Questão de ordem?

Já que estamos na época de discutir o Brasil – antes do povão esquecer disso de novo por mais quatro anos – vamos falar sobre os problemas que assolam a nação. Sally e Somir concordam que são vários, mas na hora de priorizar, o foco muda. Os impopulares fazem suas propostas.

Tema de hoje: qual é o problema mais IMPORTANTE do Brasil hoje?

SOMIR

Desigualdade social. Pobreza com certeza faz parte disso, mas desigualdade vai além, é um desequilíbrio da lógica de vida em sociedade que engole toda tentativa de melhoria que ela fizer. Eu considero que temas como segurança, saúde e educação fazem parte dos valores centrais de um país que oferece melhorias na qualidade de vida da sua população, mas antes de resolver o problema primordial da desigualdade, a energia colocada nessas questões é desperdiçada.

Por que eu coloquei desigualdade social como algo maior que pobreza? Vamos lá: não estou colocando em dúvida o problema que a falta de recursos causa para a vida de uma pessoa. É claro que se for para escolher, faz mais sentido escolher um mundo onde as pessoas têm mais dinheiro. Só que pobreza por si só não é esse monstro todo sem a desigualdade. Uma comunidade de pessoas mais ou menos na mesma condição financeira tende a funcionar de forma mais equilibrada.

Uma casa simples bem arrumada é aconchegante. Imagine uma vila onde as pessoas não têm muito dinheiro para extravagâncias, mas que tem uma creche baratinha, um posto de saúde que capricha na prevenção, baixa criminalidade por não ter muito o que roubar… claro que eu preferia ter todas as comodidades de uma vida mais abastada, mas existem pontos de equilíbrio numa sociedade que permitem um avanço de qualidade de vida lento, mas consistente.

Quando você tem uma base mais igualitária, o interesse coletivo começa a fazer mais sentido para o cidadão médio. Até porque mesmo o empreendedor local vai adaptar suas ideias e projetos para a realidade da sua comunidade. O cidadão médio não vai sofrer tanto assim com a cultura de consumismo se não ficar sendo lembrado o tempo todo o que está perdendo. Papo comunista feio, né?

Eu sei, mas há lógica até mesmo nas ideias que você abomina. Eu gosto de liberdade de expressão, liberdade de iniciativa e meritocracia, mas jamais vou ser cego para uma realidade dessas: o ser humano fica menos brutalizado e neurótico numa sociedade mais igualitária, mesmo que seja igualitária para o lado mais pobre da coisa. O comunismo morreu na burrice autoritária (inescapável) de seus líderes. Não funciona por causa dos indivíduos, não por causa da ideia.

Como no Século XXI deveríamos saber que esse tipo utopia proletária é uma ideia terrível, eu sugiro adaptar o conceito para o entendimento prático que temos atualmente: país que vai pra frente é país que tem a maioria da população na classe média. O capitalismo nos mostra há milênios que tem um ponto de equilíbrio bem definido nesse nível de riqueza do cidadão médio. Países que engordam a classe média de rendimentos acabam se destacando positivamente em todas as outras áreas importantes em poucas gerações. Todos os países que consideramos avançados hoje em dia passaram por isso. Todos os índices de qualidade de vida deles já foram terríveis como os brasileiros.

Num misto de roubo descarado de recursos de países com menos poderio militar e boas ideias mantidas por décadas, os países de primeiro mundo atuais conseguiram passar pela armadilha da desigualdade social e entrar num padrão de estabilidade que permitiu todo esse avanço nos serviços prestados para seus cidadãos.

A era da colonização passou, países como o Brasil estavam no lugar errado na hora errada, mas isso não quer dizer que a janela de oportunidade acabou para sempre. Muito do meu argumento sobre o futuro do Brasil não ser muito brilhante não é sobre aumento de qualidade de vida, porque ele vem de um jeito ou de outro. O Brasil vai ter o padrão de qualidade de vida da Noruega um dia, o problema não é esse, o problema é que quando chegarmos nesse ponto, o que vai se considerar excelente vai estar anos-luz à frente do que tivermos. Quando chegarmos aos 90 anos de expectativa de vida, é provável que já tenham resolvido a questão do envelhecimento em outros países.

A desigualdade não impede evolução, mas a torna extremamente lenta. Há pouco incentivo em trabalhar para melhorar uma sociedade da qual você não se sente parte. E pior, ver desigualdade e injustiça o tempo todo polui sua mente com o medo de ficar para trás. A sociedade desigual produz mais corruptos e pessoas sem ética. Não adianta fazer cara feia, não adianta rezar com mais força, não adianta nem colocar policial para sair atirando em todo mundo que você não gosta: enquanto a desigualdade não diminuir, o país vai ser uma fábrica de gente egoísta sem visão de futuro.

Evidente que eu valorizo educação, venho de uma família que sempre colocou isso na frente de tudo, eu acho aprendizado algo realmente divertido e a coisa que eu mais gosto no Desfavor é esse exercício constante de acumular e replicar conhecimento. Porém, educação é algo que acontece depois de você escapar das garras da desigualdade.

Quando você investe em educação numa sociedade problemática, você não alcança o cidadão médio. É melhor do que nada conseguir pinçar das favelas e comunidades pobres os cérebros mais esforçados? Com certeza. É uma mudança de paradigma social? Não. Porque continua sendo loteria. A sociedade precisa que seus seres medianos tenham acesso aos serviços de qualidade. É sobre ensinar pessoas normais, não sobre valorizar mais os excepcionais.

Eu sou uma pessoa sem disciplina e francamente, bem preguiçoso. Não fosse a classe média (baixa) me dar oportunidade de seguir só meus interesses até acertar uma combinação muito pessoal de acesso à informação e liberdade de “não dar lucro”, eu não teria capacidade de escrever um texto como este. Me colocasse numa favela e eu dificilmente me destacaria no campo intelectual. Não porque magicamente me tornaria burro, mas porque não teria tempo ou liberdade de explorar essa parte da mente.

Não adianta ter professor excelente cuidando de aluno que precisa começar a trabalhar sério aos 12 anos de idade. Ele não vai estar na escola. Não adianta fazer todo o esforço só para pegar mentes brilhantes e extremamente disciplinadas que sim, surgem em todos os lugares. Porque não se vive só de expoentes, precisamos de uma média equilibrada que permita que mais pessoas medianas se desenvolvam. Não adianta nem colocar saúde em primeiro lugar, porque a pessoa vai ter o mesmo problema social com menos doenças.

Tirar o pobre da pobreza para colocar a maioria da população na classe média é o caminho testado e aprovado para se tornar país de primeiro mundo. Não adianta ter meia dúzia de gênios cercados por milhões de pessoas desesperadas para saber se vão ter teto ou comida no próximo dia. Desigualdade é um muro: se sua solução é colocar uma escada na frente dele, não vai passar todo mundo que precisa.

Tem que derrubar o muro. E isso se faz com recursos mais bem divididos. Como fazer isso? Tem várias fórmulas, se a gente teimar nesse caminho, uma delas vai funcionar, basta ter o foco certo, o foco no que é importante.

Follow the Money.

Para quebrar o demoji de comunista, para dizer que iam gastar o dinheiro com bobagem, ou mesmo para dizer que o problema mais importante é o brasileiro: somir@desfavor.com

SALLY

Qual é o problema mais IMPORTANTE do Brasil hoje?

Percebam que IMPORTANTE está em caixa alta, justamente para que ninguém caia na tentação de citar os problemas mais urgentes. Sabemos que existem coisas urgentes, mas, neste texto, queremos debater apenas o importante. E, na minha opinião, nada é mais importante do que a Educação.

Se der educação boa, de qualidade, acessível para todos, não resolve tudo, mas resolve o problema mais importante: uma falha na base que impede que se construa qualquer coisa sólida por cima.

Sei que não é o único problema importante, infelizmente existem muitos, mas eu sou romântica, eu acredito que a Educação é base mais sólida a partir da qual se pode construir todo o resto. Desigualdade social? Grave, porém não adianta dar dinheiro, renda ou auxílio a quem não tem educação pois a pessoa não vai saber gerir e pior, vai ficar dependente de quem lhe dá essa renda. Educando não se dá o peixe, se ensina a pescar.

Saúde? Importantíssimo, pessoa morta ou doente não consegue nem ao menos receber educação. Porém a melhor forma de tentar começar a reparar o estrago é com Educação: pessoas que compreendam como funciona uma vacina, pessoas que compreendam como funciona o corpo humano e possam cuidar de si de maneira preventiva, desafogando os hospitais e, acima de tudo, pessoas que compreendam como funciona a medicina, para procurar um médico quando ainda dá tempo de fazer algo – e que tomem os antibióticos certinho, até o final, mesmo que os sintomas tenham passado.

Você pode citar o problema que for: cultura, habitação, fome, violência… para todos eu vou responder com Educação, não como a única, mas como a principal forma de sair do buraco em que o país está. Não essa bosta de ensino que tem hoje, Educação. Uma grade curricular decente, onde em vez de aprender a colar macarrão em caixinha de papelão ou de estudar religião, se aprendam coisas úteis: mais sobre leis, primeiros socorros, direitos, deveres, saúde e tantas outras questões que são preteridas.

E Educação não é só professor e sala de aula, é tudo aquilo necessário para aprendizado: desde infraestrutura, material, merenda, capacitação e tudo mais que assegure igual capacidade de aprendizado por todos. Como vocês podem imaginar, o investimento teria que ser descomunal.

Educação que ensine a pensar, não a decorar. Que ensine a aprender, não a memorizar. Que ensine a questionar, não a repetir. Que ensine a criar, não a copiar. Aulas de futurismo, de desbloqueio criativo, de autoconhecimento. Um espaço fértil, construtivo e interessante, para onde não seja uma tortura ir todo santo dia. Um espaço que respeite os interesses e aptidões de cada aluno.

Obviamente não faz sentido abolir as matérias principais, elas devem continuar. Mas a forma de ensino, totalmente obsoleta, deveria mudar por completo e novas questões deveriam ser acrescentadas: inteligência emocional, autoestima, tolerância, consciência, saúde mental e senso de coletividade.

É possível tornar a Educação atraente para todos. E existem formas de fazê-lo. Existem formas de mudar a cara fabril e ultrapassada das escolas, existem campanhas, incentivos e vários recursos para fazer da educação algo desejado e prazeroso.

Vai acontecer? No Brasil, nem em um milhão de anos. Vai ter quem diga que não vai acontecer pois pessoas que recebem uma boa educação não votam em qualquer merda e os que estão no poder hoje querem garantir um exército de eleitores para si mesmos. Mas eu não engulo essa explicação: os que estão no poder hoje não são tão inteligentes para pensar tão grande e a longo prazo.

Me parece que a explicação é mais simples: educação é um projeto a longuíssimo prazo. Se começar hoje, você sente os resultados de forma efetiva, de forma significativa na sociedade, dentro de 50, 100 anos. Tem que dar tempo para a criança de hoje crescer, se formar, entrar no mercado de trabalho, prosperar, ter filhos e passar isso para os filhos, talvez por duas ou três gerações. Como demora, não tem visibilidade e, como não tem visibilidade, não dá voto. Muito mais jogo asfaltar a rua do cidadão.

Os maiores interessados em uma mudança educacional são aqueles que não tem acesso a uma boa educação e, em sua maioria, acabam sendo os menos conseguem compreender esta necessidade e atuar nesta causa. Então, é basicamente algo caro, difícil de executar e que poucas pessoas têm interesse. São poucas as chances de isso sair do papel.

E é uma pena, pois uma sociedade sem educação está fadada ao fracasso. Dê a eles o que quer que você possa imaginar de melhor: dinheiro, oportunidades, moradia, emprego… sem educação nada vai adiante. Ou vai, no mesmo esquema do filme Idiocracy, com gente bem-intencionada fazendo cagada por cima de cagada. E, pior: gente dependente de receber de cima o que quer que seja.

É como se eu te perguntasse o que é mais essencial para um jovem que vai ganhar um carro aos 18 anos de idade. Vai ter quem responda que é ganhar um carro seguro, vai ter quem responda que é ganhar um carro bonito, vai ter quem responda que é ganhar um carro veloz. Vai ter até quem responda que todos deveriam ganhar o mesmo carro.

Eu te respondo: o importante mesmo é que esse jovem seja ensinado a dirigir, aprenda todas as regras de segurança e tenha todas as informações que precisa, caso contrário, o melhor carro do mundo será inútil – ou até um perigo.

Educação é a única base possível. Informação é o bem mais valioso do mundo. Se eu não acreditasse muito nisso, muito mesmo, não estaria há quase 15 anos escrevendo um blog diário e gratuito, tentando apresentar algum conhecimento (ainda que muitas vezes inútil) de forma mais palatável e interessante.

Não tem outra resposta. Se não se construir algo usando educação como base, existem grandes chances de, o que quer que seja, acabar ruindo.

Para dizer que sim, eu sou romântica, para dizer que o problema mais importante do Brasil é o brasileiro ou ainda para dizer que tem que agradecer se professor não voltar a bater com régua na mão de aluno: sally@desfavor.com

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Comments (8)

  • Eu entendo o ponto de vista do Somir sobre a necessidade de uma distribuição de renda mais igualitária pra diminuir o terrível abismo de oportunidades que há entre as classes sociais no Brasil, mas ainda tendo mais a concordar com a Sally, e acredito que a educação é o que realmente poderia enfim tirar isto aqui do buraco algum dia. Dinheiro não será solução enquanto a maioria das pessoas nem sequer souber como administra-lo. O que não falta por aí é caso de gente que ganha na loteria num golpe de sorte e em pouco tempo volta à pobreza porque torra tudo irresponsavelmente. Uma boa educação, por outro lado, concede, dentre muitas outras coisas, até a capacidade de obter e gerir melhor o próprio dinheiro.

  • “Não tem outra resposta. Se não se construir algo usando educação como base, existem grandes chances de, o que quer que seja, acabar ruindo”.

    Não faltam exemplos históricos da aposta na educação: Japão no final do século XIX (para fazer frente à industrialização no século XIX, criaram um modelo de educação baseado nos EUA/Europa e recriaram esse modelo para sair do buraco do pós-guerra), Israel no século XX (judeus desde sempre, conhecem judeus MUITO pobres?), Coreia do Sul nos séculos XX e XXI (nos anos 50, estávamos empatados com eles), Alemanha (Século XVIII, o que permitiu ter uma indústria sintética de ponta, crucial para um país que chegou tarde na corrida colonial), e por aí vai…

    • A aposta na educação, em especial no contexto de sociedade industrial (que exige cada vez mais conhecimento para as oportunidades que se tornam cada vez mais exíguas) é bastante válida e a preocupação com a questão da “desigualdade” social também é interessante, mas o problema maior no Brasil é a questão da INSEGURANÇA JURÍDICA.

  • Vou com a Sally, apesar de não ter a mínima idéia de como isso poderia ser resolvido, porque essa é uma árvore em que até as raízes estão mortas, podres, e sendo devoradas por cupins. Da formulação de política pública até os professores que formam novos professores, está tudo alinhado para que as coisas continuem como estão.

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