Ídolo mortal.

O adeus a Diego Armando Maradona foi do jeito que o melhor o representa: intenso. A despedida do craque argentino, que morreu ontem após uma parada cardíaca aos 60 anos, começou cedo com uma multidão emocionada na Casa Rosada e só teve fim no enterro em uma cerimônia intimista na noite desta quinta-feira. O dia teve confusão, sangue, lágrimas e um país inteiro parado e mobilizado por um ídolo. LINK


Podemos admirar os argentinos por muitas coisas, mas com certeza não por essa insanidade. Desfavor da Semana.

SALLY

Para quem não pescou a sutileza, estamos nos comportando como lunáticos, fanáticos e desequilibrados desde a morte do Maradona, de forma irônica. Sim, é piada. É piada com essa insanidade coletiva que tomou a Argentina que, em vez de ser motivo de repúdio, parece ser motivo de inveja e admiração do Brasil: “aqui nunca teríamos uma comoção nem parecida com o que está acontecendo na Argentina”. QUE BOM, meus queridos, que bom. Idolatria é uma modalidade muito cafona de insanidade.

O que está acontecendo na Argentina não é saudável. Não romantizem essa passionalidade, esse descontrole emocional, esse desequilíbrio. Dar tanta importância a algo externo, a uma pessoa que você nem conhece, a um ídolo, é desequilíbrio mental. Confundir uma pessoa com um corpo também. Não era o Maradona quem estava lá, deitado em um caixão. Era um pedaço de carne sem vida. Dar esta importância a um pedaço de carne sem vida é uma desproporção.

Ídolos são sinônimo de desequilíbrio mental. Quem precisa de ídolos é infantilóide, escapista da realidade e tem sérios problemas para os quais não quer olhar. Repito: não é saudável ter ídolos, é coisa de adolescente sem vivência. Não aplaudam a Argentina por isso. Admirar alguém é ok, mas idolatrar alguém é algo que se aproxima muito de uma religião, portanto, extremamente nocivo para quem o faz e para a sociedade.

Idolatria turva o discernimento, te faz perder tempo olhando para uma criatura imaginária que só existe na sua cabeça (a pessoa real é bem diferente) projetando nela o que você admira ou gostaria ser, em vez de olhar para a sua vida, para as suas questões e tentar melhorar sua realidade. É uma fuga, uma anestesia. E, como tudo que turva o seu discernimento, acaba levando a péssimas escolhas, que foi o que vimos esta semana na Argentina.

Um Governo que manteve as pessoas por quase nove meses de quarentena, uma das mais longas do mundo, achou que era coerente com suas escolhas liberar um velório para mais de um milhão de pessoas. Enquanto milhares não puderam nem velar seus entes queridos (independente da causa da morte), tá tudo bem aglomerar pessoas em um local fechado para ver um corpo sem vida de uma pessoa que ninguém ali conhecia.

O pior foi a desculpa: que se não o fizessem, o resultado seria ainda pior. Beleza, acabaram de passar um recibo de que o Governo não tem o menor controle sobre o povo. Sim, o argentino ia promover uma baderna nível guerra civil se lhes fosse negado esse velório, mas cabe ao Poder Público impedir que isso aconteça. Vai abrir as pernas para cada demanda nociva das massas por medo do que eles vão fazer?

Obviamente o velório deu merda. Excluindo o fato de que vieram jornalistas e pessoas de todas as cidades e de todos os países do mundo e entraram sem teste para covid e sem quarentena, o que vimos foi uma enorme aglomeração onde era impossível fiscalizar se pessoas usavam máscaras. Um amontoado de gente que de forma alguma respeitava um distanciamento social seguro, muitos com crianças de colo e até bebês.

O prazo para encerramento do velório era às 16h. Obviamente, quando essa hora chegou, muita gente ainda não tinha conseguido entrar. Fecharam os portões e as pessoas que ficaram de fora (não eram poucos) derrubaram os portões na porrada, meteram a porrada na polícia e entraram à força, de forma desordenada. Eu sou suspeita para falar pois desde sempre desgosto do peronismo, mas isso é típico de governos populistas como são os peronistas: alimentam idolatria, alimentam circo e não conseguem conter o povo.

E não é preciso quebrar toda a Casa Rosada e descer o cacete em policiais para se portar de forma insana. Gente passional chorando, com os braços estendidos para o céu, pedindo que Deus troque, o leve e devolva Maradona é o mesmo patamar de loucura. Nada disso é sobre o Maradona e sim sobre a insanidade e os problemas não resolvidos que as pessoas têm dentro de si. É para isso que ídolos servem, para dar vazão a todo o lixo que temos dentro da gente, projetando-o em um desconhecido.

Quem idolatra não é uma pessoa intensa, é uma pessoa com severos problemas. Não é normal fazer esse escândalo por uma pessoa que você nem conhecia. Na real, não é saudável fazer esse escândalo por ninguém. Vamos todos morrer, estejam preparados, faz parte da vida. A dor é inevitável, mas o sofrimento é opcional. Passem por isso com o máximo de graça e elegância, sem chorar e pedir a Deus que te leve e traga a pessoa de volta.

Hora de parar de relacionar escândalo e descontrole com amor. Amor é consciência, é estabilidade emocional, não choro, gritaria e passionalidade. Mas, se você diz isso em voz alta, vira insensível, escroto e morto por dentro. Latino ainda carrega esse mito de que, para ser amor tem que ser intenso, bagunçado, extremo e quem não é assim é “frio”. É dignidade que chama, não frieza. Mas se querem continuar se comportando como símios, beleza. Não esperem aplausos nossos.

E não foi só na Argentina o desfavor. O mundo todo adotou aquela postura de canonização post mortem: quando era vivo, Maradona era motivo de chacota, de piada. Cada vez que aparecia muito doido virava Meme, era esculachado, ridicularizado. Agora que morreu virou um santo e não se pode mais falar dele. Quem fez piada com ele em redes sociais foi repreendido. Vão tomar no cu. O próprio Maradona fazia piada consigo mesmo o tempo todo, bando de moralista hipócrita.

Mas, o que mais me chocou (e sempre me choca) foi o culto ao corpo. Arriscar a própria vida e a dos seus familiares para ver um corpo morto, inerte, sem vida. Maradona não está mais lá. Não importa no que você acredite, é consenso em todas as crenças que ele não estava mais ali, naquele caixão. Que porra de importância é essa que dão ao corpo, como se ele fosse a essência da pessoa? Você não é o seu corpo, Maradona não era o corpo dele. É como confundir o motorista com seu carro, o corpo é um meio para que realizemos o que queremos, mas não somos nós.

Não consigo definir com outra palavra que não “insanidade” quem arrisca a vida, cai na porrada com a polícia e comete crime para ver o corpo sem vida de uma pessoa que nem conhecia. Se ele estivesse vivo e a pessoa pudesse interagir com ele, eu entenderia, mas não é o caso. É um pedaço de carne morta, como seria um bicho atropelado no meio da estrada. O formato que a carne morta tem pouco importa, não é mais o Maradona. E brigar para ver um pedaço de carne morta que tem o formato do Maradona vai ter seu preço, não afeta só os idiotas que o fizeram e sim toda a nação: em breve, uma segunda onda de covid 19 chegará ao país.

A imprensa, óbvio, sempre perpetrando desfavores. Insistiram no antagonismo de quem era o “rei”, Maradona ou Pelé. Mas nem morto o sujeito tem paz? Dá para ter um, dois, dez reis. Não precisa um ser melhor do que o outro. Não são comparáveis, são épocas diferentes, são realidades diferentes. Aí começam a vazar fotos da autópsia, de fulaninho que fez selfie no caixão, depoimentos de pessoas que atribuem a morte dele à família, que o obrigou a ficar de quarentena na casa… Não dá para respeitar a dor de filhas que acabaram de perder um pai? Todo mundo sabe muito bem o que matou o Maradona, e certamente não foi sua família.

Por sinal, a família de Maradona não queria velório, não queria nada. Sempre tentaram manter El Diego longe dos holofotes e falharam, pois Maradona tinha um ego do tamanho da sua barriga. O próprio Maradona disse em vida que queria uma mega despedida. Pediu até para ter seu corpo embalsamado e exporto ao público. Olha, se a intenção era ver um corpo sem vida, poderiam ter esperado pelo corpo embalsamado e pegar senha para visitar, de forma ordenada.

Fica aqui nosso recado: idolatria não é para ser elogiada, é para ser combatida. Faz mal para quem idolatra, faz mal para o idolatrado e faz mal para a sociedade. Não é amor, não é um sentimento válido, é descontrole e infantilização.

Para dizer que vão cancelar minha cidadania argentina, para dizer que Maradona morreu em 1994, depois de ter sido pego no doping na Copa do Mundo e o resto foi hora-extra ou ainda para dizer que, como não foi no seu país, riu da treta: sally@desfavor.com

SOMIR

Escutei um comentarista esportivo dizer na TV que a melhor forma de entender o que aconteceu com os argentinos na morte do Maradona é lembrar de como o brasileiro se sentiu quando o Senna morreu. E faz muito sentido, tanto para explicar esse sentimento de tristeza coletivo como para dar o tamanho do que foi Maradona para o povo daquele país.

Como é bem possível que tenhamos muitos leitores que eram muito pequenos ou sequer tinham nascido em 1994, talvez valha a pena fazer um relato pessoal da morte do piloto brasileiro antes de desenvolver o resto do argumento: eu ainda era novo e muito menos crítico no meu pensamento, então, experimentei o pacote completo. Como muitos brasileiros naquele dia, eu estava vendo a corrida, como via todos os domingos. Vi ao vivo nas pessoas ao meu redor e na cobertura da televisão todas as reações de um país ficando monotemático.

Eu era basicamente uma criança, então chorei bastante. Eu realmente gostava das corridas e torcia há alguns anos por ele (o que naquela idade é uma boa parte da sua vida). O que me pegou de surpresa foi a reação dos adultos: quando você é novo, ver adultos se abalarem pelas mesmas coisas que você é um choque. Só que eu fui notando alguns padrões: alguns adultos ficaram tristes por um tempo, outros ficaram realmente mal. Algumas pessoas contavam histórias interessantes sobre o Senna, outras reclamavam da injustiça, ficavam com raiva…

Os adultos que mais levaram isso numa boa foram meus pais e alguns membros selecionados da família. Não é que fizeram pouco caso ou tiraram sarro, só ficaram chateados na hora, mas depois seguiram normalmente. O que me ajudou. Foi um domingo triste, mas segunda-feira tinha escola. E o curioso, alguns colegas estavam chateados, outros estavam arrasados. O que foi um alívio pra mim: sim, o Senna morrer foi um golpe em quem gostava tanto de ver as corridas e ver ele ganhando títulos, mas eu não conseguia ficar arrasado por tanto tempo assim como algumas pessoas, especialmente as da TV. Eu tinha uma família que não se abalou demais e amigos que não estavam monotemáticos.

Demorou um tempo para eu conectar os pontos: o pessoal da minha família que só falava de futebol ficou muito abalado. Os que falavam de assuntos variados e faziam as piadas mais malucas nem tanto. Meus amigos que conversavam de videogame e tiravam notas altas estavam numa boa, mas a turma do fundão parecia bem abalada. Evidente que eu não tinha capacidade de entender aquilo em 1994, mas em 2020 o padrão se forma: o grau de dor pela morte de um ídolo, especialmente esportivo, parece diretamente proporcional a quanta coisa se tem dentro da sua cabeça.

Dizem que cabeça vazia é oficina do diabo, mas talvez seja a oficina dos ídolos. Ninguém está pregando a supressão dos sentimentos aqui, cada um sente o que o sente, e não é crime algum ficar triste porque uma pessoa que você admira morre. Mas, as coisas têm limite nessa vida. Tanto no Brasil em 1994 quando na Argentina em 2020, aposto que muita gente chorou mais pelo ídolo esportivo que por toda a família. Em alguns casos pode até ser válido, mas via de regra é uma demonstração de desequilíbrio emocional e alta suscetibilidade à histeria coletiva.

Temos ídolos e heróis, é normal. Mas essa forma de canonização popular comum especialmente em povos latinos é sinal de algo saindo do tom. Maradona foi um gênio no seu esporte e um maluco sem filtros no resto da vida, mereceu uma parte da comoção sim, mas ninguém merece a insanidade coletiva de uma aglomeração em plena pandemia, violência e depredação para olhar um corpo… porque isso é uma criação de pessoas problemáticas e/ou influenciáveis.

Eu tive a sorte de ver adultos dando bons exemplos: exprimir o sentimento de perda sem exagero me ajudou a modular minha reação. Sim, foi muito triste que o Senna tenha morrido naquela curva em Ímola, mas a minha vida era muito mais do que aquilo. Quando passou a dor, eu não me senti nem um pouco culpado, afinal, tinha gente ao meu redor que me fez acreditar que estava de bom tamanho. Não quero ser conspiratório, mas talvez muitos adultos de hoje não tenham tido esse tipo de exemplo na infância: viram todos ao seu redor entrar numa catarse coletiva sem vergonha nenhuma de idolatrar um cara que dirigia muito bem, mas que no final das contas não tinha impacto direto na vida delas.

Essa loucura em relação a ídolos é parte integrante de um vazio interno que muita gente experimenta na vida. E talvez o mais surpreendente é que esse vazio é uma ilusão: milênios de propaganda sobre grandes propósitos ou felicidade idealizada deixaram boa parte da humanidade na dúvida se estava faltando alguma coisa na sua vida. O ídolo, esportivo ou mesmo político como tão em voga, parece alguém que sabe o que está faltando, ou alguém pelo qual você vai conseguir preencher esse vazio.

Já pensaram que não está faltando nada? Que esse buraco na alma foi criado para vender mais bíblias e iphones? Os melhores de nós podem cair nessa armadilha, basta não ter bons exemplos ao seu redor num momento vulnerável. Senna foi um piloto espetacular, mas se for para ficar com uma admiração pra vida naquela história toda, que seja pelos adultos ao meu redor naqueles dias que me mostraram que tudo bem ficar triste, mas que a vida é muito mais do que ídolos.

A Argentina tem muita coisa boa, mas quando você vê o tipo de comoção que a morte de um jogador de futebol causa, começa a entender porque eles estão presos basicamente no mesmo limbo evolutivo que o Brasil.

Para dizer que faltou guerra nesse continente para deixar o povo mais macho, para dizer que estamos testando sua fé em Maradona, ou mesmo para dizer que eu estou velho: somir@desfavor.com

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Comments (10)

  • Ídolos têm uma grande utilidade na cultura humana. Mas ídolos burros, idolatrados por pessoas burras, realmente é um mal antigo. Nesse aspecto os africanos sempre estiveram à nossa frente, à sua maneira.

  • Que coisa mais patética a atitude desses sujeitos que, como verdadeiras “carpiderias argentinas”, se ajoelham aos prantos e levantam as mãos aos céus pedindo para Deus levá-los e “devolver” o Maradona. Essa gente não tem noção de ridículo, não?

  • Wellington Alves

    Sinceramente eu cheguei a pensar que poderiam sequestrar o cadáver do Maradona assim como fizeram no caso da Evita.
    Mas, por via das dúvidas, não custa nada redobrarem a segurança no cemitério.

    • Puxa vida, Wellington… Será que o fanatismo por lá seria tanto para chegarem mesmo a esse ponto? Se bem que eu também já não duvido de mais nada…

  • Capitão Impressionante

    Argentinos sempre foram excessivamente passionais. Quando Gardel e Evita morreram a comoção nacional por lá não foi igual a de agora? Aqui mesmo, no Brasil, muito antes do Senna, também não houve semelhante consternação generalizada com a morte da Carmen Miranda e o suicídio de Getúlio Vargas?

    • No ponto, talvez os argentinos sejam ainda mais “passionais” e apegados. A força política e popularidade dos Perón (tanto Juan quanto Eva) foram incomensuravelmente maiores que os de Vargas. Basta lembrar que, por ocasião do retorno de Juan Perón à Argentina em 1973 (dezoito anos depois de apeado da Presidência) houve um tiroteio entre seus adeptos em Ezeiza, em um episódio marcante da guerra interna peronista.

    • A julgar pelo que se vê nos poucos registros filmados dessa época que sobreviveram até os nossos dias, dá sim para dizer que a comoção geral nesses casos foi semelhante.

  • “Dizem que cabeça vazia é oficina do diabo, mas talvez seja a oficina dos ídolos.”
    Bem, tem aquela teoria de que muitos ídolos fazem pacto com diabo e cultos satânicos com sacrifícios de crianças, rs.
    Mas falando sério, é interessante ver essas diferenças culturais e suas respectivas vantagens e desvantagens.
    No ocidente somos ensinados a sermos os eternos ambiciosos, exploradores de mares distantes, mas isso acaba gerando um shaming em cima de quem não quer muita coisa da vida além de uma casinha e uma churrasqueira no quintal, ou algo do tipo.
    No oriente são ensinados a não perturbarem a harmonia do coletivo, não causar conflitos, mas isso acaba desencorajando a inovação, a pensar fora da caixa. E quem é diferente está sujeito a bullying pesado, mesmo que não tenha sequer escolhido ser diferente, como os deficientes.

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