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Ex-americanos.

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| Somir | | 18 comentários em Ex-americanos.

Nos últimos dias, os atentados de 11 de Setembro de 2001 voltaram à tona com a combinação dos 20 anos do evento e a desastrada saída americana do Afeganistão. Ao mesmo tempo, me veio a realização de que depois de duas décadas, uma boa parte da população mundial não tem sequer ideia do que aconteceu naquele dia. A gente foi dormir dia 10 num mundo e acordou dia 11 em outro…

Eu acordei mais cedo do que costumava acordar naquele dia. Logo fui avisado pela minha mãe que tinha acontecido um acidente em Nova Iorque. Ela não estava dando muita bola, mas a TV estava ligada com a cena do prédio esfumaçado. Na TV, os jornalistas especulavam sobre que avião poderia ter se chocado assim contra um prédio. Ainda preguiçoso, olhava a tela, decidindo se ia para o sofá continuar assistindo a cobertura daquele acidente ou se ia para a cozinha procurar algo pra comer.

Já desviando o olhar, decidido pela segunda opção, vi uma explosão na TV. Demorei um tempo para reorganizar os pensamentos, e achei que era o replay da colisão do avião. Se eu não em engano, o pessoal da TV ficou um tempo meio confuso também. Mas não fazia sentido terem a cena do avião para mostrar. Em questão de segundos, eu e o pessoal fazendo a cobertura passamos de replay para explosão no local do impacto… para a realização do que realmente tinha acontecido. Outro avião, na outra torre!

Até aquele momento, não havia sequer a presunção de um ataque. A gente simplesmente não pensava que podia ser atentado nos EUA. Se fosse no Oriente Médio, talvez, mas no “mundo civilizado” era impensável mesmo. Lembro dos jornalistas debatendo se podia ser uma terrível coincidência ou se era proposital. Hoje em dia já estaria todo mundo certeiro de que era um atentado no primeiro impacto, em 11 de Setembro de 2001, existia a dúvida.

Lembro de conversar com a minha mãe: “isso não é coincidência, isso é ataque”. O que é engraçado de se pensar em 2021, como aquilo precisou ser uma realização. Rapidamente o mundo se convenceu daquilo também. Especialmente quando surgiu a notícia do ataque ao Pentágono. Aliás, eu até argumento que o mundo mudou mesmo não no segundo avião nas Torres Gêmeas, mas no avião que se chocou contra a sede do poder militar americano.

Antes dessa notícia, estávamos vendo um atentado bizarro, depois dela, o aparentemente invencível exército americano estava sendo atacado, num dos lugares onde quase todos nós tínhamos certeza que era impossível de ser atacado. Não havia qualquer dúvida sobre a hegemonia americana em 2001. Não era discutido, não fazia qualquer sentido discutir. Eram os donos do mundo, inquestionáveis.

Eu vou dizer uma coisa que talvez incomode pessoas da minha geração, mas que no fundo sabem que é verdade: até o 11 de Setembro, era normal ser americano por tabela. Sim, muita gente detestava os EUA, como ainda detestam, mas havia uma sutileza ali: naquele tempo, o país americano era tão maior que todos os outros juntos que você se sentia parte da família. Juro. Eu era novo o suficiente para ser influenciado por isso, mas velho o suficiente para prestar atenção.

Você se sentia americano também. Eles passaram décadas e décadas criando uma indústria cultural para passar essa impressão. A América era o centro do universo, mesmo que você se sentisse na periferia, ainda era a periferia americana. Muito embora eu concorde que a China colocou essa hegemonia em dúvida pelos méritos da sua imensa economia, tem esse fator extra que pouca gente menciona: o 11 de Setembro quebrou alguma coisa na relação dos EUA com o resto do mundo.

De repente, éramos expectadores de algo que acontecia em outro país. Desgraça só acontecia longe dali. Não sei se isso vai fazer sentido para vocês, mas é como se numa pancada só, os EUA deixassem de ser o mundo e voltassem a ser apenas um país. Foi o momento em que muitos de nós consideramos a mortalidade desse império. Quem viveu as Guerras Mundiais tinha outra perspectiva, mas nós que crescemos vendo a União Soviética colapsar só conhecíamos a “glória americana”.

Hoje vemos um mundo onde se discute abertamente se a China vai ultrapassar os EUA como grande potência do mundo, mas isso era impensável há duas décadas. Tinha o modelo que funcionava, o dos EUA, e o modelo dos comunistas que tinha dado com os burros n’água. A questão estava decidida. Todos vivíamos na América, mas alguns de nós estávamos em bairros ruins…

Quando o império demonstrou que sangrava como qualquer um de nós, tudo mudou. Como já disse outras vezes, conspirações existem desde sempre, mas foi a do 11 de Setembro que lançou a era moderna delas. O modus operandi é o mesmo desde então. Desde os antivacina até mesmo os terraplanistas, a lógica de funcionamento é muito parecida: discussão infinita, sempre girando em falso e dependendo da crença do conspiracionista para se manter.

Eu achava divertido discutir com quem falava sobre o 11 de Setembro ser um atentado criado pelo próprio governo dos EUA nos anos seguintes, mas hoje em dia, considerando no que isso se transformou, a piada perdeu muito da graça. A era da pós-verdade só é possível depois que o mundo todo pode ver algo acontecendo em tempo real, com imagem nítida e colorida. É absolutamente natural negar o que você não viu em primeira mão, mas não é quando acontece como aconteceu nos EUA no começo deste milênio.

Os atentados são o marco inicial do milênio não porque as pouco menos de 3 mil pessoas que morreram lá são mais importantes que as que morreram em tantos outros atentados, mas porque elas representam a mudança de visão de mundo da maioria das pessoas. Visão que aqueles que não eram nascidos na época ou eram muito pequenos para ter memórias claras acabaram incorporando em sua criação.

Eu vi o mundo antes da internet e vi o mundo antes do 11 de Setembro. As coisas mudaram bastante mesmo, e num pequeno espaço de tempo. Nós que vivemos essa transição podemos até ter nos acostumado, mas sentimos o baque. Se você tem memórias razoáveis do mundo antes do 11 de Setembro de 2001, provavelmente tem coisas que ainda não descem. Havia uma estabilidade global, mesmo que agora saibamos que falsa. Eu não duvido que muito da fúria dos mais velhos com o mundo atual não seja exatamente sobre gays e feministas, e sim sobre o fim de uma era onde havia um líder claro ditando o rumo da humanidade.

As mesmas gerações que saem às ruas para defender o conservadorismo estavam aceitando gays numa velocidade impressionante entre o final do século passado e os primeiros anos desse. Havia um líder claro dizendo que isso era o correto. Os EUA tinham o mundo tão sob controle que podiam fazer força para empurrar ideias mais liberais. Mas, no meio do caminho tinham alguns aviões.

Como eu já disse, não é sobre americanos serem especiais ao ponto de mudar o mundo quando morrem (em números muito menores do que suas guerras causam), mas é sobre estilhaçar uma realidade que parecia ser eterna nos milhões de cacos que estamos catando até hoje. Em 2001, o mundo perdeu um líder “infalível”. E muita gente se ressente disso até agora, mesmo que não entenda bem o que está fazendo. Não é à toa que vimos um ressurgimento de religiões que estavam cada vez mais fracas. Os atentados deixaram um vácuo de poder.

E todo vácuo de poder é preenchido. O ser humano busca aquele líder inquestionável desde 2001, quando viu sangue nas ruas americanas. Alguns de nós vivemos isso, outros apenas foram criados nas consequências daqueles atos terroristas. Acho que só agora eu tenho a distância suficiente para entender o que aconteceu naquele dia.

Foi muito mais que aviões se chocando contra locais famosos nos EUA, foi realmente o fim de uma era. Não acho que tenha sido pior ou melhor para o mundo, acho apenas que as coisas mudam, que nunca podemos acreditar que algo vai ser eterno… ou que o impensável é impossível. Ninguém sabia que podia acabar com um império hegemônico sequestrando alguns aviões até alguém fazer.

Aqui poderia ser um bom momento pra dizer que você pode mudar o mundo, mas considerando de onde esse argumento está vindo, eu prefiro não dar ideias para ninguém… mas que é verdade, é. Se duvida, olhe para o mundo ao seu redor e veja quanta gente ainda está desesperada procurando um líder inquestionável.

O verdadeiro terror é o vazio.

Para contar o que estava fazendo no dia (voando), para dizer que o lançamento do Google é o verdadeiro marco do milênio, ou mesmo para dizer que odiava os EUA quando não era moda: somir@desfavor.com


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