
Pedido para sofrer.
| Desfavor | Ele disse, Ela disse | 4 comentários em Pedido para sofrer.
Existem vários trabalhos que seriam muito melhores se não te obrigassem a conviver e acomodar vontades de terceiros. Mas é parte do jogo. Seja lidando com clientes, colegas ou chefes, Sally e Somir discordam sobre a parte mais difícil de lidar com a vontade alheia. Os impopulares entregam suas respostas até a manhã do dia seguinte.
Tema de hoje: O que é pior, gente que não sabe o que quer ou gente que quer o impossível?
SOMIR
Já me considero experiente o suficiente no ramo de serviços para dizer que gente que quer o impossível é muito pior que quem não sabe o que quer. Eu sei que parece pior lidar com alguém mais perdido que você, mas se você souber se adaptar à situação, vai perceber que não saber o que quer é meio que o estado padrão do ser humano. Você está sempre lidando com gente assim e está acostumado(a), talvez só não perceba.
Pode ser meio difícil entender os dois casos apresentados na premissa do texto, especialmente se você está num dos raros trabalhos onde sua função é muito clara e não tem gente no seu pé; por isso vou usar um exemplo que tem mais a ver com a minha profissão: uma pessoa chega querendo um logo para sua empresa. No primeiro caso, o da impossibilidade, a pessoa quer um logo com cores que ninguém mais tem. No segundo caso, o da indecisão, a pessoa só sabe que precisa de um logo, mas não pensou em nenhum fator ainda.
Vamos para o primeiro caso: é impossível que depois de tantos milênios de humanidade, ainda exista alguma combinação de cores que nunca tenha sido usada. Existem milhões de logos por aí, atuais e antigos. E considerando que o ser humano não tem muita capacidade de discernir tons de cores, não é como se tivéssemos todas as combinações possíveis pra usar. Você tem que falar não para esse cliente. Podemos fazer um logo com cores mais raras no seu mercado, mas não podemos garantir que ninguém mais as tenha usado.
A pessoa entende, certo? Sim, mas não. Existe uma sutileza aqui: quem quer o impossível cai em duas categorias, o completo maluco que fica teimando e o ser humano médio que começa a negociar. O completo maluco é uma raridade, nunca vi alguém que simplesmente teimasse com algo impossível depois de ser claramente informado sobre a impossibilidade. Mas quase todos começam a tentar achar um meio termo.
E aí que mora a pentelhação verdadeira: o meio termo entre possível e impossível ainda é impossível. A pessoa não só aceita que inventou algo que não podia ser feito, ela começa a procurar soluções por conta própria. Aí, o cliente que queria cores nunca antes usadas entende que isso não existe, mas aí diz que então é para usar um símbolo que nunca foi usado. Olha a besteira: primeiro que a não ser que você tenha inventado algo absolutamente novo na história da humanidade, alguém provavelmente já fez algo parecido antes.
Como eu vou prometer para uma pessoa que ninguém pensou no mesmo símbolo que eu? Só se eu pesquisasse todos os logos da história antes de fazer um. Não é viável. Mas quando começa o meio termo do impossível, a pessoa que está pedindo o trabalho perde a capacidade de entender as limitações da realidade. Você explica pra ela que não dá para prometer que ninguém mais tenha usado símbolos parecidos, ela diz que entende. Você apresenta uma proposta, e se por um acaso ela achar parecido com outra coisa, ela reclama e pede para você tentar outra vez. Pode ser o logo de um bar no meio de um vilarejo isolado, pode ser uma empresa num setor totalmente diferente… se a pessoa vir algo parecido, ela entra em modo insano e começa a reclamar.
O pedido impossível vai se desmembrando em pedidos que a pessoa julga razoáveis no meio termo, sendo que normalmente a pessoa que pede entende nada ou quase nada do trabalho. Quem pede o impossível dificilmente para e pede uma sugestão de quem entende, afinal, se tivesse uma fibra de sanidade profissional no corpo, nunca teria chegado com o pedido. Teria escutado qualquer pessoa avisando que não fazia sentido antes de chegar num profissional. Quem pede o impossível normalmente tem uma personalidade que conduz a isso.
Eventualmente existem gênios incompreendidos nesse bolo, mas vamos ser honestos: a proporção de seres humanos realmente geniais no meio da massa de malucos mimados é minúscula o suficiente para você nunca encontrar um deles na vida. Presuma o mediano. E o mediano de quem faz esses pedidos sem pé nem cabeça é teimosia e falta de capacidade de escutar o outro. Não é o tipo de pessoa com quem você quer trabalhar. Não é o tipo de pessoa com a qual você quer conviver… ponto.
Agora, vamos para o segundo caso: o cliente quer um logo, mas não sabe muito bem o que quer. Tudo bem, quase nenhum sabe mesmo. Não é o trabalho da pessoa saber, é o meu. Nesse caso, temos uma relação profissional clássica: a pessoa é contratada para tomar decisões no campo que se especializou. É chato quando você sugere uma coisa, a pessoa não gosta e não sabe o motivo? É chato sim, mas você ainda está falando com uma pessoa que não é necessariamente sem noção, só está perdida.
Se você for capaz de explicar o processo do seu trabalho e colocar limites ao redor do cliente sobre o que ele pode ou não esperar, mesmo os mais indecisos acabam escolhendo alguma coisa. Nem que seja por cansaço. Eu acho mais normal tomar conta do processo intelectual de um trabalho que domino do que esperar qualquer coisa do outro lado. A parte da outra pessoa é te pedir o trabalho, não saber fazê-lo.
Talvez seja minha condescendência arrogante falando? Talvez. Eu sempre espero pouco da mente alheia. Me ajuda a diminuir o grau de decepção. Por isso, acho tão mais natural lidar com quem não sabe o que quer do que com quem tem expectativas irreais. O impossível vira uma negociação chatíssima sobre o que a pessoa acha que é possível (raramente é), o indeciso é mais questão de você conseguir prever um pouco a mente do outro, ou dar opções guiadas que pareçam mais naturais para ela.
É costume. Na vida real quase ninguém sabe muito bem o que quer ou não quer. Sally acha que ela é a norma, não é. Muito pelo contrário. Todos nós temos uma vida de experiência com quem não sabe o que quer, e tudo fica mais fácil com a experiência.
Para pedir para o Desfavor ir para o YouTube e continuar diário ao invés de mensal, para dizer que sua alegria é não trabalhar com pessoas, ou mesmo para dizer que não sabe quem está certo: somir@desfavor.com
SALLY
O que é pior, gente que não sabe o que quer ou gente que quer o impossível?
Gente que não sabe o que quer é pior, por um motivo muito simples: quando a pessoa pede qualquer coisa concreta, inclusive o impossível, ninguém perde tempo. Você diz que é impossível e a pessoa ou vai embora, ou refaz o pedido.
Tempo é, sem dúvida, o que eu tenho de mais sagrado, caro e precioso. Quem me faz perder meu tempo é quem mais me prejudica. Dentro deste meu parâmetro (que pode não ser o seu), pessoas indecisas são um câncer.
Se um parceiro te pede algo que você não pode executar, você diz “não há qualquer condição de que eu possa fazer isso”. Se um cliente te pede algo que não pode ser feito, você diz “não há qualquer condição de que eu possa fazer isso”. É rápido, é simples, é pegar ou largar. A pessoa avalia se quer abrir mão do pedido e reformulá-lo ou se quer abrir mão de você.
Uma pessoa que não sabe o que quer não. Ela é um dreno de energia e atenção. “Assim tá bom?” – “Não” – “Então como você quer?” – “Não sei”. Aí todos os palhacinhos à sua volta perdem tempo executando várias tentativas até a pessoas que não sabe o que quer achar que está bom. Desculpa, mas eu tô fora desse tipo de dinâmica. Eu me recuso a participar disso.
Francamente, ninguém merece isso. Um adultinho tem que saber o que quer. Se não sabe, vai organizar a mente e volta quando souber. É como aquela pessoa que fica uma hora na fila do cinema e só quando chega sua vez para e começa a pensar em qual filme quer ver. Um ser humano decente chega na bilheteria com filme e hora escolhidos. Se ainda não sabe qual quer ver, primeiro pensa e decide, e só depois vai comprar.
Mas sempre tem os floquinhos de neve especiais que se acham importantes a ponto de fazer as pessoas que estão atras dela na fila esperar 20 minutos, pois ela está indecisa sobre o filme que quer ver. Nada contra indecisão, que fique claro. Minha objeção e quando a indecisão da pessoa toma o tempo alheio e atrapalha a vida de outras pessoas. Vai ser indeciso dentro de casa, no conforto do seu lar, filho da puta!
Além de todo o transtorno que a pessoa que não sabe o que quer causa, ela ainda piora a situação daqueles que estão à sua volta: “o que você acha? O que devo escolher?”. NÃO SEI, ARROMBADO, NÃO ESTOU DENTRO DA SUA CABEÇA PARA SABER O QUE É MELHOR PARA VOCÊ. Não basta a pessoa não saber o que quer, a pessoa ainda quer delegar a responsabilidade da escolha para terceiros, um mecanismo muito babaca para ter a quem culpar se algo der errado.
Eu não tenho filhos por não querer ter que gerenciar e decidir vida alheia, imagina se vou pegar essa responsabilidade para mim, vinda de um fuckin´ adulto, que deveria ser capaz de saber o que quer. Não sabe o que quer? Maravilha. Me chame quando souber, até lá, eu vou usar meu tempo com quem sabe o que quer.
O pedido impossível mostra que a pessoa é burra, fora da realidade ou ignorante naquele assunto. E tá tudo bem, todo mundo tem o direito a desconhecer algo, a errar o cálculo. Cedo ou tarde, por mais que a pessoa não acredite em mim, a vida vai provar que aquilo era impossível. A pessoa está pedindo algo escroto sem ter a consciência do que está fazendo, isso torna tudo menos grave.
Já o imbecilóide que não sabe o que quer tem total consciência de que não sabe o que quer e, mesmo assim, leva o problema até você. Juro, eu teria muita vergonha de fazer isso. Se eu não sei o que eu quero, cabe a mim decidir o que eu quero. Para isso eu tenho que levantar a minha bunda do sofá e correr atrás de respostas: pesquisar, pedir opinião de profissionais, estudar, fazer terapia ou o que for, até conseguir decidir.
A pessoa que se acha no direito de tomar o tempo alheio sem saber o que quer e a obriga a perder seu tempo com repetidos atos ou trabalhos até encontrar algo que ela goste é uma filha da puta sugadora de tempo. Ela se acha tão importante que não vê problema em tomar o tempo alheio dessa forma. A responsabilidade na escolha não é dela, os outros é que devem convencer Vossa Majestade de que algo é bom.
O grande problema é que, geralmente, o não saber vem acompanhado de uma pessoa mimada que acha que alguém tem que resolver isso para ela. Não. Se você não sabe, primeiro VOCÊ tem que resolver o que quer e só depois demandar qualquer coisa que tome o tempo alheio.
“Ain, mas cliente nunca sabe o que quer”. Não é verdade. Mas não é verdade mesmo. Se isso acontece com você, é por estar conduzindo de forma errada sua vida profissional. Se botar limites e explicar para o cliente que você só vai poder trabalhar depois que ele te disser o que quer, a resposta vem. Ou o cliente vai… mas aí, já vai tarde. Você é um profissional, não um limpador de bunda.
Achar que demandar que os outros saibam o que querem vai te deixar sem relacionamento, sem clientes, sem trabalho ou sem qualquer outra coisa diz mais sobre você do que sobre os outros. Assumir a responsabilidade de decisões dos outros geralmente é visto como uma cruz, um karma, um esforço, mas, na real, quem o faz tem um belo ganho secundário: tem controle. Você trabalha em dobro, mas é tudo do seu jeito.
Isso cria um emaranhado social nefasto: cheio de vagabundo que não quer tomar decisão se encostando em infeliz que paga com a alma para ter controle. E ambos reclamam. E nenhum sai do lugar onde está, perpetrando o jogo.
Então, desculpa, mas um maluco que erra o cálculo e pede o que é impossível é apenas isso: uma pessoa que pediu o que não podia ser executado. Não dá para fazer, ponto final – e cedo ou tarde a vida vai mostrar isso. Já o imbecilóide que não sabe o que quer, empata a vida alheia por muito tempo, e muitas vezes acaba recompensado.
Para dizer que quem não sabe o que quer quer o impossível, para dizer que ninguém sabe o que quer ou ainda para dizer que todo mundo sabe o quer e só tem medo de verbalizar: sally@desfavor.com
Fico com a Sally nessa. Um desgaste esse negócio de tu fazer mil vezes e a pessoa nem saber bem o que quer! Já quem quer o impossível, é um saco também quando tu tenta contra-argumentar milhares de vezes e a pessoa não se toca que é impossível.
Concordo, Ge. E eu sei bem como é isso…
Quem quer o impossível te toma um tempo precioso com o que não poderá ser feito; quem não sabe o que quer aceita facilmente o que você decidir por ela e pronto.
Quem não sabe o que quer desperdiça tempo decidindo na hora o que já deveria ter definido de antemão antes de pedir e ainda fica empatando a vida de quem vai se encarregar do serviço.