Acupuntura
| Somir | Desfavor Explica | 22 comentários em Acupuntura
Eu estava com vontade de falar disso faz tempo, a semana de Sísifo talvez seja mais útil do que o esperado. Se eu te dissesse que existe um tratamento invasivo para seu problema de saúde que estão tentando provar que funciona há mais de 5 mil anos sem sucesso, você não ficaria desconfiado(a)? Bom, talvez não se eu só dissesse “acupuntura”. Às vezes é o jeito que se fala…
Eu disse que essa forma de tratamento tem mais de 5.000 anos porque isso é usado como argumento pelos praticantes (falácia da tradição), não porque acredito muito… essa ideia é baseada numa múmia encontrada nos alpes suíços que provavelmente viveu nessa época e tinha no corpo tatuagens nos pontos quase que exatos utilizados pela acupuntura. Só que isso não quer dizer que era acupuntura, até mesmo porque naquele tempo não havia como fazer agulhas finas o suficiente para não matar a pessoa, e com certeza não com cobre, o metal disponível naquela região. Na verdade, estima-se que o ser humano usa a ideia geral de “pontos especiais” no corpo há muito tempo, mas sobre acupuntura mesmo, o mais concreto que temos é um texto chinês de 100 AC na China.
Mas mesmo assim, eu aceito o argumento dos 5.000 anos, porque fica ainda mais bizarro o fato de ainda não ser um tratamento de eficiência comprovada. Acupuntura é provavelmente a forma de medicina alternativa mais popular do mundo. Não se sinta triste achando que só brasileiro ainda cai nessa, chineses, russos, americanos e até mesmo alemães gastam muito dinheiro (particular e público) com a prática. Por isso eu nem vou gastar muito tempo explicando o que é, a maioria de vocês já deve saber que estamos falando de colocar agulhas no corpo do paciente em locais estratégicos para gerar algum efeito terapêutico.
As primeiras explicações dadas pelo acupunturistas se baseavam em conceitos exotéricos com “chi”, uma espécie de energia vital que regula o nosso corpo e dá poderes para personagens de mangá e anime. Ao manipular o fluxo do “chi” no corpo de alguém, a ideia é que isso altere o funcionamento do organismo de alguma forma. E enquanto estamos nesse campo de “talvez faça alguma coisa que não conhecemos ainda”, a turma do misticismo corre solta. Sim, talvez faça alguma coisa que ainda não entendemos, mas isso também vale para comer cocô com os mesmos argumentos. Cuidado com a armadilha lógica: não é só porque sempre existe a chance da ciência não ter descoberto uma coisa ainda que tudo é válido por igual.
Acupuntura, assim como diversos outros tipos de tratamentos alternativos, dependiam muito do “deus dos vãos” para ter algum respaldo. Deus dos vãos (numa tradução fanfarrona) é a nossa tendência natural de criar explicações sobrenaturais para o que ainda não entendemos, criando seres mágicos e energias fantasmagóricas onde a ciência ainda não jogou uma luz. Eclipses eram mensagens dos deuses até entenderem o conceito de órbitas. Como no mundo antigo ninguém tinha noção do que era ciência e medicina como entendemos agora, acupuntura era tão válida quanto qualquer outra coisa, não havia muito o que discutir sobre o “chi” que os chineses falavam, no máximo uma discussão religiosa…
Mas o deus dos vãos vai ficando menor com o passar dos séculos. A partir do século XX, a acupuntura se viu diante de um problema: a medicina baseada em método científico. Quando a ideia de testar o funcionamento de teorias de forma mais rigorosa assumiu o protagonismo da área, não havia mais muito espaço para energias místicas do corpo manipuladas por agulhas. Ou a acupuntura se provava, ou seria aposentada como o uso de sanguessugas… relíquia de um passado mais inocente da medicina.
O que não se previa é que essa provação seria a melhor coisa que já aconteceu com a acupuntura (quer dizer, para quem ganhava dinheiro com ela). A partir dali a prática acabou dividida entre os que ainda tratavam do tema de uma forma mística e os que queriam dar uma roupagem científica para as agulhas. O cidadão do século XX já começava a torcer o nariz para medicina baseada em superstição, mas se você conseguisse colocar um jaleco nela… é aí que começa a era pseudocientífica da acupuntura.
E eu chamo de pseudocientífica porque faz o clássico da pseudociência: tenta provar um ponto que já se acredita sem evidências. Método científico verdadeiro só tem uma hipótese antes do experimento, e se o experimento disser que a hipótese estava errada, cumpriu sua missão também. Na pseudociência, o objetivo é provar a hipótese e nada mais. Tanto que eu aposto que os defensores da acupuntura vão te dizer que saíram sim muitos estudos comprovando sua eficácia: o problema é que virtualmente todos são de pessoas e entidades que já praticavam a acupuntura, e a grande maioria veio da Rússia e da China sem nenhuma transparência ou reprodutibilidade.
Os testes que cumpriram os requisitos básicos de estudos científicos sérios não chegaram à conclusão alguma sobre a acupuntura: os resultados não eram estatisticamente diferentes de aleatoriedade. Alguns pacientes relataram melhoras nas dores, outros não, alguns pacientes foram tratados com a técnica correta, outros foram espetados de forma completamente aleatória, outros nem espetados foram: colocaram uma venda na pessoa e só cutucaram a pele fazendo a pessoa acreditar que estava sendo tratada da forma normal. Foram centenas de estudos, alguns com muitos pacientes, e não foi comprovada nenhuma diferença real entre praticar acupuntura nos pontos certos ou nos pontos errados, nem mesmo entre espetar de verdade a agulha ou não.
Mas havia algo para salvar a acupuntura: a ideia de medicina alternativa e medicina chinesa/oriental que surge no século XX também. Muita gente percebeu que a medicina feita de forma responsável era muito restritiva para dar conta de tanta gente querendo pagar por ilusão. Não existia medicina alternativa no passado, estava tudo mais ou menos no mesmo patamar. O que aconteceu é que quando uma forma de lidar com a saúde se provou a mais correta, transformou todo o resto em superstição barata. Sabe como chama medicina alternativa que funciona? Medicina. E medicina não dá conta de todos os problemas que temos, ela falha, pode custar muito caro, pode não dizer o que a pessoa quer ouvir…
E é aí que se abre espaço para tanta pseudociência e superstição: o ser humano nem pensava nessa válvula de escape antes da medicina moderna, mas a partir do momento que ela se instala e prova por A + B que entrega resultados de verdade, ela cria o mercado das alternativas. Uma coisa que eu realmente acho que a medicina do passado era mais hábil em fazer era tratar as expectativas das pessoas, a parte humana da esperança e do conforto. Médicos podem ser frios, números podem ser cruéis. Às vezes a pessoa só precisa de algo para se agarrar no meio da tempestade. A medicina alternativa consegue explorar esse mercado como poucos: mesmo oferecendo tratamentos que deveria saber que não funcionam, consegue entregar a esperança que a medicina muitas vezes não consegue. A pessoa não quer ouvir que tem 15% de chance de cura, ela quer ouvir que existe uma chance. É um detalhe sutil que a medicina moderna não costuma levar em consideração, e é nesse vácuo de empatia que baboseiras como a acupuntura ainda consegue existir.
Ainda mais quando a partir dos anos 60 vai se abrindo um caminho cultural entre ocidente e oriente. Mas como começa a virar moda aprender com a iluminação de gurus indianos e médicos tradicionais chineses, a acupuntura consegue fincar o pé na sociedade ocidental, mesmo quase sendo abandonada no seu local de nascença: o partido comunista chinês quase baniu a prática (porque no meio do século passado já sabiam que não servia pra nada), mas Mao (sempre ele) insistiu para manter esse elemento cultural nacional para fomentar o orgulho do povo.
Medicina oriental é medicina alternativa, que por sua vez, não é medicina de verdade. Podem ter certeza que o que foi descoberto na Ásia em relação ao assunto e se provou correto já faz parte da medicina. Todos os povos contribuíram alguma coisa para o nosso conhecimento médico, se acupuntura ou qualquer outro desses métodos orientais de tratamento fosse fazer parte desse pacote, já teria acontecido. São milhares de anos de chances e mais chances que receberam. Já foi, e muito, o tempo dos “mistérios do Oriente”, hoje em dia já são parte integrante da cultura mundial. Esse papo de medicina oriental é resquício de um mundo antigo que muita gente ainda aproveita para ganhar em cima.
E eu sei, vai ter gente querendo discutir as partes técnicas da acupuntura, dizendo que eu não expliquei por que não funciona rebatendo os argumentos que os acupunturistas usam para se explicar. E para isso, eu já deixo a resposta: não se discute conclusões de premissas erradas. Para que qualquer conversa sobre acupuntura seja viável, ela tem que responder à questão básica sobre como os testes sérios feitos sobre a prática não demonstram nada além de aleatoriedade. Por que eu vou discutir sobre pontos energéticos, manipulação de chi ou algo do tipo se a base de toda a conversa não se sustenta? Tinha que ter resultado significativo para sequer avançar na parte técnica. Não tem. Espetar aleatoriamente dá no mesmo, não espetar e fazer a pessoa achar que está sendo espetada dá no mesmo. Se o chi ou algo do tipo existisse, a acupuntura passaria por esses experimentos. Mas não passou. É que nem você querer discutir comigo sobre os poderes de cura do chifre do unicórnio sem conseguir provar que existem unicórnios…
“Ah, mal não faz…”
Primeiro: pode fazer sim. Como não é medicina de verdade, você pode cair na mão de qualquer maluco. E qualquer maluco pode acertar um nervo te fazendo sentir muita dor, pode perfurar um órgão e causar uma infecção, ou pode não usar agulhas descartáveis e te passar uma doença. Todo ano morre alguém por complicação médica causada por um acupunturista imbecil. Claro, os bem treinados provavelmente não vão causar nenhum problema sério, e os que não são seres humanos terríveis vão te dizer que só serve para tratar algumas dores e nada mais, mas mesmo assim, você está deixando de tomar o remédio que precisa na esperança que o efeito placebo funcione no seu corpo. E faz mal, faz muito mal se você confiar tanto em acupuntura ao ponto de ir se tratar assim antes de falar com um médico de verdade.
E como sempre: é mais um buraco na sua capacidade de enxergar a realidade. Você deixa passar algo bizarro pelo seu senso crítico, e seu senso crítico perde um pouquinho da força. Não sou eu que acho que não funciona, não é uma opinião, porque como a Sally bem diz, a ciência não se importa com opiniões: a inutilidade da acupuntura é o resultado de milênios tentando provar algo e não conseguindo, porque não fazia o menor sentido para começo de conversa.
Corra de medicina oriental: o oriental inteligente não usa essas crendices, ele vai no hospital e age como se estivesse no século XXI.
Para chamar meu texto de racista, para dizer que seu horóscopo disse que acupuntura funciona, ou mesmo para dizer que só gosta de ser espetado(a) mesmo: somir@desfavor.com
Esse negócio de agulha é besteira
Quando vejo textos como esse fico pensando no quanto o nosso cérebro é mais poderoso do que imaginamos e que conhecemos/exploramos pouco da capacidade dele de interferir e modificar nosso corpo e nossa saúde. Provavelmente os resultados positivos da acupuntura e de outros métodos não comprovados cientificamente venha da crença e da vontade de que dê certo…ou seja, da ação da nossa mente. Como a Sally já disse em outro texto “A mente humana é capaz de controlar o funcionamento do corpo em proporções que nós sequer imaginamos. Nós temos esse controle em algum lugar, só não conseguimos acessá-lo conscientemente – ainda.”. No dia em que conseguirmos acessar esse controle, aí sim poderemos ter as respostas e soluções para o que hoje a ciência ainda não alcança.
Enquanto existir otario malandro se dá bem.
É o ciclo da vida.
Imagem que sempre me vem à cabeça quando ouço alguém falar de acupuntura, Do-In, homeopatia e quetais: https://i1.wp.com/www.cedricstudio.com/wp-content/uploads/2014/01/SnakeOilSalesman-450px.jpg
Sabia que tem até pra cachorro? Uma conhecida minha pagava fortunas pra tratamento do cachorrinho
Tem que botar uma das histéricas de direitos animais nessa direção de lutar contra acupuntura animal, para elas finalmente terem uma função na sociedade.
A minha tia tinha vontade de fazer esse tratamento de vudu, mas diz que tem medo de enfiarem agulha num nervo e dar merda.
Deveria ter medo primeiro de pagar por algo que simplesmente não funciona… mas sim, como não é algo sério, existe um risco considerável de cair na mão de um açougueiro.
Não era esse o bonequinho da Vivo?
Tem comunicação mais rápida que a do boneco de vodu? Espetou num lado do país, a pessoa sofre do outro… deve ser por isso que é o mascote.
“poderes de cura do chifre”
Sabia que graças a esse tipo de crendice em relação aos chifres de rinoceronte está fazendo uma pressão populacional nas populações de rinoceronte a ponto de algumas estarem praticamente extintas.
Muitos animais desapareceram por causa da medicina oriental. Mas, isso a Greta não mostra.
Eu já me cago só de ter que levar uma furada no braço durante o exame de sangue anual, que dirá no corpo todo! Vou repetir o que disseram nos comentários do texto de ontem: só fetiche ou desespero justificam isso.
Nem quis me aprofundar muito na parte psicológica da coisa no texto, mas… eu acho que tem um componente de sofrimento embutido em práticas como a acupuntura. Ser humano se amarra nessa coisa de sacrifício e expiação para se sentir melhor com a consciência. A imagem da pessoa toda espetada pode dar essa sensação de estar “pagando o preço” pela saúde…
Somir, assim como a acupuntura, aquela técnica de auto-massagem chamada Do -In também é um exemplo de prática antiga de “medicina” oriental – com aspas em “medicina”, por favor – que sobrevive até hoje cercada de misticismo e que a ciência já comprovou que não funciona, não?
Sim, é a mesma coisa que acupuntura, mas pra gente que tem medo de agulhas. Ao invés de espetadas, dedadas. Toda essa história de pontos de pressão, manipulação do chi… se tem um tonto pra comprar, tem um esperto pra vender.
Vi num sebo certa vez um livro sobre Do-In. Olha a capa dele aí: https://http2.mlstatic.com/do-in-tecnica-chinesa-de-massagem-teraputica-D_NQ_NP_921908-MLB42135655700_062020-F.webp
Coleção “você é o seu médico”…
Somir, eu fiz uma busca rápida no Google e olha só os títulos de alguns outros livros dessa mesma coleção “Você É O Seu Médico”:
– “Remédios Caseiros Aprovados: Mais de 500 Receitas Para Todos Os Fins”
– “Guia Clínico De Ervas E Fórmulas Na Medicina Chinesa”
– “Curso De Massagem Oriental: A Linguagem Do Tato”
– “Tratamento Para Rejuvenescer: Oxigenoterapia, Ozônio, Terapia Celular, Extrato De Timo, Soroterapia, Procaína, Enzimas, Tratamento Combinado De Köhnlechner”
– “Como Aumentar A Sua Altura: Fique Mais Alto Dando Adeus À Dor Nas Costas”
– “Aprenda A Fazer O Seu Bioritmo”
– “A Arte Curativa Dos Chineses: Ajuda Contra Insônia, Excesso De Peso, Pressão Baixa, Depressão, Dependência De Nicotina, Prisão De Ventre, Diarréia, Que De Cabelo, Dor De Cabeça, Transtornos De Menopausa, Problemas Dos Olhos, Problemas Reumáticos, Problemas De Potência, Problemas Estomacais”
Auto-massagem é o ápice do isolamento social… Eu gosto de massagem normal, sei lá como chamam… a tira-nó mesmo… faria uma agora, se as pessoas não fossem infectas que gostam de andar em conglomerados.
Já vi uma acupunturista dizendo que quando sangra é porque tinha mais energia negativa acumulada no ponto X ou Y (não pq ela pos a agulha errado dessa vez). Minha mãe adorava esse troço. Eu tenho aicmofobia. Me ameacem com uma Ak-47, mas não com uma agulha, então… imagine que as agulhas para mim são as lagartixas para Sally.
Santo Daime entra nesse esquema de ‘pseudo curas’ ou é mais barato mesmo? Mais uma ‘religião’ que uma cura?
Santo Daime é uma religião baseada no uso de um poderoso alucinógeno chamado chá de ayahuasca. É tratado mais como uma experiência mística do que como terapia alternativa, então nem entra no escopo desta semana temática. Merecem ser xingados por outros motivos.