Profissão sem futuro.

A Inteligência Artificial continua avançando a largos passos ao redor do mundo, as máquinas já modificaram a forma como trabalhamos, mas ainda tem muito o que acontecer nesse campo da automatização. Sally e Somir concordam que essa vai ser a toada do futuro, mas discordam sobre quais trabalhos serão tomados pelo computador primeiro. Os impopulares trabalham numa resposta.

Tema de hoje: qual será a primeira grande profissão a ser completamente substituída pela Inteligência Artificial?

SOMIR

A minha previsão é que a profissão de vendedor vai ser uma das primeiras, senão a primeira das “grandes profissões” a cair. Há vários anos eu escrevo sobre futuro e IA aqui no Desfavor, e a minha visão sobre o assunto foi evoluindo texto a texto. Quando eu comecei, eu ainda estava sob a impressão de que as máquinas tomariam primeiro os empregos muito simples e só muito no futuro, com IA bem mais avançada, que os que dependem de mais análise crítica e relação humana.

Pois bem, essa visão está desatualizada. Pelo visto, a Inteligência Artificial vai começar pelas nossas profissões mais complexas e só aí “descer” para as consideradas mais simples e braçais. O motivo está além da tecnologia, é uma questão econômica e social: se você tem gente disposta a montar um celular por 1 centavo de dólar a hora, não faz muito sentido desenvolver uma máquina de milhões de dólares para assumir esse trabalho.

Talvez essa máquina de milhões valha o investimento em uns cinco anos, mas em cinco anos não se produzirá mais aquele celular. A máquina humana tem um imenso poder de adaptação, o que nem sempre é o caso da máquina… máquina. Mesmo que já tivéssemos uma IA generalista, isso é, uma que aprende coisas novas e não depende apenas da programação inicial, ainda temos todo o problema de lidar com o mundo real: o computador precisa de alguma coisa para interagir com a matéria. Seja um laser de precisão, seja um braço mecânico. Isso também é muito complicado de fazer.

Ou seja: por mais que um robô faça o trabalho de cem pessoas com maior precisão e velocidade, ele normalmente é extremamente especializado numa função. Se a moda dos humanos mudar um pouquinho que seja, a máquina pode precisar de muito tempo de correção ou mesmo ficar totalmente inútil. Nesse ponto, é muito mais fácil ter funcionários humanos produzindo as coisas. O macaco pelado se adapta muito rápido a qualquer novo projeto. É por isso que ainda tem tanta gente trabalhando em produção de bens de consumo.

O ser humano é extremamente adaptável e substituível nesse tipo de trabalho repetitivo. Sim, é um tapa na cara de quem imaginou que as máquinas roubariam todos os trabalhos braçais, mas quando você para para pensar, faz todo o sentido. O ser humano precisa trabalhar para sobreviver, trabalha até quebrado. A oferta de gente para fazer trabalhos braçais e repetitivos ainda é enorme. E pensando que a população mundial tende a continuar aumentando por algumas décadas ainda, não é um recurso que vai diminuir.

E tem mais: quanto mais complexo o trabalho, maior a utilidade de algo extremamente específico como IA. Colocar uma peça no lugar certo quase qualquer pessoa faz, analisar um padrão de sintomas para identificar uma doença já depende de muito estudo e experiência. Coisas que a IA pode forçar a barra para simular. Um bom médico tem um banco de dados mental de relações entre sintomas, doenças e tratamentos; esse banco de dados pode ser digitalizado e terceirizado, como já fazemos com nossa lista de contatos, por exemplo.

Mas aí entra a sutileza da situação: as profissões que já se utilizam de computadores para aumentar eficiência estarão muito mais seguras, afinal, elas tendem a ser as que mais tem problemas com mão-de-obra. É fácil achar quem coloque tijolos na ordem certa, é difícil achar quem saiba bater o olho numa pessoa e entender o que ela quer dizer. Temos falta de gente especializada em praticamente todas as profissões clássicas mais complexas, no mundo todo. Cabe muita Inteligência Artificial nesses mercados antes do ser humano se tornar redundante.

Ei, você não ia falar de vendedores?

É aqui que tudo se conecta: vendedor é uma profissão clássica complexa, então a demanda por profissionais é muito grande, e não é bem atendida pelos seres humanos disponíveis. É algo que gera muito interesse no mundo, e que a IA pode fazer dadas as condições certas. Você já comprou muita coisa baseado em sugestões feitas por computadores. Cada vez que você compra um produto relacionado com o que estava pesquisando, uma IA te vendeu alguma coisa.

O design de um e-commerce, a oferta de produtos, a propaganda que te segue em todos os sites… todos exemplos de trabalho de vendedores sendo feitos por máquinas, muitas delas sem intervenção humana direta. Você já está vendo a profissão ser substituída, especialmente depois da explosão do comércio online na pandemia. Havia um fator social aí: as pessoas gostaram da ideia de comprar as coisas pela internet. O vendedor clássico é um chato por definição do trabalho, foi um alívio pra muita gente se livrar dessa pessoa.

E o segundo ponto de conexão: o trabalho do vendedor não é feito no computador. Profissões que são feitas no computador estão muito mais seguras porque já partem do princípio da interação humana para criar contextos e tomar decisões. É mais prático e barato melhorar a IA nessas profissões usando o ser humano. Na de vendedor, não é a mesma coisa.

O vendedor virtual, um e-commerce, funciona melhor sem a contraparte humana. É mais rápido, atende milhares ao mesmo tempo, tem memória fotográfica perfeita sobre produtos relacionados e ainda pode te seguir por semanas sem tomar uma medida restritiva. Não tem muita coisa que o vendedor clássico pode fazer para tornar mais barato trabalhar com ele do que trabalhar com a IA. É aí que as coisas começam a se complicar.

Não é uma previsão para a semana que vem, mas é uma bem mais próxima do que questão de décadas. A IA vai começar a tomar conta de quase todos os processos de compra e venda, como já está fazendo. A profissão já está sendo substituída, os shoppings estão afundando, as lojas físicas andam com vários problemas. Ainda tem muita gente pobre nesse mundo que não pode usar a internet para comprar, mas a cada dia que passa a tecnologia fica mais e mais acessível, junto com os preços, sistemas de pagamento e os produtos disponíveis.

Se você já está trabalhando junto com a IA, ou se pelo menos tem o prospecto de trabalhar com ela nos próximos anos, seu emprego deve se manter bem seguro. Se você não tem isso no seu horizonte, ou vai ter que disputar a tapa as profissões economicamente viáveis para seres humanos, ou vai ter que achar outro trabalho para o futuro.

Vendedores estão com os dias contados, a não ser que alguma tecnologia surja para integrar a profissão com a máquina. E pelo número de quiosques de autoatendimento que vemos surgindo por aí, eu duvido que seja o caso.

Para dizer que robô não vende coisa inútil (é o que mais vende), para dizer que odeia vendedor mesmo, ou mesmo para dizer que nem um robô escreve coisa tão chata: somir@desfavor.com

SALLY

Qual será a primeira grande profissão a ser completamente substituída por uma Inteligência Artificial?

Não vai ser agora, não vai ser nos próximos anos, mas em algum momento IAs (Inteligências Artificiais) vão substituir a quase todos nós. Acredito que quanto mais objetiva for uma tarefa, mais fácil que um supercomputador a execute, por isso meu palpite vai para Engenharia.

Em todo o resto eu ainda consigo vislumbrar a necessidade de subjetividade, de empatia, de percepção humana, que talvez um dia as IAs também sejam capazes de reproduzir. Mas, em um primeiro momento, enquanto elas ainda estão em um estágio menos evoluído, é mais fácil se ocupar de uma profissão que é basicamente cálculo e conhecimento teórico.

Para diagnosticar um ser humano doente é importante escutar sua história, compreender seu estado emocional e seu entorno. Para defender um réu em um processo, é necessário compreender seus sentimentos, o que o moveram a se portar assim e analisar a conduta da outra parte no evento que gerou o processo. Mas, para construir um prédio, é basicamente conhecimento técnico: o melhor material, o melhor formato e até as melhores cores são informações que não dependem de subjetivismo.

E, vejam bem, no momento, eu não moraria jamais em uma casa criada por um computador. Acho que ainda demora um pouco para educar uma IA, para aperfeiçoá-la, para evoluir até ser seguro confiar nela de olhos fechados. Nem carro autônomo eu confio, muito menos morar debaixo de um teto calculado apenas por uma máquina. Mas… esse dia vai chegar. Provavelmente eu não estarei aqui para ver, mas vai chegar.

E de forma alguma quero levar isso para o lado alarmista de que toda uma classe de profissionais vai perder o emprego. Será uma mudança lenta, gradual e naturalmente essa profissão deixará de existir da forma que a conhecemos hoje, sem traumas. A profissão vai se adaptar e desempenhar novas funções.

Máquinas nunca vão substituir 100% seres humanos. Novas necessidades surgirão e, com elas, novas profissões surgirão, que dependam do fator humano. Portanto, ninguém precisa perder o sono com medo de um robô roubar o seu emprego. Só não podemos ficar engessados, apegados à forma como desempenhamos nossos trabalhos hoje, pois a forma, essa sim vai mudar. E quem trabalha com algo mais objetivo tem que estar preparado, pois é provável que sejam os primeiros a ter que fazer uma adaptação.

Para fazer cálculos, definir ângulos, decidir materiais e outras tarefas subjetivas, uma IA bem treinada e pronta para uso será mais rápida, mais barata e mais produtiva que um ser humano. Não faria nenhum sentido continuar usando recursos humanos, cujo ponto forte é o subjetivismo, a criatividade e o sentimento, em algo que uma máquina faz melhor.

Vai chegar um ponto em que ter uma casa projetada e construída por um ser humano será algo hipster, de colecionador, uma excentricidade com valor afetivo. E tomara que as IAs sejam melhores do que os humanos, não aguento mais ler sobre prédio que cai, arquibancada que desaba, ponte que vem abaixo. Não é maravilhoso delegar uma tarefa dessas para quem não erra nunca?

Décadas atrás, tínhamos os que resistiam a computadores e até calculadoras, defendendo que os cálculos deveriam ser feitos de forma manual. Eles foram atropelados pela tecnologia: a calculadora não erra nunca, o ser humano sim. Fica bem claro quem vai se sobressair nessa função.

Talvez a parceria humanos/máquina continue sendo necessária. Talvez, quando as IAs fizerem toda a parte técnica, a Engenharia crie um ramo exclusivo para seres humanos, algo como um avaliador final de uma obra, que faça um relatório sobre o trabalho da IA e dê o aval final para que aquilo seja aprovado. Mas, a Engenharia como a conhecemos hoje está com seus dias contados. E isso não é ruim, isso é bom, inclusive para os próprios engenheiros.

Não ter que se preocupar com a parte técnica libera tempo, espaço e oportunidade para que se aprofundem em outras questões que apenas humanos tem condição de abraçar, que antes passavam abaixo do radar por existirem coisas mais importantes para se preocupar. Tenho fé que a Inteligência Artificial não vai extinguir a Engenharia, vai refiná-la, deixando a cargo do Engenheiro novas tarefas, muito mais importantes.

Tomara que a profissão de todos nós no futuro seja ser supervisor do que uma máquina fez. Muito mais fácil e agradável conferir o trabalho alheio do que ter que fazer tudo sozinho e ainda arcar com o ônus do erro. Eu adoraria quem uma máquina fizesse meu trabalho e eu só tivesse que conferir se está tudo certo.

As profissões que exigem contato humano, pela lógica, seriam as últimas a serem substituídas, pois é muito mais difícil ensinar uma máquina a emular sentimentos e atributos humanos do que a fazer contas. Profissões que, para existir, precisam lidar, avaliar ou reconhecer sentimentos humanos ainda tem um belo futuro pela frente.

Eu já fui vendedora, e acredito que, de uma forma ou de outra, todos nós o sejamos, em nossas profissões, ofícios ou funções. Acho essencial para a venda o fator humano, a empatia, a conexão, a compreensão do que o outro está sentindo, está buscando, do que ele pretende alcançar adquirindo aquele produto.

Não digo que máquinas nunca serão capazes de penetrar nas profundezas da mente humana e compreendê-la, a ponto de emular empatia, mas… acho que isso demora um pouco mais para acontecer. O primeiro impacto vai ser no pessoal de exatas mesmo. E tá tudo bem, como eu disse, acho que é bom para o próprio profissional, que terá chances de expandir sua atuação e se refinar.

Quem viver verá.

Para dizer que motoristas serão os primeiros a serem substituídos, para dizer que os cirurgiões serão os primeiros a entrar em extinção ou ainda para dizer que quer jogadores de futebol robôs: sally@desfavor.com

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Comments (16)

  • Uma pergunta bem bobinha:
    Os cobradores de ônibus não foram/serão substituídos pelo sistema de bilhetagem eletrônica ou não contaria para essa situação colocada no texto?
    : /

  • Os engenheiros podem ver pelo lado bom, sim… Não vai faltar Uber para dirigir (sim, foi mais forte que eu). Fora que o motorista tá virando um amigo de aluguel, enquanto a pessoa estiver no carro, parece que vale falar de tudo ali dentro.

    E se entendi a lógica dos dois textos, profissionais do sexo pelo visto não vão sumir tão cedo, só vão aprender a usar mais o OnlyFans…

    • Os profissionais do sexo podem ser substituídos por robôs, os “sexbots”, que estão cada vez mais realistas…

      • E também tem aquelas IAs que geram imagens e deepfakes. É só o maluco (ou maluca) pegar a foto do rosto da pessoa que quiser e mandar o robô montar fotos e vídeos pornô. Em breve, vazamento de nudes de gente que nunca tirou foto pelado na vida.

      • Boa parte do público que teria interesse não é lá muito fã de higiene. Logo, prevejo a criação da profissão de “limpadores de boceta robótica”

      • Há uma webcomic radfem, Sinfest, que aborda isso de “sexbots”… Claro, assumindo que o futuro será misógino e que os homens exploram e descartam essas sexbots assim como fazem com as mulheres reais…

        Até algumas das sexbots entrarem em uma área do mundo da webcomic chamada “reality zone” e começarem a pensar por si próprias como pessoas reais, iniciando uma revolução pela liberação de suas semelhantes…

        É até interessante, se o leitor conseguir ignorar a misandria cavalar típica de radfem.

  • Fico com o Somir nessa. Logo quando se começou a falar em e-commerce alguns anos atrás, eu já achava que a função de vendedor estaria com os dias contados. E, pelo que tenho observado, principalmente desde que a pandemia começou, a mudança vem acontecendo até mais rapidamente do que o que era previsto por muita gente.

    • Claro que a função de vendedor pode ser substituída pela intermediação online direto com o centro logístico, mas tem o fato de que o custo de remessa é relativamente alto e eventuais devoluções são um custo adicional para as empresas que trabalham com esse modelo de trabalho.
      Além do que o vendedor na linha de frente pode ser um motivador no sentido de fechar vendas que provavelmente não seriam feitas sem a abordagem do mesmo.
      Aquilo que vocês chamam por IA tem avanços interessantes, mas assim como no caso da robótica que era superestimada lá no tempo de Os Jetsons, se superestima o poder dos algoritmos nos dias de hoje.
      Quanto mais mecanismos de controle colocamos em um sistema automatizado, mas complexo ele fica e no fim é basicamente uma lógica que lembra a velha cantiga do “A velha a fiar”, só que sem fim.
      Por exemplo, a Conjectura de Collatz que muitos consideram insolúvel, na verdade é uma conjectura que pode ser provada algebricamente até com certa facilidade. O problema é que hoje se usa dos recursos computacionais para tentar solucionar problemas matemáticos e se desconsidera o fato de que utilizar recursos computacionais pra tentar provar tal conjectura é levar tais recursos a exaustão.

      • Sim, defendendo meu peixe aqui, tradução envolve língua e linguagens e suas trocentas nuances e variações, e isso perpassa invariavelmente pelo aspecto psíquico e ideológico, que não tem como não ser individual. Nenhum tradutor automático até hoje – embora possa parecer extremamente eficaz em termos de correspondência linguística exata ao nível da gramática normativa – consegue chegar a ter o controle dessas variáveis (ideologia, psiquê) num nível minimamente satisfatório. Ou, como diz o bom e velho ditado, toda tradução é uma traição. Posso dar vários exemplos em várias línguas sobre como isso acontece.

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