm_medium=popclock&utm_campaign=novo_popclock

    • A explosão populacional realmente não era a nossa sentença de morte imediata como tanto se dizia nos anos 70 e começo dos 80 (não à toa, foi quando a China fez a política do filho único). Mas há uma fase de transição muito perigosa entre crescimento e redução populacional: as pessoas envelhecem e colocam um peso enorme no Estado e na sociedade em geral.

      Quando o boomer não sai do mercado de trabalho, o millenial fica confuso e começa usar vestidos…

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