Impagável.

Na última reunião por teleconferência do G20 (grupo das economias mais fortes do mundo), ficou definido um plano de injetar 5 trilhões de dólares na economia global para lidar com a crise econômica causada pelo Coronavírus. É uma medida grandiosa, com certeza. Mas, será que lida com o verdadeiro problema?

Só os EUA passaram medidas de estímulo à economia no valor de 2 trilhões! Até mesmo países quebrados como o Brasil discutem distribuir vários bilhões para a população em dificuldade. Se você é uma pessoa razoável, provavelmente está se perguntando de onde vem essa montanha de dinheiro. Oras, se tinham tudo isso, por que só usar agora? Se essa dinheirama toda estivesse nos nossos bolsos antes da pandemia, todo mundo estaria mais tranquilo para aguentar um mês ou dois de quarentena.

Estavam guardando isso em algum cofre para um caso como esse? Evidente que não, boa parte desse estímulo à economia vai vir das boas e velhas impressoras da Casa da Moeda de cada país. E para isso, os governos precisam emitir mais certidões de débito que façam esse dinheiro ter um lastro. Já faz muito tempo que toda a economia global é baseada em dívidas de governos, empresas e cidadãos. A nota de dinheiro na sua mão é uma espécie de nota promissória do governo que usamos para trocar valor entre nós.

Evidente que muitos vão se perguntar o motivo do governo não ficar imprimindo dinheiro sem parar para zerar todas suas dívidas e investir em serviços públicos sempre, não só agora que tem uma crise de saúde já fazendo estragos na saúde e no bolso das pessoas. A resposta é simples: oferta e demanda. Quanto mais dinheiro existir no mercado, menos ele vai valer. Se o governo brasileiro imprimir um trilhão de reais e sair distribuindo por aí, o pãozinho vai começar a custar uns 1.000 reais o quilo.

Não existe mágica: imprimir dinheiro gera inflação. Tudo o que é muito abundante perde o valor. Se os governos imprimissem novas notas de dinheiro sem parar, as pessoas parariam de usar dinheiro eventualmente. É por isso que a grande maioria dos países não faz essa maluquice, não constantemente, pelo menos. Segundo as teorias econômicas mais aceitas hoje em dia, um pouco de inflação é desejável, tanto que mesmo países com economias muito fortes sempre acabam com algo entre 1 a 3% de inflação por ano. Então, sempre tem um pouco de dinheiro entrando na economia ao redor do mundo.

E qual a lógica de querer inflação? Se o seu dinheiro continuar estável indefinidamente, seu estímulo para gastar e investir é muito pequeno. Se tem uma coisa que a economia moderna não quer é ver gente colocando dinheiro debaixo do colchão e deixando ele parado. No capitalismo, o consumo é essencial: dinheiro não pode ficar parado. Se não houver inflação, não existe incentivo para movimentá-lo. Então, mesmo que muita inflação seja algo ruim, um pouco faz parte do plano.

Então, podemos esperar muita inflação nos próximos meses e anos por causa dessa injeção imensa de dinheiro na economia? Não exatamente. Nem todos os países vão precisar imprimir tanto dinheiro, vários já tinham reservas para esses momentos que vão ajudar a diminuir esse impacto. E se a implementação não for totalmente desastrada, uma boa parcela desse dinheiro volta em impostos e pode ser retirada da economia em forma de reservas estratégicas.

A mecânica do funcionamento desses pacotes de estímulo à economia e contenção de crises é bem compreendida, mesmo países mais bagunçados como o Brasil tem as ferramentas necessárias para fazer essas operações. O problema aqui é mais profundo: é a forma como nossa economia funciona. As pessoas e empresas que economizaram e fizeram reservas financeiras para lidar com crises tem capacidade de sobreviver a um ou dois meses de quarentena. Só que mesmo assim o mercado vai ser inundado com dinheiro para salvar quem não se organizou para isso ou mesmo quem escolheu tocar sua vida ou negócio sem proteção alguma.

Claro que não estou culpando o vendedor de pipoca ou o trabalhador braçal que simplesmente não ganham o suficiente para economizar, essas pessoas sempre estão desprotegidas contra crises e não é culpa delas. Estou falando aqui de cidadãos e empresas que se endividam sem parar mesmo tendo condições de se planejar para momentos difíceis: essas pessoas parecem irresponsáveis agora durante a crise, mas na maior parte do tempo, são as que fazem a economia de um país capitalista médio funcionar. Dependemos de dívidas e consumo desenfreado para que as entidades financeiras consigam movimentar o dinheiro. Dinheiro parado gera recessão, e uma queda de qualidade de vida generalizada ao redor do país.

Percebem o problema? A economia global depende de quem é irresponsável e não se prepara para crises como a que estamos vivendo agora. Sim, os menos favorecidos sempre vão precisar de ajuda, mas se estivéssemos só salvando quem é muito pobre e vive de salário em salário por incapacidade de fazer qualquer coisa diferente, podem apostar que não seriam 5 trilhões de dólares… muitas empresas gigantescas vão receber esse dinheiro também. Empresas incentivadas a trabalhar com fluxos de caixa apertadíssimos para aumentar os lucros de seus acionistas, justamente porque não conseguiriam competir caso seguissem linhas mais conservadoras. O mercado financeiro existe para perpetuar essa ideia de dívidas infinitas, afinal, essa é a reserva de valor da economia moderna.

O imbecil que parcelou um carrão que não precisava e agora está ficando sufocado pela parada do mercado é quem vai acabar recebendo mais ajuda, proporcionalmente. O pobre pobre mesmo precisa de meio salário mínimo para ter o que comer, o consumista compulsivo precisa de muito mais dinheiro para não quebrar a cadeia de dívidas que sustenta a sociedade moderna. Não é à toa que nas últimas décadas estamos vendo uma sucessão de crises: o modelo econômico que seguimos faz isso. Vai todo mundo se endividando com a expectativa de fazer amanhã o dinheiro para pagar, isso aquece o sistema financeiro como um todo e vai ajudando todo mundo a ficar com a cabeça acima da água. Mas invariavelmente esse valor baseado em dívidas quebra quando alguma das partes se torna incapaz de pagar. A crise do começo do milênio (das empresas de tecnologia) e a de 2008 (das hipotecas) aconteceram do mesmo jeito que essa atual: de uma hora para outra todo mundo viu que era tudo especulação sem base de valor real algum e começaram a segurar o dinheiro.

Dessa vez, vamos acabar distraídos desse problema estrutural porque existe um motivo externo no Coronavírus. Mas, se a economia não fosse baseada em especulação e irresponsabilidade, podem ter certeza que não teríamos visto sequer uma fração desse problema. Os governos imprimiriam muito menos dinheiro, e provavelmente só precisariam salvar os muito pobres. O que é mais barato, e claramente mais nobre.

E é esse modelo que acaba forçando uma concentração de renda absurda como vemos na sociedade atual: só ganha muito dinheiro quem consegue se endividar muito. E só consegue se endividar muito quem tem muito dinheiro… estamos vivendo esse ciclo há várias décadas. A única solução para esse problema de mentalidade do capitalismo moderno é não salvar ninguém. Deixar a economia quebrar de forma espetacular e acabar com quase todas as grandes empresas do mundo, deixando milhões desempregados à própria sorte para recomeçar numa terra arrasada. Boa parte dos bilionários perderia 99% de toda sua riqueza em questão de meses.

Mas isso é uma medida horrenda: bilhões poderiam passar fome e perder acesso a quase todo o padrão de vida mínimo do século XXI. Seria um desastre tão imenso que nenhum governo do mundo teria coragem de fazer; seja por ganância, seja por sede de poder ou mesmo por questões humanitárias. Talvez nossos tataranetos agradeçam pelo sacrifício, vivendo num mundo com menos desigualdade e um senso de valor mais equivalente à realidade dos recursos disponíveis… duvido que alguém tope fazer algo do tipo.

É muito por isso que eu sou defensor de acelerar o máximo possível a expansão rumo ao resto do sistema solar ou algo grandioso do tipo: a humanidade precisa de lastro para toda essa dívida. Se o colapso vier, ele resolve, mas se conseguirmos turbinar a economia com incontáveis toneladas de novos recursos e bilhões de novos empregos, o problema pode ser empurrado um ou dois milênios para frente.

Porque do jeito que a coisa está, não vai funcionar. Uma crise por década pelo menos, e a cada uma delas, mais dívidas, mais incentivo para irresponsabilidade e mais dinheiro sendo impresso sem um plano claro do que fazer com ele. Vem uma crise por aí, e daqui a alguns anos, vai vir outra, e outra, e outra…

Para dizer que economia é o tema ideal para minha chatice, para dizer que só quer a sua Bolsomesada, ou mesmo para dizer que sabia que suas compras inúteis tinham uma função no mundo: somir@desfavor.com

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Comments (6)

  • Mito dos Lacres

    O efeito ai é clássico. INFLAÇÃO! Mas ela pegaria de um jeito ou de outro no pé do pessoal, com a questão da combinação do fator desabastecimento com o fator de que temos uma economia fortemente oligopolizada.
    Os efeitos da crise do “coronavirus” só não são mais nefastos porque a distensão entre os produtores de petróleo impediu que eles usassem da posição de barganha para segurar ou mesmo aumentar o preço do barril.
    De qualquer forma, os países ditos desenvolvidos poderão lidar no médio prazo com uma inflação próxima a da virada dos anos 70 pros 80 e o Brasil com muita sorte tem um índice próximo ao dos repiques de 2002-2003 e de 2015.

  • Sem querer ser chato, mas…desigualdade não é exatamente o verdadeiro problema da economia moderna. Tal problema atende pelo nome de pobreza. Aliás, desigualdade é uma métrica bastante irregular de se observar como anda uma sociedade/economia: existem países absurdamente fodidos que são, no papel, menos desiguais que países de primeiro mundo. Observar apenas se a concentração de renda foi mitigada não atesta como um todo a qualidade geral de uma economia.

    Podemos melhorar a qualidade de vida do mundo? Sim, no dia em que nossa maior preocupação for não a distância entre o topo e a base, mas como anda a base

    • Desigualdade não é o problema, mas sim como ela interfere na vida, e por qual razão acontece. Não ligo de receber menos que meu gerente, nem de não ter uma graduação, por exemplo. Isso não me impediria de levar uma vida minimamente produtiva… Numa sociedade sã, que visa produtividade e não disputa consumista de ego. O que fode é quando essas disparidades em si, ainda usando o exemplo do $$$ e da graduação, se tornam pesos definitivos de cidadania e dignidade humana (não tem diprôma? Vão te tratar pior que lixo hospitalar), a ponto de te olharem com nojo e te negarem oportunidades tocando o foda-se pra competência ou mérito (passar 4~5 anos numa instituição pra conseguir um papel validando um potencial antes da exerção da função e então da comprovação da capacidade é mérito indiscutível e sucesso de vida absoluto agora), indiferentes inclusive a coisas mais essenciais como civilidade, educação, etc.

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