Os trabalhadores da saúde de 11 países latino-americanos apresentam “altos índices” de sintomas depressivos e pensamentos suicidas, segundo um estudo publicado nesta quinta-feira (13) pela agência regional da OMS. LINK


A pandemia tem consequências que vão além do número de hospitalizados e mortos, estamos queimando a nossa linha de defesa. Desfavor da Semana.

SALLY

Enquanto estava todo mundo em clima de “tá indo embora o vírus”, “a Ômicron vai trazer imunidade de rebanho” e “a pandemia acaba este ano”, a nossa prioridade era deixar bem claro que não, pandemia não acabou nem vai acabar tão cedo e o vírus ainda existe, está mutando e é capaz de causar um belo estrago. Ficamos repetindo isso nos últimos meses, sob diferentes enfoques.

Agora, que a realidade se encarregou de esfregar na cara de todo mundo o que está acontecendo, não precisamos mais falar sobre isso, inclusive, está todo mundo falando sobre isso, seria chover no molhado. Por isso hoje resolvemos trazer um novo assunto, que acreditamos não estar sendo corretamente explorado: as vítimas indiretas do coronavírus. Sim, você está vacinado, em tese está protegido contra covid, mas não está protegido dos efeitos colaterais que uma péssima gestão de pandemia pode causar. E eles também podem ser letais.

O que a irresponsabilidade das pessoas está fazendo com os profissionais de saúde é desumano. Em nenhuma cultura, em nenhuma espécie animal, a coletividade esculhamba com aqueles que tem função de cuidadores. É burrice fazer isso. Qualquer membro da coletividade, manada, bando ou matilha pode depender de um cuidador para sobreviver – e se eles estiverem doentes, exaustos ou desmotivados, colocam em risco a sobrevivência daquela coletividade.

Imagina como deve se sentir um médico que trabalha incessantemente sob todo o estresse que você possa imaginar desde 2020, colocando em risco sua vida e a de sua família, quando vê essa infinidade de filho da puta se comportando como se não houvesse pandemia, reclamando de cancelamento de carnaval, aglomerando sempre que tem oportunidade.

Só imagina, por um segundo, bando de gente sabotando, estragando, cagando o trabalho que você faz, diariamente, por dois anos, te colocando em risco, te causando burnout, te obrigando a trabalhar mais horas. Só me diz como você se sentiria. As pessoas têm a informação de que o que elas fazem gera mais trabalho, mais estresse e mais risco para você, e continuam fazendo. Se coloca nessa situação e me diz o que você faria.

Os profissionais de saúde estão completamente exauridos. Estão de saco cheio. Estão se sentindo desrespeitados. Estão no seu limite faz muito tempo.
E isso, meus queridos, afeta a todos nós, até mesmo a quem não percebe que isso está acontecendo. Estamos todos nas mãos de médicos exaustos, putos, com privação de sono, revoltados, deprimidos, desmotivados. Pessoas propensas a erros, a impaciência, a um trabalho muito inferior ao que poderiam prover em condições ideais.

Talvez isso não te afete hoje, mas todos nós estamos sujeitos a adoecer e precisar de um médico, de uma internação, de uma intervenção cirúrgica ou de um tratamento em hospital. Neste exato momento, existem milhões de pessoas que estão nessa situação e estão recebendo um atendimento de baixa qualidade por causa de idiotas que não param de bundear na rua.

Não julgo os profissionais de saúde, qualquer ser humano exposto a esse estresse e sobrecarga apresentaria um rendimento falho. Mas julgo os imbecis que sobrecarregaram os profissionais de saúde. Imagina quem está passando por uma quimioterapia agora. Quem está se recuperando de queimaduras em um hospital. Quem está com politraumatismo depois de um acidente. Essas pessoas estão pagando pela irresponsabilidade alheia.

Poderia ser eu. Poderia ser você. Poderia ser a sua mãe. Poderia ser o seu filho. Vocês acham inteligente sobrecarregar até detonar aqueles que tem o poder de cuidar e salvar vidas? Vocês acham que temos futuro, como espécie, fazendo esse tipo de escolha? Vocês acham que, cedo ou tarde, nesse ritmo, o setor de saúde não vai colapsar de vez? Quem sufoca, transtorna e mata os cuidadores acaba extinto.

Somir quase morreu por um problema de saúde bobo, ao receber atenção de um médico completamente sobrecarregado, em privação de sono e desmotivado. Uma das minhas melhores amigas, leitora aqui do Desfavor, também quase morreu na semana passada, pelo mesmo motivo: um diagnóstico/tratamento errado que, em condições normais, seria corretamente identificado até por um residente.

Estamos detonando o direito à saúde da coletividade. Estamos regredindo séculos. Vejo gente doente que tenta se autodiagnosticar e tratar pois sabe que se tiver que ir para um hospital, mesmo particular, vai esperar por horas, correr o risco de pegar covid e ainda ser atendida em poucos minutos sem sequer um exame clínico para dar um diagnóstico.

Não é sobre o direito do Fulano ou da Cicrana a sair, não é sobre a “minha liberdade”. Quando a liberdade de alguém gera danos à coletividade, a lei impões limites, não é nada novo, sempre foi assim. Aos olhos da lei, liberdade não é um direito absoluto, é um direito relativo. Não pode ser que para Fulano ir a barzinho ou Cicrana ir à praia tenhamos todos que perder o direito a um atendimento médico decente.

Qual é o grau de involução de uma pessoa que só consegue pensar na sua vida social, no seu direito de ir e vir, no seu umbigo e não pensa no tanto de gente que precisa e depende de um bom atendimento médico para sobreviver? Qual é o grau de perda de humanidade de quem se acha no direito de sobrecarregar até a completa exaustão profissionais de saúde para não abrir mão de evento social?

Vai além da covid em si, do percentual de mortes, das sequelas. Estamos colapsando o sistema de saúde de forma definitiva. Quantos anos disso vocês acham que os profissionais de saúde conseguem aguentar? O atendimento ruim, precário, ultrarrápido e descuidado vai virar a regra. A qualidade vai se perder. Vamos perder séculos de conquistas e evolução médica. Tem certeza que alguém tem o direito de promover esse retrocesso por não querer sossegar o cu em casa enquanto tem pico de pandemia?

Não estou falando em fazer lockdown, estou falando em sair sim, mas apenas quando for necessário. Baile funk não é necessário. Rave não é necessária. Ir à praia não é necessário. Barzinho não é necessário. Nenhum evento social é necessário, é mais importante um sistema de saúde funcional do que o seu social. A prioridade é o sistema de saúde, não evento social.

“Ain mas eu estou vacinado, não vou morrer”. Pode não morrer, mas se pegar covid, contamina outras pessoas e elas podem precisar de atendimento médico. Ou então, mesmo não morrendo, você pode ter sintomas que precisem de atendimento médico. Ou ainda, mesmo tendo covid assintomática, você pode ter sequelas para o resto da vida que demandem atendimento médico. Olha os hospitais lotados e me diz se, mesmo com vacina, tem condição de levar a mesma vida de antes.

Mesmo sistemas grandes, bem estabelecidos e bem estruturados colapsam, se você colocar muita pressão nelas por muito tempo. A história prova que, geralmente, esse colapso vem do excesso de confiança dos envolvidos. Desde o Império Romano a Donkey Kong, todo mundo achou que não ia dar merda, que dava para forçar mais um pouquinho, que tudo ia se ajeitar. Até que ruiu. Vocês vão explodir o sistema de saúde brasileiro. Parem enquanto é tempo.

Trocar qualidade de atendimento na saúde por evento social é um dos maiores egoísmos, futilidades e imbecilidades que eu já vi. E não basta não fazer, é preciso não tolerar, pois o brasileiro norteia sua conduta pelo grau de reprovabilidade social que ela tem. Se isso começar a ser seriamente mal-visto, muita gente vai parar de fazer.

Aos profissionais de saúde, minha solidariedade e admiração. Eu, no lugar de vocês, já tinha parado de trabalhar na área e procurado outra coisa como ganha-pão.

Para dizer que não dá para reprovar pois eles são maioria, para dizer que não dá para reprovar pois o Governo aplaude ou para dizer que não dá para reprovar pois o Judiciário não pune: sally@desfavor.com

SOMIR

Por que pandemia toda semana? Porque a maioria dos outros temas parecem bobagem em comparação. E digo mais, com tanta gente falando ou fazendo coisas estúpidas em relação ao tema, a gente que tenta se proteger e não entrou em negação precisa de uma sessão de terapia semanal.

É humano começar a duvidar sobre o que está percebendo ao seu redor se muita gente relata algo diferente. Esses textos podem até ser 90% coisas que você já sabe e 10% novidades, ou até mesmo só repetição, mas pelo menos pra mim, colocar isso no papel de tempos em tempos me ajuda a estabilizar a realidade, por assim dizer.

Sim, está todo mundo cansado disso. Sim, muitos de nós já pensamos “e se eu parar de me importar?”. Tem muita gente que colocou isso em prática. Eu só consigo me manter atento se o assunto estiver fresco na cabeça. Nos últimos meses, com a pandemia dando um respiro, eu mesmo comecei a arriscar um pouco mais. Mas assim que a Ômicron chamou a atenção para a situação novamente, voltei aos cuidados necessários.

E percebi que dessa vez estava mais chato que o normal. É como se o senso de preocupação instintivo estivesse “frito” a essa altura do campeonato, eu só tinha a ideia racional de pandemia para me sustentar fazendo as coisas certas. Sem um suporte emocional, tudo fica mais maçante, o cérebro parece que faz tudo empurrado.

É chato, mas tem que fazer. Não estou a fim de lidar com o arrependimento de me contaminar e algo dar errado, ou muito pior: contaminar uma pessoa querida e ela precisar de ajuda médica. Vamos lá para mais algum tempo de grau de atenção máximo… saco!

E aí, surgem notícias como a que ilustra a coluna de hoje: se está chato pra mim, imagina para quem está no ramo da medicina? Chato não é mais a palavra, é esgotamento e depressão mesmo. Ninguém foi feito para trabalhar nesse ritmo por mais de dois anos. Muitos médicos, enfermeiros e profissionais relacionados estão aguentando essa pancadaria há muito mais tempo que o esperado de um ser humano.

E isso, como podemos ver, tem consequências. É gente que está fazendo turnos enormes, sob alta pressão e pouco tempo para tomar decisões complexas. Médicos são treinados para não se abalar demais com os problemas dos pacientes, mas são humanos. Existe um limite de quanto sofrimento você pode ver antes de precisar de um respiro.

Sim, tem médico maluco que receita cloroquina e coloca terror em gente pouco educada sobre vacinas, temos um ministro da Saúde como exemplo; mas não é razoável imaginar que eles são a maioria, até porque se fossem, esse país teria colapsado de vez. Lá na linha de frente, eu imagino que a maioria absoluta não mistura política com conhecimento técnico, e siga as melhores práticas quando pode.

Eu poderia estar puto da vida com o médico que me diagnosticou errado, mas não estou. Eu não sei o grau de pressão pelo qual estava passando naquele momento, nem se tinha condições de estar ali. Talvez estivesse forçado a ir além da sua capacidade física e mental. Eu só não queria que ele estivesse lá na hora que eu precisei de atenção básica. Importante: era hospital particular, em tese ele nem estava sob o máximo de pressão possível, como é muito mais comum no SUS. Não acho que é hora de colocar mais pressão neles. Não depois de tanto tempo encarando uma pandemia.

E antes fosse só esgotamento por excesso de trabalho, eu imagino que tenha um elemento mais complicado ainda de lidar: voltando ao primeiro argumento do texto, sobre precisarmos de alguns reforços para estabelecer o que é real na cabeça, deve ser muito pior para um médico ou profissional de saúde em geral lidar com gente negacionista ou irresponsável mesmo.

Você está lá gastando o final das suas reservas de energia para cuidar de gente doente e um bando de safado mentindo descaradamente sobre a doença e os tratamentos. Gente que está tentando ganhar pontos políticos, vender tratamentos mentirosos ou mesmo querendo fazer pose para seus conhecidos… falando os maiores impropérios possíveis sobre a Covid, as vacinas…

Malucos raivosos ameaçando de morte quem aprova vacina, gente egoísta que não consegue deixar de tomar uma cerveja para proteger os outros, o fuckin’ presidente da república fazendo propaganda de remédio de malária para coronavírus… deve ser ainda mais cansativo quando você é um dos que paga o pato pela desinformação. Imagina só trabalhar até o ponto de considerar suicídio e ouvir o ministro da Saúde mentir descaradamente sobre vacinas para crianças minutos depois?

É uma gente que está apanhando de tudo quanto é lado, e vendo uma população progressivamente mais desinformada sobre o que fazem. Não só desinformada, como orgulhosa de defender pontos de vista absolutamente estúpidos, coisas que um mínimo de interesse resolveria em minutos. Eu não invejo os médicos e profissionais de saúde brasileiros.

A pesquisa mencionada na notícia fala de vários países latinos. Se tem médico chileno entrando em depressão num país que fez as coisas muito melhor do que a média da região, imagina o tamanho do problema no Brasil? Estamos gastando a reserva da reserva do combustível da nossa linha de defesa contra a doença, estamos regredindo lentamente no setor que mais aumentou a qualidade de vida e longevidade da humanidade nos últimos séculos.

Mas vai lá, vai tomar sua cerveja e pular seu carnaval. O que pode dar errado?

Para dizer que já cansou de não poder cansar da pandemia, para dizer que médico é rico e não tem dó (a maioria não é), ou mesmo para dizer que está com saudade das merdas que o Bolsonaro diz serem o pior da semana: somir@desfavor.com

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Comments (14)

  • Inacreditável como o brasileiro não liga pra nada e também parece nem se importar com as consequências do seu descaso.

  • Eu toquei o foda-se no começo do ano passado. Ainda tinha preocupação de esclarecer e ajudar, mas quando vi a politização, na primeira ameaça que recebi, deletei minhas redes sociais e parei de dar informação de graça. Não sou pago pra isso.

    • Sei bem como você se sente, Fernando. Tem horas em que a gente desanima mesmo e se casan de dar murro em ponto de faca, Não dá para ajudar quem não quer ser ajudado.

      • Branca de Neve Pornô

        Na direita é o mito da cloroquina, da ivermectina e de outros medicamentos que passam longe de ser placebo indicados para uma cepa de vírus contra os quais eles no geral são ineficazes.
        Na esquerda, é a picaretagem de militantes profissionais que querem a todo custo forçar uma radicalização para se venderem como “voz dos excluídos” nas malfadadas Olimpíadas da Opressão, querendo usar cor, sexo ou problema de ordem mental para autopromoção política.
        E no centro? Que centro? É o povo sem voz se lascando na mão de carreiristas políticos e das hordas radicalizadoras que te tratam como inimigo caso não se sujeite aos ditames do que a horda defende.

  • Sinto pena dos médicos e das crianças. As medidas para lidar com a pandemia foram equivocadas. Deviam ter priorizado a volta das aulas presenciais o mais cedo possível, mas priorizaram a liberação de festas, estádios, show de artista rebolando o cu, e deixaram as crianças em casa, engordando e adoecendo mentalmente enquanto adultos se divertiam e enchiam a cara.

  • Pergunta para o FAQ: É errado evitar hospitais se não apresentar piora nos sintomas gripais? Faz sentido ter medo de se contaminar no hospital mesmo “com todos os protocolos de segurança”?

  • Qual seria a doença boba que quase matou por ser diagnosticada errado? Doença boba na mesma frase que quase matou, bugou o meu entendimento.

    • No meu caso, amigdalite bacteriana. Com o diagnóstico errado de alergia, eu não tomei os antibióticos que precisaria. Eu ficaria mascarando os sintomas enquanto a infecção comeria solta no organismo. Sem contar o risco de fechar as vias respiratórias.

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