Buraco cinza.

18 de Abril, 2103

Lao boceja longamente sentado na cama. Estica os braços e move o pescoço de um lado para o outro, juntando forças para se levantar. Irina, deitada no compartimento à sua frente, o observa com o mesmo olhar desanimado dos últimos dias. Lao sorri, Irina não corresponde.

“Quem sabe hoje nós conseguimos?” – Lao diz ao se erguer.

“Morrer? Tomara.” – Irina diz antes de virar as costas para Lao.

Lao já era um homem franzino no começo da missão, mas depois de um mês de alimentação deficitária e gravidade reduzida, tornara-se cadavérico. As maçãs do rosto saltadas sobre uma pele cada vez mais ressecada emolduravam um sorriso que nem sabia mais se era fruto de esperança ou ilusão. Longe dos olhos de Irina, o sorriso se desfaz.

Ele percorre o corredor principal da Frontier-18, a mais formidável nave criada nos estaleiros lunares, fruto do trabalho conjunto de engenheiros e cientistas de todos os cantos do Sistema Solar. Um motor de fusão como só os terráqueos teriam a audácia de produzir nessa potência, sistema de suporte à vida aperfeiçoado por séculos de experiência em Marte e no cinturão de asteroides, e um computador de navegação desenvolvido pelos mais corajosos desbravadores do espaço transnetuniano.

Tudo desenvolvido para visitar e estudar S1-H4681-J, ou, como se popularizou chamar, O Pequeno Monstro. Um buraco-negro nos arredores do Sistema Solar, proporções diminutas perceptíveis apenas pelos mais avançados sistemas de detecção das últimas décadas. Uma equipe de oito deixou a Lua a bordo da Frontier-18.

Lao senta-se à mesa do refeitório diante de uma tigela com poucas gramas de um preparado proteico para emergências. Logo Irina adentra o ambiente, ocupando a segunda das oito cadeiras. Lao estende a mão, oferecendo o resto do saco com a substância para sua colega. Irina suspira antes de aceitar.

“Quantos mais?” – Ela pergunta.

“Para hoje e amanhã.” – Lao joga um copo d’água na tigela e começa a misturar.

“Eu não aguento mais. Eu vou me jogar hoje, já decidi. Foi culpa minha.” – Irina, esquálida, nem sombra da mulher voluptuosa que adentrou a nave quatro meses atrás, coloca as mãos no rosto, destacando as pesadas olheiras de quem não parece dormir bem há tempos.

“Ontem quase funcionou. Não tem isso de culpa, eu preciso de você. Ainda tem energia no reator para tentar mais algumas vezes. Se der errado, nós pulamos de mãos dadas. O que você diz?” – Lao estende a mão em busca da mão de Irina.

Ela titubeia por alguns momentos, mas lentamente repete o gesto. As mãos dos dois se tocam enquanto ela faz um sinal de positivo com a cabeça.

Após o pobre desjejum, os dois seguem com dificuldade até o compartimento central da nave. Uma antessala providencia os trajes espaciais necessários para continuar a jornada. Já paramentados, os dois esperam a descompressão e atravessam uma comporta rumo ao salão do gerador. Meses atrás, a micro usina de fusão provia energia suficiente para uma viagem de ida e volta até a estrela mais próxima com apenas algumas toneladas de combustível. Um dos grandes avanços tecnológicos do século, foi desenvolvida para tirar vantagem das propriedades únicas da recém-descoberta matéria exótica.

Ou, algo do tipo. Lao era um engenheiro de suporte de vida, Irina estava na nave apenas para guiá-la até seu objetivo. Toda a tripulação capaz de explicar o funcionamento daquele reator havia sido sugada pelo buraco negro há algumas semanas. Lao e Irina escaparam desse destino justamente por não fazerem parte do grupo de investigação.

Ao adentrarem o salão do reator, é impossível não se lembrar das cenas horríveis que testemunharam naquele fatídico dia. Metade da sala estava sob uma escuridão completa, presa dentro do horizonte de eventos do buraco negro, e a metade onde pisavam continuava estável. O ponto onde a transição parecia parar abruptamente era justamente o centro exposto do reator. Em condições normais, a energia liberada pela fusão sem nenhuma proteção deveria ter destruído a nave por completo, mas o buraco negro parecia sugar o excesso, com apenas um leve brilho escapando para manter o local numa temperatura até que agradável.

Apenas um cabo ligava o reator ao resto da nave, e por ele vinha toda a energia que utilizavam desde o acidente. Lao começa a se aproximar do equipamento, mas Irina o segura. Ela aponta para uma chave de segurança. Lao se sente terrível: se tivesse começado o procedimento sem isolar a carga primeiro, teria explodido tudo ao seu redor. Há alguns dias que sua cabeça não funciona tão bem.

Irina aperta um botão e libera a trava do mecanismo. Lao agradece e começa a trabalhar no terminal de controle do reator. O plano era redirecionar a energia para uma bateria de emergência montada de forma quase que artesanal pelos dois com restos e peças de reposição. Com um estoque de energia desconectado do reator, poderiam explodir a conexão e usar o impulso para sair da área de influência do Pequeno Monstro.

O buraco-negro não tinha mais do que alguns quilômetros de diâmetro, exercendo pouca atração gravitacional além do seu horizonte de eventos. Talvez por isso o capitão da missão e a chefe do corpo científico ficaram tão confiantes numa aproximação. Tudo corria bem há algumas centenas de metros de distância do objeto celeste, até que um leve empurrão na nave a mandou diretamente na direção do Pequeno Monstro.

Lao e Irina não sabiam explicar o que havia causado o movimento não programado, mas nunca mais esqueceriam os gritos de desespero da equipe na parte frontal da nave, subitamente silenciados com o contato. A nave seguiu afundando no buraco negro até ser parada pelo reator. Seis pessoas desapareceram naquele dia.

Apenas os dois restaram. O sistema de comunicação e localização da nave não pareciam mais funcionar, mas o suporte à vida resistiu com uma ação rápida de Lao ao isolá-los do salão do reator. Quase todo o estoque de alimentos foi perdido. Há algumas semanas a dupla tentava colocar o plano de capturar um pouco da energia numa bateria para escapar dali, mas vez após vez as coisas deram errado, num misto de pouco conhecimento técnico na área e muito pela fraqueza causada pela situação cada vez mais precária.

Dessa vez, Lao decide redirecionar a carga extra de volta para o reator, presumindo que o buraco-negro vá dar conta dela. Algo que não tentaria alguns dias atrás, mas prevendo a morte iminente por inanição, ou talvez pior, a sobrevivência através de medidas desesperadas, decide que qualquer risco vale a pena. Ele conecta os cabos da bateria no reator.

Mais uma ideia que não dá certo. A bateria explode. A energia redirecionada para o reator não é absorvida pelo buraco negro, é refletida. O traje resiste ao impacto, que o joga contra as paredes do salão, há alguns metros de distância. Irina vai junto. Os dois fazem um último esforço para sair dali, fecham a comporta e iniciam a compressão novamente.

Assim que é seguro tirar o capacete, Irina diz, ofegante:

“Acabou. Não tem como construir outra bateria com o que sobrou…”

Lao apenas concorda, resignado. Ele coloca o capacete de volta e estende a mão para Irina. Ela, com lágrimas nos olhos, segura sua mão. Eles se colocam diante da comporta, Irina ativa o sistema manual de abertura. Eles se entreolham mais uma vez, Lao acena de forma positiva com a cabeça. Irina desbloqueia a porta sem refazer a descompressão. Todo o ar da nave é sugado para o salão do reator, e com ele, a dupla.

O movimento não é brusco, os dois começam a flutuar lentamente rumo ao buraco negro. A nave toda parece se mexer e começar a ser sugada. O reator está com uma luz muito mais fraca. Não soltam as mãos até finalmente tocaram no horizonte de eventos. Lao é puxado primeiro, Irina logo depois. Não sentem dor em momento algum.

15 de Março, 2103

“Eu prefiro ficar mais longe do que isso.” – Irina aponta para uma tela com a trajetória da Frontier-18.

“Fazia parte da missão se aproximar até o limite seguro. Estamos no limite seguro.” – Lorent, o capitão da missão, desconsidera os avisos de Irina como já tinha feito inúmeras outras vezes desde o começo da missão.

“Mantenha a gente estável nessa órbita, essa é sua missão, entendido?” – Sabrina, cientista-chefe, mal se dá ao trabalho de olhar na direção da piloto, focada no que estava sendo projetado a sua frente.

“O buraco negro está imitando os nossos sinais, é isso?” – Lorent pergunta para Sabrina.

“É mais complexo do que isso.”

Sabrina sai da sala de comando, e é seguida por Lorent.

“O sinal está com uma data diferente… dia 18 de Abril…” – ela diz.

“Estamos captando sinais da nossa nave no futuro?” – ele pergunta.

“Acho improvável.” – ela continua andando em direção à parte frontal da nave.

Na sala de comando, Irina confirma mais algumas vezes que a rota está correta. Finalmente se convence que tudo está correto e reclina na cadeira para ativar seu projetor ocular enquanto espera pelo próximo comando.

Lao entra na sala.

“Não me querem por lá, meu pai me disse que engenheiro de suporte é um zelador glorificado e eu não quis ouvir…”

Irina se volta para Lao e ri. Ela faz um sinal com a mão para ele se aproximar. Os dois dividem um sinal de um filme antigo enquanto conversam despreocupados, como faziam desde o começo da missão.

São interrompidos por um movimento brusco da nave. Irina se volta imediatamente para o painel: a rota havia sido modificada. A nave acelera em direção ao buraco negro, e ambos podem ouvir gritos de socorro pelo comunicador.

Enquanto Lao e Irina correm para a parte frontal da nave, não percebem a cena que surge nos monitores da sala de comando: duas pessoas flutuando de mãos dadas para longe do buraco negro.

Para dizer que nem eu devo ter entendido, para reclamar de novo dos nomes, ou mesmo para dizer que estou nerd demais essa semana: somir@desfavor.com

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Comments (6)

  • Buraco negro na verdade é… Um buraco de minhoca?
    De qualquer forma, houve uma interferência espaço-temporal. Essa manipulação acidental poderia ter criado outros paradoxos no universo. Assim… Imagine que por causa desses eventos, ocorram mudanças constatando a existência não somente de um multiverso, mas também ocasionando ou modificando vida, pois se você bagunça com as probabilidades de uma única dimensão, imagine então se você bagunçar com as probabilidades de incontáveis outras variantes, aumentando as chances então de ocorrer algum evento como vida, ou pelo menos uma Terra e humanidade muito diferente do que conhecemos. Sim, ainda estou com o post do paradoxo de Fermi em mente.
    E não, não sou uma boa escritora de sci-fi, mas prometo que tô tentando.

    • É um ângulo bem interessante. Como eu disse na outra resposta, pode ficar aberto à interpretação, mas dessa vez eu não quis abrir essa “lata de minhocas”. Mas a graça de ser uma história baseada no primeiro contato do ser humano com um buraco negro é que ninguém entende de verdade o que está acontecendo. Tanto que eu fiz as duas personagens não entenderem muito disso para não tentar explicar demais.

      Há uma interpretação que considera que espaço-tempo se invertem depois da singularidade. Ao invés de navegar pelo espaço se medindo pelo tempo, você navega pelo tempo se medindo pelo espaço. O movimento dentro do buraco negro te moveria no eixo do tempo, enquanto o espaço continua fixo.

  • Não sei se entendi bem, mas, me pareceu que esse “Buraco Cinza” – ou “Pequeno Monstro” – seria uma espécie de “armadilha” criada sabe-se lá por que estranho fenômeno de distorção no espaço-tempo que faz com que quem nela caia reviva um mesmo momento indefinidamente. É isso?

    • Quanto mais próximo de um buraco negro, maior a distorção temporal. Fica livre a interpretação, mas eu escrevi como se não fosse uma viagem no tempo, e sim eventos simultâneos. Um metro de distância pode significar muita variação temporal…

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