Escolha de uma vida.

Imagine a seguinte situação: durante um parto, a equipe médica chega à conclusão que pode salvar a mãe ou o bebê, não os dois. A mãe, ao saber disso, diz para salvar o bebê. Desconsiderando questões legais, Sally e Somir tem visões diferentes sobre essa questão de vida e morte. Os impopulares colocam suas opiniões no mundo.

Tema de hoje: uma mãe deveria poder dar sua vida para salvar o bebê durante o parto?

SOMIR

Sim. E eu nem acho que seja a decisão mais acertada, afinal, filho pode fazer mais, mãe não. Mas mesmo assim, eu acredito que exista uma linha guia ética aqui que não deveria ser quebrada: o ser humano tem direito de dispor da própria vida. Não é assim que a legislação funciona, e tanto eu como a Sally sabemos disso, é uma discussão que desconsidera a legislação vigente no Brasil ou no resto do mundo.

Eu defendo que a mãe tenha esse poder porque acredito piamente no direito à posse do próprio corpo. Seu corpo é seu, sua vida é sua. Ela não pode ser entregue ao Estado, ou mesmo a terceiros. A partir do momento onde a vida humana passa para a mão de uma entidade externa, temos uma violação do conceito de posse. Se você não pode ser dono da sua vida, nada mais faz sentido na questão humanitária.

Precisamos de uma base para fundamentar os direitos humanos, e por mais que a Declaração Universal seja uma das melhores coisas que a humanidade já fez, ela ainda tem o ranço de milênios de tratamento do ser humano feito gado. Ela ainda considera que a vida de uma pessoa é subordinada a uma sociedade, e que terceiros podem passar por cima de determinações pessoais em prol do bem comum.

Claro, existem muitos motivos para pensar assim: dependemos uns dos outros para que esse mundo funcione, cada vida tem impacto sobre a existência das pessoas ao seu redor; mas essa visão meio… utilitária… sobre o valor da vida humana gera uma fundação meio bamba para os direitos humanos básicos. A vida é sua ou a vida é da sociedade?

Porque se ela for da sociedade, pode-se argumentar uma série de restrições sobre suas liberdades pessoais. Quer comer a gordurinha da picanha? Não pode! Isso aumenta sua possibilidade de ter doença cardíaca e por tabela, gera mais custos e problemas para a sociedade. Quer tomar sua cerveja depois do trabalho? Não! Você está aumentando suas chances de doenças e também de ter comportamentos danosos para as pessoas ao seu redor.

Mas com exceção de algumas substâncias específicas, não fazemos isso, certo? Sua vida é sua, e salvo algumas atitudes claramente definidas em leis que geram dano para a integridade física, emocional ou financeira de terceiros, você faz o que quiser com ela. Se sua vida não está modificando negativamente a de terceiros nesse momento, você é livre.

Como uma pessoa pode ser livre se não pode dispor da sua própria vida? Não há propriedade mais bem definida nesse mundo! O seu corpo e sua existência são a base de todo conceito de posse. A partir do momento em que sua vida existe de forma livre (fora do ventre materno, antes é literalmente parte de outro ser vivo), ela está sob seu controle. Colocamos limitações nos primeiros anos de vida justamente para ensinar para esse ser humano o que significa estar vivo no mundo, e depois de uma idade a pessoa ganha posse completa sobre sua vida.

Depois dessa posse, só em casos óbvios de incapacidade intelectual para entender o significado da posse sobre o corpo que deveríamos manter as limitações. Por maior que seja a carga hormonal de uma mãe prestes a dar à luz, isso não a tira da categoria de ser humano livre. Só com uma prova irrefutável de limitação intelectual que poderíamos retirar esse direito dela. Uma pessoa limitada ao ponto de não poder exercer a posse sobre seu corpo jamais conseguiria chegar à conclusão de oferecer a própria vida em prol de seu filho. Incapacidade intelectual não funciona assim.

A legislação vigente tem esse mesmo ranço de “ser humano gado”, limitando coisas como eutanásia ou mesmo suicídio; por mais que achem que é para proteger o indivíduo, estão protegendo a sociedade, seja na forma de manutenção de corpos hábeis no mercado de trabalho, seja na percepção do impacto emocional em outras pessoas (o que por tabela também reduz a produtividade do gado humano). A sua liberdade individual desaparece assim que se torna incompatível com a lucratividade da nossa sociedade pós-industrialização.

Ou o seu corpo é seu, ou não é. E se não for, é bom dar um excelente motivo para isso. Seja por não ter nascido ainda, seja por limitação evidente da capacidade intelectual. Decisões que não gostamos ou não concordamos não significam necessariamente problemas mentais. A vida é cheia disso: pessoas diferentes tomando decisões que nos parecem erradas. Infelizmente isso é necessário para manter o conceito de liberdade.

Liberdade pode gerar frustração. Pessoas podem escolher coisas que você não quer que escolham, sem quebrar nenhuma das regras fundamentais da convivência humana. E essas regras só fazem sentido de verdade se tiverem uma lógica sólida. Infelizmente, a sociedade na qual vivemos conseguiu colocar lógica em algumas das premissas da vida humana, mas não em outras. Você ainda não é dono da sua vida como deveria ser. Países que tornam suas leis sobre eutanásia e suicídio mais liberais estão indo nessa direção do direito fundamental ao controle da sua existência, é a tendência num mundo em evolução.

E por essa mesma lógica, a mãe deveria ter o direito de abdicar da sua vida para salvar um filho, mesmo que ele não tenha nascido ainda. Ela deveria ter o direito de abdicar da sua vida em qualquer situação: a vida é dela. Não podemos ficar negociando isso. Se você vai discutir a validade da decisão dela aqui, por que não discutiu antes em diversas outras decisões que potencialmente colocariam sua vida em risco? Por que só em um caso específico ela perde seu direito fundamental à vida?

Vale a pena discutir com quem quer se matar, vale a pena tentar tudo o que for possível sem violar seu direito de ir e vir, mas não é aceitável arrancar dela o direito à própria vida. Imagina que horror ficar preso a uma vida que não quer viver? Essa restrição ao direito de se matar é o ponto fraco nos direitos vigentes do cidadão, é dali que saem as ferramentas de controle que fanáticos religiosos e exploradores em geral usam para roubar sua liberdade. Eu honestamente acho que é uma péssima decisão morrer para salvar um bebê, mas isso não é sobre a minha opinião, é sobre um direito que deveria ser inalienável: o direito de ser dono da sua vida.

Deveria ser o primeiro direito, o fundamental, a base de tudo. Goste você do resultado ou não… você é dono da sua vida, e só. Limitar o direito do outro é o tipo da coisa que volta para te morder a bunda no futuro.

Para dizer que mulher nunca pensa direito, para dizer que jogar criança nesse mundo é errado, ou mesmo para dizer que é a liberdade desse povo que caga tudo: somir@desfavor.com

SALLY

Desconsiderando questões legais, se, durante um parto, a mãe pedir expressamente ao médico que em caso de problemas salve o bebê e não a ela, o médico deve realizar o desejo da paciente e deixa-la morrer para salvar o bebê?

Não. Mesmo excluindo qualquer impedimento legal (e ele existe por um motivo), eu não acredito que uma mulher parindo tenha discernimento para fazer essa escolha. É uma decisão muito série e irreversível, portanto, se depender de mim, ela vai exigir 110% de discernimento para ser acatada.

Existe um motivo pelo qual muitas vezes nem se pune mulheres que cometem atrocidades durante o parto ou logo depois do parto: o chamado “estado puerperal”. O cérebro da mulher fica marinado em hormônios e, por mais que isso vá ofender a muita gente, a mulher perde sim o discernimento, o senso de prioridade e sua percepção racional da realidade.

Tem dois fatores aqui: o fator químico, com todos os hormônios que explodem na gestação e ficam ainda mais expressivos no parto, e o fator emocional, potencializado pelo estresse, pela dor e pelo medo. Eu sei que toda mãe (ok, quase toda) provavelmente daria a vida por seu filho, eu respeito isso, desde que o faça em um momento de total e perfeita sanidade e claridade mental.

Eu posso respeitar, por exemplo, a decisão de uma mãe que decide dar a vida pelo seu filho, já crescido: a criança precisa de um coração, a mãe se mata para que seu coração vá para seu filho. Eu posso inclusive compreender. Talvez se eu fosse mãe eu fizesse o mesmo. Mas é uma pessoa de posse de suas faculdades mentais. É uma pessoa que tem o vínculo mais forte que um ser humano pode ter com outro e, joguem pedras, não se tem o mesmo vínculo com um bebê que você nunca viu, só sentiu na sua barriga, do que com um filho que você cuidou, educou e estabeleceu uma relação.

Eu estou dizendo que não se gosta do bebê enquanto ele está na barriga? Claro que não! O amor materno começa mesmo antes da concepção, quando a mulher acalenta a ideia de ter um filho. O que eu estou dizendo é que não é a mesma coisa perder um bebê ainda na barriga do que perder um filho de 12 anos de idade, com o qual se teve convivência, cumplicidade e se construiu e cultivou uma relação de amor.

Por isso, tendo a pensar que uma mulher que quer dar a sua vida por um bebê que nem nasceu precisa de proteção de pessoas racionais, principalmente se ela tem outros filhos, que ficarão sem mãe. Desculpa a frieza, mas bebê você faz outro, mãe não. Botar um bebê no mundo sem mãe me parece uma puta duma sacanagem, quando existia a possibilidade de fazer diferente.

Mais uma vez, desculpa a frieza, mas não é uma decisão para ser tomada como emoção: quem tem que viver é o ser humano mais apto. E não é uma opinião minha, tirada da bunda. Essa regra vale para quase tudo na medicina: se duas gêmeas siamesas são separadas, a que tem mais chance de sobreviver de forma viável vai ser a prioridade se só puderem salvar uma.

Eu tenho certeza de que vocês viveram ou conhecem alguém que viveu comportamentos insanos durante o parto. É clichê, até mesmo nos filmes vemos mulheres se comportando de forma… questionável. E isso não é uma crítica às mulheres, se você botasse um homem com a mesma carga de dor e de hormônios ele comeria o próprio pé. Acho inclusive que as mulheres aguentam bastante bem todo o processo.

O que quero dizer é que de forma alguma se trata de uma fala pejorativa: o comportamento irracional de mulheres, dependendo do parto que estão vivendo, é mais do que justificado, química, física e emocionalmente. Não é histeria, não é frescura, não é descontrole. Tanto é que existem casos de mulheres que mataram nessa condição e não foram punidas. É algo tão forte que a lei releva homicídio, um dos piores crimes, tamanho o abalo no emocional da mulher.

Então, não, eu não acho que uma decisão grave como essa, de vida ou morte, possa ser tomada por uma mulher que pode estar nesse estado. “Ain mas eu estava ótema na hora do meu parto, podia decidir qualquer coisa”. Tá bom, floquinho de neve especial, seu parto foi tranquilo, mas… surpresa! Você não reflete todo o resto da humanidade.

Como não dá para fazer avaliação psicológica da mulher numa situação dessas, pois muitas vezes a decisão entre salvar a mãe ou o bebê é algo que precisa ser tomado em segundos, eu sou a favor de aplicar a regra mais protetiva: salva a mãe, ela que faça outro filho depois. O filho não vai poder fazer outra mãe. Novamente, peço perdão pela frieza, mas alguém precisava dizer sem rodeios.

“Ain, você nunca pariu, não tem lugar de fala”. Oi? Então seu obstetra também não pode te orientar sobre nada, pois ele nunca pariu! Por favor, estamos falando de questões cientificamente provadas. Eu nunca pari, mas já participei da defesa de uma mulher que assassinou uma pessoa (não seu filho, uma pessoa) em estado puerperal – e ela foi absolvida. Se a pessoa não tem sanidade suficiente nem para saber que não pode matar o coleguinha, imagina se vai poder tomar qualquer decisão!

O problema é que ninguém gosta desse tipo de situação, que o direito chama de “escolhas trágicas”. As pessoas surtam quando você as confronta com algo do tipo. “Quer dizer que você é a favor de matar um bebê?”. Uai, eu posso devolver a pergunta dizendo “Quer dizer que você é a favor de matar uma mãe e deixar seus outros filhos órfãos? ”.

E dependendo do caso, é ainda pior: quando é uma mãe solteira, uma viúva ou uma mulher que é tudo que aquela família tem, já pensou? Salva um bebê e deixa outras três crianças pequenas sem ninguém e ainda com um bebê para cuidar. Orfanato é a melhor das possibilidades.

Não dá, gente. Não dá. É indigesto de escutar, pois envolve a morte de um bebê, que é sempre algo antinatural e que gera identificação em todas as mães, mas, se você puxar um tiquinho de racionalidade do fundo da alma vai ver que 1) não dá para deixar alguém que não está em seu estado normal (físico, emocional e psicológico) tomar uma decisão de vida e morte e 2) a vida mais viável, nesse caso, é a da mãe.

Se a mulher, em perfeito estado de suas faculdades mentais, assinasse um documento antes, pedindo para salvar o bebê em seu lugar, eu concordaria com essa decisão. Uma decisão de vida ou morte tomada por uma mulher durante um parto? Seria altamente irresponsável.

Para continuar repetindo que eu não tenho lugar de fala (nem você, se não morreu durante um parto), para dizer que Somir não entende a influência que hormônios podem ter ou ainda para dizer que o tema de hoje é deprimente demais e que passa amanhã: sally@desfavor.com

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Comments (6)

  • Eu só imagino o massacre social (talvez até linchamento físico) a que seriam submetidas as mulheres que optassem por suas vidas. “Que monstro é esse que não salva o próprio filho?”. Às vezes é melhor simplesmente aceitar o rumo que as coisas tomam, nem tudo deveria ter que ser uma decisão a ser feita.

  • Não. Até entendo a ideia da mãe querer se sacrificar pelo seu bebê, mas minha compreensão calha mais ou menos na mesma área que aborto. Para isso ser romantizado, deixar de ser escolha e virar outra lei ou ideal compulsório para as demais pessoas da sociedade como virtude, é um pulo.

    Por causa de meia dúzia de malucas que dariam a vida por um feto, aparecerá doente mental pregando isso para todas sem exceção, pois “é o natural a se fazer”, “poupa-se o mais inocente”, e se a mãe não quisesse correr o risco de ser morta durante gravidez, “que fechasse as pernas”.

  • Totalmente de acordo. Madrasta vai tratar pior. Deve haver exceções, mas infelizmente nunca vi nem ouvi falar. Orfanato pior ainda.

  • Claro que não! Já é difícil viver com mãe imagina sem mãe! Eu preferia não nascer do que ser criada por madrasta, porque é isso que acontece quando pai tá solteiro, isso se o Zé Ruela não abandonar antes. Tem mãe que trata mal, madrasta vai tratar pior. Aliás botar criança no mundo já é um erro por si só.

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