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Telegonia

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| Somir | | 30 comentários em Telegonia

Última postagem do mês, então é a minha vez de pegar uma sugestão dos leitores para transformar em tema: a Sissy sugeriu falar sobre Telegonia, e o assunto é tão horrível que eu me empolguei na hora! Você sabe o que é Telegonia? Não? Azar seu, vai aprender agora.

Telegonia é uma teoria que diz que as características de um parceiro anterior da fêmea podem ser herdadas pela sua prole. A fêmea se reproduz com um macho, mas o filho acaba tendo elementos de outros machos com os quais ela fez sexo anteriormente. Ou, em termos mais toscos: mãe só tem uma, pai são todos que transaram com ela.

E não tem nada de moderno nisso. Isso vem desde o tempo de Aristóteles, na Grécia antiga. Naquele tempo, ninguém sabia muito bem como se dava o processo de gerar uma nova vida, só tinham a noção que precisava do sêmen de um macho dentro de uma fêmea. O que acontecia dentro do corpo da mulher depois disso estava aberto a interpretações.

E por muito tempo, a Telegonia sequer foi questionada. Na mitologia grega, a ideia de dois ou mais pais da mesma criança era a explicação para semideuses: um ser humano normal e um dos deuses fez sexo com uma mulher, a criança saiu um misto dos dois, não importa quem tenha transado por último com a mulher. As pessoas realmente achavam que isso acontecia. Com humanos e com animais.

Quer dizer… embora seja injusto cobrar de pessoas da antiguidade o conhecimento sobre biologia nesse nível, não parece meio conveniente demais que essa ideia reforce o “valor da mulher virgem”? Antes dos testes de DNA, ninguém tinha certeza de quem era filho de quem. Eu diria até que a crença na Telegonia tinha mais funções utilitárias do que propriamente moralistas: não eram tempos de muito amor não, viu? Casamentos eram muito mais práticos do que românticos, e filhos eram muito mais investimento que sonho. Homens não queriam criar filhos dos outros, e na sua cabecinha, o jeito mais seguro era pegar uma mulher que nunca tivesse feito sexo com outro homem.

Sim, tem papo religioso e moral nisso de virgindade feminina (mas nunca masculina), só que essas coisas não surgem num vácuo, cada babaquice religiosa moderna teve alguma função mais prática no passado. Infelizmente, nossos antepassados tinham a sutileza de um elefante numa loja de cristais e queriam apedrejar pessoas por qualquer deslize. Por isso acabamos com uma maioria de regras sociais de fundo religioso que nem fazem mais sentido nos dias atuais.

E toda essa conversa de importância da mulher casar virgem foi crescendo com o passar dos milênios, cada vez mais inegociável pelas religiões do Oriente Médio. Ninguém mais precisava dar muita explicação para a ideia de exigir virgindade da mulher, era só a regra do ser mágico dos céus. Pseudociência é uma praga mesmo: quase todas as do passado viraram regras religiosas porque ninguém era capaz de combater.

A Telegonia nunca foi embora, ela só foi ficando para escanteio, surgindo vez ou outra na boca de médicos e filósofos, mesmo sem nenhuma prova concreta da sua existência. Não precisava: a Telegonia tinha passado pra frente em várias religiões e mesmo sem essa base pseudocientífica, a “obrigação da virgindade feminina” seguia século após século. Não precisamos de estudos científicos para comprovar algo que todo mundo já acredita, não?

Mas o tempo passa, o tempo passa e o conhecimento humano sobre a concepção cresce exponencialmente. Enxergam o espermatozoide, o óvulo. Enxergam com os próprios olhos como funciona a concepção. Opa… se é só um espermatozoide que entra, se eles não vivem mais que alguns dias dentro da mulher… a Telegonia não faz mais sentido. Alguém precisou sair nas ruas dizendo que Telegonia estava errada? Não, ninguém nem sabia mais que existia algo chamado Telegonia. A religião estava segurando a farsa da virgindade como única certeza de paternidade. Fazia parte da moral da sociedade.

Revolução sexual. Camisinha, pílula, globalização, direitos femininos… a farsa da virgindade estava caindo, rapidamente. A religião e os conservadores não estavam mais conseguindo manter esse nível de controle sobre as mulheres. Elas estavam fazendo sexo sem medo de serem rejeitadas pelo resto da vida. A porteira estava aberta. E por um tempo, isso foi bom: dos anos 1960 para frente, a relação da humanidade com o sexo mudou consideravelmente, menos culpa e mais liberdade. Telegonia? Que mané Telegonia! Ninguém nunca ouviu falar disso.

Só que junto com a parte boa de parar de se preocupar tanto com um pedaço de pele na vagina das mulheres, veio o lado ruim da subversão do feminismo na cultura politicamente correta e sequencialmente a da lacração. O pêndulo avançou com força rumo à liberação feminina, mas assim que alguns expoentes do movimento perderam a mão e começaram a demonizar homens, deram energia para o desenvolvimento da contraparte insana masculina. MGTOWs, Incels e uma série de homens radicalizaram em resposta.

Alheios a tudo isso, em 2014, um grupo de pesquisadores estavam interessados em descobrir se havia alguma lógica em Telegonia em um tipo de mosca. Fizeram um experimento e encontraram evidências de que os filhotes da mosca-da-fruta parecem receber características de outros machos que cruzaram com a fêmea. A hipótese deles era de que esperma de machos anteriores poderia ter entrado em óvulos imaturos da fêmea, que quando foram realmente ativados pelo esperma de outro macho, influenciaram o desenvolvimento do feto.

O ano era 2014, então várias notícias saíram sobre a pesquisa, todas naquele padrão “estagiário lendo artigo científico”, colocando palavras na boca dos cientistas e dizendo que “a ciência diz que é verdade”. Os pesquisadores nem sonhavam em dizer que isso poderia acontecer em humanos, sequer tinham tentado em mamíferos. Mas, é claro que as matérias da internet usavam chamadas como “Seu filho não se parece com você? A ciência explica”. Pouca gente deu atenção na época.

Mas recentemente… a guerra cultural estava tão forte que o tema voltou com força: homens querendo argumentos para sugerir mais repressão sexual sobre as mulheres foram buscar a Telegonia de volta. Como a versão religiosa tinha perdido fôlego, a versão pseudocientífica virou a bola da vez. Os defensores atuais da Telegonia usam o estudo de 2014 como “prova” de que é isso que acontece. Um estudo diz que viu evidências de Telegonia em moscas-da-fruta, mas esse estudo já recebeu muitas críticas e o consenso científico atual é que Telegonia é uma teoria pseudocientífica.

Eu não estou escrevendo essa história toda para discutir com você a validade científica da teoria, por incrível que pareça. Se tem que estudar melhor, tem que estudar melhor. Talvez no futuro encontrem alguma prova que a Telegonia tem mérito em seres humanos. Não estou fechando a porta para isso ou escolhendo o resultado que eu quero, estou só dizendo para quem está lendo em que pé a parte científica está agora. Tudo pode mudar.

O ponto mais importante nessa discussão, creio eu, está na conclusão de que a virgindade da mulher tenha muita importância. Se você quer defender por um ângulo moral, religioso ou até mesmo científico, fique à vontade, mas chegar a uma conclusão não significa que ela tenha utilidade em outras discussões.

Telegonia é um espantalho nessa discussão. Porque a teoria só tem utilidade para tirar o foco do problema essencial de seus defensores: o incômodo com a liberdade sexual feminina. Sou o primeiro a dizer que não acho motivo de orgulho para ninguém ser promíscuo(a), mas também não precisamos sair correndo para a outra direção em busca de valor no ser humano. Na cabeça do público que usa Telegonia como argumento para criticar a sexualidade feminina, existe uma dor muito mais profunda.

O MGTOW, o Incel e o tipo de conservador de rede social/chan que fica repetindo isso normalmente é alguém inseguro na sua relação com as mulheres. Não estou nem dizendo que são incapazes de conseguir sexo (embora alguns sejam), mas que tem algo de muito mal resolvido nessa relação com as mulheres. Um medo primal de ser passado para trás, de ser traído, ferido. Uma desconfiança terrível que precisa de “provas de valor” como virgindade.

Mas a verdade que não é sobre o hímen, é sobre a suposta pureza dessa mulher. O homem que morre de medo da mulher e o poder que ela pode exercer sobre ele quer achar uma inofensiva. Inexperiente, dependente, medrosa… uma criança com a qual pode fazer sexo, usando termos bem diretos. Quem enche a boca para chamar todo mundo de otário por não saber sobre Telegonia tende a ser uma pessoa que está se borrando de medo de ter o coração partido por uma mulher, seja por rejeição ou traição.

Um medo que é normal de se ter em algum nível, ninguém quer ter o coração partido, mas que não é normal nesse nível de isolamento de uma vida sexual e/ou amorosa. Querer a mulher virgem e pura é uma excelente desculpa para não se jogar numa relação e enfrentar os riscos que vem com ela. Se quase todas as mulheres não prestam, não é culpa dele não conseguir chegar em uma, ou mesmo manter um relacionamento minimamente saudável. A culpa é dela, não dele.

Mesmo se Telegonia for a mais pura verdade e uma criança nascer com características de outros homens que já fizeram sexo com a mulher, obviamente nem é algo muito impactante. Tem motivo para exame de DNA comprovar paternidade, não? É algo que acontece todos os dias sem parar, em casais infelizes, mas em casais muito felizes também. Gente que trai e gente que é fiel. Gente que fica junta seis meses e gente que fica junta por seis décadas.

Essa maluquice sobre virgindade da mulher ser tão importante é ranço de um passado completamente diferente do mundo no qual vivemos hoje, e nem mesmo naquela época tinha relação com a qualidade de vida do casal. Não é um pedaço de pele, são as pessoas. Pessoas que estão interessadas em dividir uma vida ou um momento. Se você tem medo de se relacionar, você vai se relacionar com o medo.

Não dá para engolir esse papo furado de homem dizendo que só quer mulher virgem porque são as únicas que prestam. É que nem escolher mulher pela cor do cabelo ou pelo tamanho do peito: pode até ter algo que te interesse, mas não é garantia de nada. Mulher que chega virgem no casamento pode te chifrar do mesmo jeito. Mulher que já teve vários namorados pode estar morrendo de vontade de ficar com só um homem e tratar ele muito bem.

E no fundo, todo mundo sabe disso. Até parece que toda mulher casava virgem no passado… e até parece que era isso que segurava os casais juntos por muito tempo. Não podia nem divorciar até poucas décadas atrás. Telegonia e qualquer outro tipo de desculpa de homem histérico pelo medo de sofrer por um relacionamento nada adiantam para encontrar alguém de quem você goste e que goste de você de volta. Porque essa é a base. O resto é conversa mole de gente querendo justificar seus problemas pessoais.

Homem não presta até você achar um que preste; mulher não presta até você achar uma que preste. E para cada pessoa, esse padrão é diferente. Se você está desistindo antes ou criando padrões cada vez mais difíceis para o outro alcançar, você está com um problema. Você, não o outro.

Já basta esse bando de mulheres cada vez mais raivosas e ressentidas, não precisamos de um bando de homens histéricos com medo de esperma homeopático, né? Sai dessa. Pode até achar bonito ou especial encontrar uma mulher virgem, nada contra, mas isso é só um pedaço dela, um que se parte rapidamente. Se é isso que você espera de uma mulher, será que você quer mesmo uma mulher?

Para dizer que eu sou mangina, para dizer que é mulher e vai se ofender por solidariedade, ou mesmo para escrever um livro dizendo como as mulheres são horríveis mesmo que você nunca tenha pegado na mão de uma: somir@desfavor.com


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