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Colunas

Crise de consumo.

Faz um bom tempo que eu estou querendo atualizar meu computador. Desde o final de 2019, para ser mais exato. Mas, os preços ainda não estavam do meu agrado. O que é hilário de se pensar agora que o dólar quase dobrou nesse meio tempo e está tudo num preço absurdo. Mas tem algo pior ainda acontecendo: quase tudo no campo da informática ficou mais caro (no mundo todo) e está difícil comprar não por causa da crise, mas porque as pessoas estão comprando rápido demais…

Segundo muitos dos fabricantes e distribuidores do mercado de computação pessoal, estão vendo volumes de vendas compatíveis com a Black Friday (em países onde não é uma fraude descarada como aqui) desde o mês de Março. Tirando os produtos de quinta categoria que você vê com desconto nas lojas brasileiras, todo o resto está sumindo com tanta demanda. Por isso, os preços estão muito inflacionados.

Eu me resignei e vou ter que esperar mais alguns meses para fazer a atualização que queria. Só lembrando que como eu uso meu computador para ganhar dinheiro e performance aumenta a quantidade de dinheiro que ele faz, eu preciso de peças específicas de alta qualidade (e preço) que serão compatíveis com atualizações futuras, então agradeço de antemão se alguém se empolgar para sugerir alguma promoção, mas se está em promoção, dificilmente é o que eu preciso. Dessa vez nem é elitismo.

O jeito é esperar. Esperar para ver se o dólar recua um pouco (o que com esse governo é basicamente jogar dados e torcer) e esperar esse povo de países com mais capacidade de compra finalmente se acalmar e parar de comprar tudo o que aparece nas prateleiras. A pandemia fez com que muita gente fosse trabalhar em casa, e foi aí que descobriram como o computador de casa não dava mais conta do recado, então é até justo que tenha uma elevação no consumo desses equipamentos. Mas essa atenção ao mercado de peças para computador me fez olhar além disso.

Eu não sei quanta gente realmente precisa das mesma peças que eu de verdade, mas algo me diz que não é um volume compatível com os estoques vazios de tantas lojas ao redor do mundo. Veja bem, se eu estivesse montando um computador só para entretenimento em casa, eu poderia gastar metade do que gastaria num profissional e ficar muito feliz com o resultado. Foi-se o tempo de tudo exigir uma máquina duas vezes mais poderosa todos os anos, pra maioria das coisas que o cidadão médio faz em casa por entretenimento na frente de uma tela, quase todos os computadores dos últimos 5 anos se viram muito bem.

Ainda mais considerando que esse mesmo cidadão médio está numa boa com um celular pra quase tudo o que faz (um computador lento com uma tela minúscula), não era pra ter uma demanda tão imensa por processadores e placas de vídeo de última geração, por exemplo. Mas, boa sorte tentando comprar algo do tipo: os estoques desaparecem em segundos em equipamentos que podem custar tanto quanto um carro usado. A coisa está tão insana que o mercado encheu de “cambistas”, gente que tem seus esquemas para comprar antes do consumidor habitual e revende por preços absurdos. E se você é mais atento(a), pode estar considerando que a capacidade de produção das empresas que fazem essas peças diminuiu, mas não é o caso, quase tudo é feito na China, que praticamente não parou. Revendedores estão dizendo que a oferta é a mesma de outros anos, a demanda que subiu mesmo.

Ao mesmo tempo, a ONU solta avisos sobre como 2021 pode ser um ano terrível do ponto de vista humanitário, com muita gente voltando para a faixa da miséria depois de vários anos de evolução constante. Não é como se estivéssemos numa era de bonança global, muito pelo contrário. Existem fatores específicos do mercado de peças para computador que podem explicar uma maior empolgação (houve sim um avanço recente considerável na capacidade dos computadores para casa), mas 2020 é um ano único nessa falta contínua de oferta para lidar com a demanda.

Então, vamos somar os pontos: praticamente todas as moedas do mundo desvalorizaram em relação ao dólar, a economia está muito ameaçada por causa da pandemia, muita gente perdeu o emprego, muita coisa subiu de preço por problemas de logística… e mesmo assim, gente que quer pagar quase dez mil reais numa peça de computador não consegue porque o estoque acaba na hora. O que está acontecendo?

Bom, a minha teoria é que a pandemia atinge desproporcionalmente o psicológico de quem tem condições financeiras para se importar com ela. A única coisa evitando a maioria da população global de pirar de vez é a pobreza. Pouca gente tem a capacidade de lidar com uma quarentena sem ficar meio maluca, porque pouca gente se sente confortável com longos períodos de isolamento e riscos externos para o próprio bem estar. Se você não tem escolha a não ser sair de casa para pagar suas contas, problema resolvido: encara tudo como se fosse mais um daqueles riscos inerentes à vida em sociedade.

Mas, se você tem a sorte de poder se manter isolado e pagar suas contas, sua saúde mental começa a ser determinante para lidar com a situação. Uma coisa é pegar um ônibus porque precisa pra trabalhar, outra é fazer uma escolha consciente de sair e ficar amontoado com um monte de estranhos por estar com vontade de passear. O cérebro perdoa a primeira, mas não a segunda. E aí sim sua rotina começa a sofrer e a necessidade de colocar algo no lugar vai aumentando.

Quase todas as pessoas vivas hoje em dia só conhecem a era da propaganda: desde muito pequenas, incentivadas a consumir para preencher vazios na vida. A solução para quase tudo é comprar alguma coisa ou contratar algum serviço. Está tudo lá fora, você tem que consumir para ser feliz. Parece papo de comunista, mas é a verdade. O capitalismo moderno é uma forma de funcionar para a maioria de nós. Você só acha que está indo pra frente quando compra um carro zero ou uma bela casa, por exemplo, acabamos nos medindo pela nossa capacidade de consumir.

O que se pode argumentar que embora não seja o ideal, pelo menos é um rumo para um ser tão atormentado como o humano, mas que começa a ficar mais e mais problemático de acordo com circunstâncias externas como o isolamento social. Interações com outras pessoas costumam ser um bom controle para essa mentalidade consumista, derivamos propósito de boas relações também. Quando essas relações começam a diminuir em volume e em intensidade, o “vazio existencial” continua precisando de preenchimento, e a tendência é que sigamos para o caminho mais conhecido.

Nesse caso, o consumo. 2020 vai ser lembrado como o ano da pandemia, mas já fazia parte de um processo de desumanização das relações que acontece desde o começo da internet. Relações virtuais não geram a mesma sensação de saciedade emocional que as da vida real, mas são tão mais fáceis: além de não dependerem tanto de localização e horários, ainda permitem um grau de idealização muito maior em ambos os lados. Você se mostra como quer para pessoas que também estão modificando a própria imagem. É tudo muito prático e muitas vezes mais seguro, mas o vazio vai aumentando sem percebermos.

Nós advogamos aqui no Desfavor que você continue usando todas as benesses da tecnologia, mas que não se esqueça de olhar pra dentro e não deixe vazios na sua alma por negligência. Se conheça, se aceite, se baste. Nada que possa ser feito do dia pra noite, mas uma boa meta mesmo assim. Só que o mundo não é feito de situações ideais: poucos de nós conseguem escapar dessa necessidade incessante de propósito e saciedade. É importante saber que por mais conscientes que nos achemos, há uma programação social poderosa agindo sobre todos nós que nos faz considerar comprar alguma coisa para criar felicidade.

E justamente por causa desse ano, muitos de nós ficamos mais vulneráveis a agir de acordo com essa programação. Novamente, você precisa ter um grau mínimo de estabilidade na vida para mudar seus hábitos por causa da pandemia, mas até onde eu conheço os leitores daqui, boa parte se encaixa nisso. Esse povo acabando com os estoques de peças de computador como se fossem gafanhotos numa plantação não é tão diferente da gente. Os que ganham em dólar com certeza levam alguma vantagem, mas a lógica interna é bem parecida. Eu tive que me controlar várias vezes nessas últimas semanas para não puxar o gatilho e consumir produtos muito acima do valor que eles realmente merecem ter.

A sorte que eu tive foi a de poder fazer cálculos mais precisos sobre o quanto esses produtos valiam, afinal, peças de um computador de trabalho tem que se pagar. Gosto de acreditar que não compraria por pura necessidade de consumo por validação como é evidente que tanta gente está fazendo atualmente (você não precisa de um processador de 5 mil reais para ver vídeos ou nenhum jogo existente ou futuro pelos próximos 5 anos), mas o preço da paz é a eterna vigilância. Pra muitas outras coisas não é possível fazer esse tipo de cálculo frio de retorno financeiro, por isso, é importante colocar na cabeça que a pandemia está ativando um desespero de consumo em muita gente, e isso não vai resolver problema nenhum.

Eu espero que você esteja no grupo que tem que se preocupar com isso, porque significa que você não está no grupo que tem que sair de casa de qualquer jeito para sobreviver. E se estiver, pense com muita calma antes de clicar em qualquer botão comprar. As coisas podem piorar nos próximos meses (talvez anos) e não vai ser um produto genérico que vai te ajudar. Essa loucura de peças de computador em falta não significa que a economia vai bem, significa que muita gente vai mal e está gastando o que não deveria com coisas que não precisa.

Não era para eu ter tanta concorrência assim para montar um computador profissional, isso é um sinal. Melhor perceber enquanto as finanças ainda não estão desesperadoras. Pensar nisso serviu pra mim, espero que sirva pra você. Controle o consumo, é uma armadilha desses dias que pode durar por um bom tempo ainda.

Para me indicar uma prima que traz tudo do Paraguai, para dizer que precisa de tudo o que compra, ou mesmo para dizer que eu estou tentando sabotar a economia nacional: somir@desfavor.com

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consumo, coronavírus

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