Eu achava que era um medo patológico do brasileiro, mas quanto mais temos contato com a comunidade internacional por causa da internet, mais fica claro que é um problema humano: temos muito medo de sermos otários. Burros tudo bem, mas otários, nunca! Mas, tem diferença?

Na definição da palavra, tem sim: otário é o cidadão inocente, inexperiente ou ignorante que é facilmente enganado. Burrice passa perto desse significado, mas não presume imediatamente que alguém tirou vantagem da pessoa. E essa distinção é muito importante, tão importante que muita gente vai falar as maiores burrices só para evitar a presunção de otária.

No cerne dessa questão não está uma hiper valorização da inteligência e da cultura, como poderia se presumir. Já escrevi antes sobre essa questão e como muita gente vive sob a ilusão que inteligência é um superpoder que garante sucesso na vida ou, indo completamente na outra direção, uma maldição que fatalmente termina em depressão. O que na prática, não é verdade, como a maioria das visões extremistas também não são. Na sociedade atual, inteligência é mais ou menos como um padrão de beleza inalcançável: as pessoas acham que querem ter, tem raiva de quem acreditam ter, mas no final das contas a imensa maioria não se esforça para alcançar. Aliás, beleza e inteligência se unem nesse aspecto: por mais que você tenha, sempre tem algo do que reclamar.

E eu digo que essa questão do medo de ser otário não é diretamente conectada à relação confusa da humanidade com a inteligência (própria e alheia) porque é relativamente fácil perceber como a pessoa que se esforça para não ser otária prescinde da inteligência num piscar de olhos. Uma das principais manifestações desse medo está nas teorias conspiratórias: a ideia que existe algo que não está sendo dito sobre fatos importantes da nossa história. E como toda ideia popularizada de tal forma, não existe sem seu fundo de verdade: pessoas mentem, já dizia o House. Pessoas mentem e instituições formadas por pessoas mentem institucionalmente. Seja para esconder falhas ou para encobrir comportamentos criminosos, não é insanidade, de forma alguma, desconfiar de informações recebidas de estranhos cujas intenções você desconhece.

Porém, considerando o teor de boa parte dessas conspirações, começa a ficar mais clara a diferença entre não querer ser otário e não querer ser burro. Isso vai desde as premissas, como no caso da Terra Plana e das Vacinas, até mesmo aos saltos (i)lógicos utilizados para conectar fatos como em conspirações como a que prega que boa parte das elites econômicas e políticas do mundo participam de um círculo secreto de pedofilia. A pessoa conecta a estampa da roupa de uma celebridade com a decoração de um prédio e te pergunta se é coincidência…

Se a ideia de ser burro te incomoda, eu duvido muito que você se exponha dizendo que acha que a NASA manipula vídeos de astronautas na Estação Espacial. Pode até ser que não tenha capacidade alguma de entender a bobagem que está dizendo, mas todo burro no fundo sabe que é burro e tira o pé do acelerador quando confrontado com um tema complexo.

E agora você provavelmente vai me dizer que isso é mentira, porque os burros são os primeiros a falar os maiores impropérios, carregados daquela certeza arrogante que só o burro tem. Mas eu não escrevo este texto à toa: sim, parece que o burro não tem reserva nenhuma de se expor e sempre é o mais vocal sobre um tema, mas essa é uma ilusão que nós temos por causa desse “medo de ser otário” que permeia o comportamento de tantos de nós.

O burro não entra numa universidade e discute com um professor de física uma fórmula de física quântica. O burro não enfia o dedo na cara de um neurocirurgião dizendo qual a melhor forma de tratar um aneurisma. O burro costuma ser bem humilde e muitas vezes até dócil e prestativo diante de um tema que não entende. A não ser que… ele sinta a ameaça de ser otário. Aí, Dr. Jekyll vira Mr. Hyde, a pessoa entra num modo de defesa poderoso e não tem limites no tamanho das asneiras que pode falar ou fazer.

A diferença essencial entre o burro e o otário é que o otário está pagando um preço pela sua incapacidade de ler a situação da forma correta. O burro teme ser otário com todas suas forças, porque eu imagino que deva ser desesperadora a ideia de sofrer consequências negativas e não tem ferramentas para lidar com isso. O problema essencial do burro é sua dificuldade de aprender com os erros e controlar os danos causados pelas suas decisões ruins. Uma pessoa inteligente pode ser otária, muitas passam a vida sendo passadas para trás, mas raramente pelos mesmos motivos. Quando você tem bem desenvolvida a habilidade do aprendizado, não se torna imune às intenções negativas ao seu redor, mas acumula o conhecimento necessário para não repetir erros. Exceção desonrosa aos assuntos emocionais em pessoas muito inteligentes, mas não é o ponto deste texto.

O burro não pode se dar ao luxo de ser otário, porque não tem nem o alento de aprender com seus erros. Precisa de vigilância constante. Mas, isso ainda não resolve: difícil se manter vigilante se você não sabe bem contra o quê está lutando. Num exemplo simples: se você não entende bem sobre carros, qualquer diagnóstico do seu dado por um mecânico te coloca nessa situação. Você não sabe se a pessoa está falando a verdade, está sob a pressão (autoimposta por orgulho besta) de tomar uma decisão e não tem de onde tirar a informação necessária, não naquele momento. A vida do burro é uma série interminável de visitas ao mecânico.

E isso cria um mecanismo de defesa. Um que podemos chamar de “jeitinho brasileiro”, mas que na verdade encontra paralelos ao redor do mundo. Não é só querer passar a perna no outro, até porque não faltam burros honestos nesse mundo, é a paranoia constante de que alguém está tentando passar a perna em você. Quando essa mentalidade toma conta, a desconfiança passa a ser um modo de funcionar, o medo constante de não entender o que está acontecendo ao seu redor e ser inocente, ignorante ou inexperiente o suficiente para deixar alguém fazer mal para você ou suas pessoas queridas vira combustível para todo tipo de pensamento e declaração bizarras.

“Se eu partir do princípio que está todo mundo mentindo, não tem como me pegarem!”

E aí, uma foto do planeta Terra é uma manipulação da NASA e prova que sua religião está sob ataque. Um estudo aleatório sobre a relação entre vacinas e autismo que virtualmente toda comunidade médica acha absurdo vira motivo para arriscar a saúde de seus filhos e toda a comunidade, aquela imagem de um pronto-socorro vazio sabe-se lá de onde e tirada sabe-se lá quando é prova que o coronavírus não existe! Conexões bizarras entre informações feitas sob o terror de ser enganado. Pessoas inteligentes costumam conseguir entender contextos e fontes, dando um grau de segurança maior sobre as informações que acreditam ou não. Gente menos capacitada não tem essa segurança.

E por isso, precisam criá-la onde puderem: num atalho até uma suposta verdade maior oculta do resto das pessoas, que só elas são capazes de perceber. Não importa o tamanho do abismo que tiverem que pular entre uma ideia e outra para acreditar nisso. É um tipo de ponte que só o medo consegue criar, e medo pouco se importa com ser burro ou inteligente. Como vivemos num mundo que sufoca o cidadão médio com uma avalanche de informações complexas a cada minuto, estamos vendo mais e mais pessoas tomadas por esse medo. Gente que até poucas décadas atrás não tinha a responsabilidade de compreender a realidade muito além do caminho entre a casa e o trabalho agora se sentem pressionadas a tomar decisões gigantescas sobre a humanidade em geral.

Eu fico muito puto com burrice, sempre fiquei. Mas se você não conseguir olhar para essas pessoas e perceber esse medo, vai passar a vida dando murro em ponta de faca e queimando pontes. Trazendo mais um elemento para essa análise: é muito do que criticamos aqui na forma como a esquerda moderna está lidando com a era da informação, e por consequência, a reação deplorável da direita. Se você se mostra agressivo com uma pessoa assustada, boas chances dessa pessoa espelhar sua agressividade. É uma lei da natureza, maior que qualquer elemento político inventado por nós: qualquer animal acuado se torna mais violento. E o mundo de hoje está cheio de gente acuada pelo excesso de informação. O medo de ser otário nunca foi tão grande.

Mas, como perder o medo de ser otário? Bom, em primeiro lugar, ser otário é uma daquelas certezas da vida. Sempre vamos ser inocentes, ignorantes ou inexperientes em muito mais coisas do que somos bem capacitados para lidar. Viver com medo não é solução para nada, mas se for para fazer um processo de transição, o medo de ser burro é menos danoso para você e para o mundo em geral. O medo de ser burro pelo menos te faz pensar duas vezes antes de dizer ou fazer alguma coisa. Te obriga a estudar um pouco que seja para não passar vergonha sobre um tema. Você ainda vai precisar vencer o medo de ser burro, afinal, existe muita sabedoria em dizer “não sei” às vezes. Mas, dos males, o menor.

Talvez alguém aqui esteja se perguntando se estou dizendo que todo conspirador é burro. Não, não estou dizendo isso. Mas é fácil perceber onde está o problema: quem defende essas ideias por medo de ser otário normalmente defende suas teorias de forma agressiva, tenta matar a conversa rapidamente e principalmente, projeta o medo em você te chamando de otário. Uma pessoa razoável que por algum motivo defende uma opinião muito fora do padrão normalmente estudou bastante sobre isso e se sente segura o suficiente para lidar com a controvérsia de forma serena. Ela também provavelmente aceita que você discorde, mesmo que não tenha nenhuma inclinação a mudar de ideia (direito dela, oras).

E enquanto você tiver isso em mente, vai ver como é fácil notar a diferença. Faça o seu melhor para não ser otário, claro, mas se eu puder dar um conselho, faça ainda melhor para não viver na base do medo.

Para me chamar de otário, para dizer que é exatamente isso que eles querem que a gente pense, ou mesmo para dizer que percebeu que é burro (nenhum burro perceber que é burro, parabéns): somir@desfavor.com

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