Cloroquina.

O assunto estava na mídia há algum tempo, mas nessa última semana, ganhou um imenso destaque: a cloroquina como possível cura para o Covid-19. E é claro, não como uma discussão inteligente, mas como um festival de ignorância arrogante e politizada. Desfavor da semana.

SALLY

Não existe cura para Coronavírus, é algo muito recente. Não existe nenhum remédio comprovadamente eficaz que faça o paciente se recuperar. Existem estudos, especulações, possibilidades, que vão desde antirretrovirais, plasma de pacientes curados e até remédios para vermes. Uma dessas possibilidades é a Cloroquina, diga-se de passagem, uma possibilidade muito mal cotada no meio científico.

O remédio já existia e já era permitido no Brasil, mas para tratar outras doenças, como malária, por exemplo. Então, não é uma nova descoberta científica nem nada, como estão fazendo parecer. Só resolveram testar um remédio que já existia e já era vendido para uma doença nova. Certamente você deve ter escutado muitas opiniões sobe a Cloroquina, a questão é: você escutou opiniões de quem está avalizado para falar?

A Fiocruz, eleita pela OMS como laboratório de referência no combate ao Coronavírus, afirmou que o tratamento com Cloroquina não reduz a letalidade em casos de Covid-19. O Centro de Prevenção e Controle de Doenças dos Estados Unidos (CDC) apagou do seu site as orientações destinadas a médicos sobre como prescrever a substância. Hospitais de diversos países civilizados, como por exemplo Suécia, já suspenderam o uso do remédio, por causa dos efeitos colaterais gravíssimos que causa. Quando escutamos quem está avalizado a falar, percebemos que não parece uma boa opção. A Cloroquina tem tudo para ser a nova Talidomida e fazer estragos em toda uma geração.

Não está dentro da nossa alçada explicar as razões médicas/científicas pelas quais a Cloroquina não é a melhor opção, é ineficiente e arriscada, podendo, além de não ajudar na melhora, ainda causar severos danos e até morte no paciente. Não ouça o Desfavor, ouça a ciência, mas cientistas competentes que não tiveram seus estudos refutados. Ou então, como uma segunda opção, observe como estão performando os países que usam Cloroquina.

Não precisa de muito cientifiquês para perceber que ela não é a salvação da lavoura: basta olhar para os países que estão fazendo uso dela e ver como eles estão se saindo em matéria de salvar vidas: EUA, Itália, Brasil… que tal? Você acha que está dando certo? As pessoas estão saindo curadas ou mortas? Pois é, contra a realidade, não há ginástica argumentativa que se sustente.

O grande problema aqui é que um medicamento foi politizado. Quem é a favor de Bolsonaro fica cego e abraça a Cloroquina, mesmo que ela já tenha causado mortes no Brasil (sim, a pessoa morreu por causa da Cloroquina, não do Corona) e quem é contra o Bolsonaro acha que ela é um veneno que está dando deliberadamente para matar pacientes (talvez com mais estudo e alguns ajustes ela de fato seja a resposta). O discernimento geral está turvado. Polarizaram um remédio, vejam só a que ponto chegamos.

No momento, a Cloroquina não garante a sua sobrevivência em caso de Coronavírus, se garantisse, os EUA não estavam enterrando centenas de corpos em covas rasas todos os dias. Mas está sendo vendida como tal. E, além da mentira original dessa narrativa, surge um problema secundário: quem acredita está voltando às ruas, quebrando o isolamento social, que é única coisa que realmente protege, contando que se for contaminado a Cloroquina resolverá tudo.

Não resolve. Pode danificar seu coração. Pode causar uma parada cardíaca. Pode te deixar surdo. Pode te fazer perder a visão. Pode não fazer feito algum e você morrer sufocado sem conseguir respirar. E isso tem que ser deixado bem claro, pois essa desistência progressiva do isolamento social não vai ter consequências imediatas, e o brasileiro, tal qual cães e pequenos roedores, só consegue associar algo a uma consequência imediata. O que se planta hoje, se colhe no começo de maio.

Outra coisa que faz gente pensante levantar a orelha: segundo o The New York Times, o Presidente dos EUA, Donald Trump, é um dos proprietários da empresa Sanofi, uma das maiores fabricantes de Cloroquina do mundo, que por sinal é uma empresa francesa, curiosamente a mesma nacionalidade do estudo falho, refutado e vergonhoso que atestou a eficiência da substância. Bolsonaro está promovendo o produto do coleguinha.

Como Somir já explicou em texto próprio e como ambos reafirmamos no sábado passado, Bolsonaro é um Trump Wannabe, copia o presidente em tudo, puxa o saco o quanto pode e acredita que o caminho para que o Brasil melhore se dá através de uma imitação tosca de tudo que os EUA fazem. Pelo visto ele pensa que se colar com quem se dá bem, ele vai se dar bem também. Mas dessa vez, ele se fodeu.

Trump errou, e errou feio em matéria de Covid-19. As pilhas de corpos confirmam seu grave equívoco. Seguir os passos de quem errou é burrice, mas insistir nos passos de quem errou é retardo mental. Bem, talvez o Bolsonaro sequer tenha opção, ele passou meses desacreditando o Coronavírus, demorou tanto para tomar uma providência, que só deve ter sobrado a Cloroquina encalhada vendida pela fábrica do amigão como recurso para combater a doença.

Ele apostou todas as suas fichas em algo que ainda não foi cientificamente provado. É a cara dele fazer isso. Tudo que Bolsonaro tem é a porra da Cloroquina, então, dentro dessa mente obtusa, não resta outra opção do que vendê-la como a oitava maravilha do mundo. A escolha do Brasil é a seguinte: trata com Cloroquina ou não trata.

É hora de ouvir a ciência. Mas uma ciência de respeito, médicos/cientistas capazes, conceituados, não médicos que tiveram seus trabalhos refutados por sua metodologia falha. Não basta usar um jaleco para que a pessoa mereça sua confiança. Eu abraço o que a Fiocruz diz: não tem eficácia comprovada, mas tem diversos malefícios graves comprovados. Eu ouço o que meu médico de confiança diz: não importa o que aconteça, não tome Cloroquina.

Então, não forme sua opinião com base em política. O Brasil chegou onde chegou por desprezar a ciência. Até a semana passada, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), a SBFC (Sociedade Brasileira de Farmácia Clínica) e a SBI (Sociedade Brasileira de Infectologia) se posicionavam contra o uso de Cloroquina para tratamento de Covid-19. É um grande complô mundial? Suécia, Fiocruz, CDC… todo mundo unido para prejudicar o Bolsonaro?

No começo, não faz muito tempo, ele sequer se admitia a existência do Coronavírus. Era uma gripezinha que a mídia do mundo todo estava inflando para boicotar o Presidente. Agora a narrativa migrou: a mídia do mundo todo está “torcendo a favor do vírus” e desmerecendo a cura milagrosa que só Bolsonaro e Trump conhecem, presidentes de países com altíssima letalidade de mortes por Covid-19. Francamente, haja paciência.

Minha opinião: Bolsonaro vai naufragar abraçado com a Cloroquina. Se funcionasse, o número de mortes do Brasil, nos EUA e na Itália não estariam subindo de forma alarmante, apesar de toda a subnotificação. Nunca se aposta todas as fichas em um lugar só, muito menos quando ele é experimental.

Escutem a ciência, apenas a ciência. Especialistas renomados, não vídeo de WhatsApp de fulano com jaleco fazendo discurso a mando de laboratório para vender remédio. Observem o que está acontecendo com os países que utilizam o medicamento. E jamais, em hipótese alguma tomem essa merda de Cloroquina por conta própria achando que isso vai prevenir ou resolver alguma coisa.

Para dizer que não se pode esperar muito de quem limpa o nariz com a mão e depois cumprimenta pessoas na padaria, para dizer que não tem gente morrendo nos EUA e é apenas sabotagem da mídia ou ainda para dizer que além de tudo, Trump vai sair mais rico dessa pandemia: sally@desfavor.com

SOMIR

A medicina moderna é um divisor de águas na história humana. O grau de proteção à vida de um ser humano dos dias atuais não encontra paralelos em nenhuma outra espécie da natureza, e mesmo em comparação com pessoas vivendo um século atrás, estamos numa realidade completamente diferente. A descoberta da penicilina só vai fazer cem anos em 2028!

Eu já tinha usado esse argumento para dizer que era basicamente impossível impedir que a humanidade de 2020 aceitasse uma pandemia seguir seu curso natural, afinal, quase todo mundo vivo nos dias atuais sequer concebe a ideia de que um microrganismo possa ganhar uma guerra contra a gente. Mas, é claro, isso não quer dizer que medicina seja mágica. Mesmo com os imensos avanços que nossas gerações aproveitaram, ainda é uma ciência recente, pelo menos nos moldes atuais de método científico e aplicação responsável.

O corpo humano é uma máquina extremamente complexa, os processos que nos mantém vivos e ativos dependem de uma infinidade de processos químicos, uma parte considerável ainda não compreendida. E se não fosse o suficiente, cada um de nós é único por causa do DNA e das condições dos ambientes nos quais crescemos e vivemos. O remédio que cura uma pessoa pode matar a outra, e vice-versa. É por isso que todos vem com bulas descrevendo efeitos colaterais: infelizmente qualquer um de nós pode ser o 0,00001% dos casos onde um tratamento pode dar imensamente errado.

Se você for tirar só uma coisa deste texto, que seja a ideia de que medicina é muito difícil. Mesmo os melhores médicos e cientistas da área cometem erros, e nem sempre tinham como prever o problema. É por isso que remédios e tratamentos em geral precisam de muitos testes para ser liberados para utilização em massa: tem coisas que ninguém consegue presumir antes de fazer de verdade. Longos períodos de testes não são uma conspiração das indústrias médicas, são uma necessidade básica para conhecerem os casos nos quais remédios funcionam e talvez até mais do que isso, saber de antemão o que pode dar errado e preparar as medidas necessárias para lidar com efeitos colaterais.

Menos do que isso não é medicina moderna. A cloroquina e suas variações são remédios antiquíssimos, utilizados por índios brasileiros desde tempos imemoriais para uma série de tratamentos. É uma família de substâncias que ajuda em diversos problemas de saúde, mas também pode matar em doses ou diagnósticos errados. Sua função no tratamento da malária a tornou popular nos tempos antigos, mas se você for para a Amazônia, vão te dizer que serve para milhares de outras coisas. Ninguém sabia bem o que a substância fazia. Existe mérito no conhecimento acumulado de incontáveis gerações de nativos sim, mas é um outro paradigma de medicina: “tente isso, é melhor do que nada”.

Se ainda estivéssemos nessa mentalidade, a humanidade teria muito menos gente vivendo muito menos tempo. Não porque todo mundo do passado era burro, mas porque eles não tinham as ferramentas e o conhecimento acumulado suficiente para fazer do jeito que fazemos agora. Por sorte, a humanidade ficou boa nisso de acumular e aperfeiçoar conhecimento. Hoje sabemos que remédios e tratamentos funcionam por um motivo, dependem de condições específicas do paciente e que por mais que funcione na maioria, ainda podem fazer mal para alguns indivíduos. Toda a lógica da medicina atual é baseada nisso: compreender o que está acontecendo para reduzir o grau de aleatoriedade no processo.

Mas aqui, mais um problema do mundo moderno: as pessoas desenvolvem seus conhecimentos de forma muito diferente. É tanta coisa para aprender que quase todo mundo é um especialista em uma pequena área de conhecimento. Deixamos para os médicos e pesquisadores da medicina a tarefa de entender o que funciona ou não, fazendo com que o cidadão médio acabe com a ilusão de que medicina é algo mágico mesmo: não tem a menor ideia do que está acontecendo, mas vê muita gente tomando um remédio e se curando, ou vê alguém entrando muito mal num hospital e saindo bem melhor.

Quando você vê uma pessoa muito especializada fazendo algo muito complexo, existe um risco considerável de você achar que é fácil. Quem viveu a maior parte da sua vida num mundo onde a medicina consegue resolver com consistência boa parte dos problemas de saúde das pessoas pode acabar acreditando que é fácil: só achar a substância certa e curar o doente. É muito mais complicado do que isso. Só parece fácil porque estamos vendo gente extremamente especializada fazendo coisas que já foram estudadas a fundo por milhares de outras pessoas.

E como burrice parece andar de mãos dadas com arrogância, muita gente vai além de achar medicina fácil, acha que sabe mais que todo mundo que estudou a fundo o tema: que enxerga além de gente que passou décadas da vida debruçada sobre um problema. Tratam o conhecimento alheio como algo que já tem e querem ir além. Não fazem nem o básico, mas se acham especialistas no tema. Eu sempre digo que o trabalho mais fácil do mundo é o dos outros, porque é impressionante como temos essa mania.

Ninguém ainda tem um grau de confiança decente para receitar cloroquina e suas variações para pacientes do Covid-19. A fase é de testes, e como estamos vendo ao redor do mundo, não é essa maravilha toda. Não sabem exatamente o que funciona quando funciona. Pode ser um daqueles tratamentos que só funcionam com uma minoria, pode ser uma série de coincidência, pode ser que nem resolva de verdade. Não sabemos ainda. Demora para ter confiança e fazer o processo científico correto.

E eu nem estou aqui para dizer para ninguém usar o remédio, faça o que bem entender, eu estou dizendo que essa mentalidade de achar que sabe mais que todos os médicos por causa de algo que leu na internet é a MESMA coisa que fez da medicina uma coisa pra lá de ineficiente durante a maioria da história da humanidade. É regressão. Medicina é extremamente complicada, e você provavelmente sabe muito pouco sobre isso. Se for para encher a boca para falar que sabe que cloroquina faz bem ou faz mal sem ter estudado de verdade e feito os testes, você não é melhor do que alguém fazendo simpatia para curar doença…

Para dizer que é um complô de quem vende o produto para não vender o produto, para dizer que é um complô de quem se beneficia com a cura para não ter a cura, ou mesmo para dizer que é um complô de quem depende da economia para destruir a economia: somir@desfavor.com

Se você encontrou algum erro na postagem, selecione o pedaço e digite Ctrl+Enter para nos avisar.

Etiquetas: ,

Comments (8)

  • Incrível que nem a beira da morte e do abismo o brasileiro não larga o vício do ‘pão e circo’ !!!! O circo além da cloroquina, é tb esse teatrinho cínico Mandetta x Bolsonaro e essas passeatas irracionais. Tudo pra não enxergar o que realmente interessa. O pão representa as feiras e mercados lotados, pra mais a noite chamarem a vizinhança e parentada toda pra assistir lives, todos juntos e misturados, numa beleza de isolamento social bem à brasileira. Infelizmente não tem mais com esconder e fingir que a sociedade e estado brasileiros fracassaram e não passam de um monte de primitivos e bárbaros.

    • Aglomeração na porta do banco. Aglomeração na porta da lotérica. Aglomeração no lugar onde se teria consulta com especialistas pra problemas de saúde crônicos e os mesmos cancelam as consultas sem qualquer aviso prévio e sem deixar sequer um cartaz de indicação disso.
      Aglomeração na porta do supermercado as vésperas da sexta-feira santa.
      Lindo ver a patuleia sendo empurrada sem qualquer consideração pro abismo, até porque na terra do jeitinho, quem pode mais chora menos.

  • Esse remédio virou a boia salva-vidas do Bolsonaro, porque a crise que está explodindo na cara dele é sem precedentes. Ao se agarrar na teoria que esse remédio funciona, ele tá metendo um all-in, indo pro tudo ou nada pra salvar a carreira política dele (e vai se foder e foder a população junto no processo). Mas pior é tentar discutir com eleitor dele que se agarrou cegamente nessa ideia. Tente relatar a longa lista de possíveis efeitos colaterais graves da administração desse remédio, e ouça o maravilhoso argumento: “tem algum pior que a morte?”

    O Brasil tá fadado a se foder gravemente nessa crise.

    • Bolsonaro é a Dilma de Cueca. Se reelege por conta da sombra nefasta do Coroné Luís Inácio por trás dos ditames da política brasileira.
      Mas o dele está guardado. Depois de assumir o segundo mandato, é questão de tempo pra tomar um impeachment.

  • Se você gritar a palavra ‘CIÊNCIA’ perto do Pandemito, ele grita, se encolhe e joga água benta em você. Parece que tem alergia.

    Eu nem sei se queria que todo mundo saia de casa e morra logo, para largar mão de ser burro, ou só parar de ler jornais pelos próximos meses e viver alienada…. qual será a melhor opção?

    • Pare de ler jornais e ver noticiários, embora o corona seja uma questão séria o jornalismo está muito exagerado e alarmista. Tive que afastar a TV da minha pobre mãe porque esses dias ela chegou a ter uma crise de choro :(
      Estou passando mais tempo conversando e jogando uns jogos de tabuleiro com ela pra ver se ela se distrai…

  • Mito dos Lacres

    Pra quem não lembra, tem o desfavor da Fosfoetanolamina lá em 2015, que a famiglia Bolsonaro e fuckin’ Jean Wyllys estavam apoiando para uma suposta cura do câncer, sendo que já havia na época pesquisas indicando que tal composto químico NÃO ERA EFICAZ nesse sentido.
    De qualquer forma, a cloroquina e seus similares tem efeitos colaterais pesados, sendo que a indicação médica é para último caso e por conta de todo esse circo, agora a Cloroquina só é fornecida COM RETENÇÃO DE RECEITA. Beleza, campião!
    Pra Dilma de Cueca chamada Jair Bolsonaro… Se você cair que nem ela, eu acho é pouco. Você pode se reeleger em 2022, mas o seu tá guardado. E tal como os retardados lulistas que gritam que o impeachment da Dilma foi golpe, os retardados bolsominions farão o mesmo caso o Bolsonaro tenha o mesmo destino, mas como diz aquele velho ditado “cão que ladra não morde” e a birra desse povinho sem noção (Bolsomínion é quase um Lulista 2.0) não prevalescerá.
    Mourão, tal como Michel Temer, seguiria como mandatário-tampão e em 2026 se abriria espaço para um candidato mais ligado a BANCADA EVANGÉLICA, que é a turma que de fato dá as cartas no jogo político.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: