Medo é parte integrante da vida, está codificado no nosso DNA como uma forma de proteção eficiente contra a extinção. Mas como praticamente tudo, o excesso é danoso. Sally e Somir discutem uma importante sutileza no processo. Os impopulares dão sua opinião sem medo.

Tema de hoje: o que é pior, o medo ou o medo do medo?

SOMIR

Eu vou de medo do medo. Talvez não seja um conceito tão claro para quem está lendo, então vou tentar explicar melhor: muitas vezes o que sentimos não é medo de uma coisa específica, mas medo de viver aquele medo. É a sua mente prevendo que a situação pode acabar mal e te fazendo desistir de uma ação, mesmo que o problema real não seja lá tão sério.

Muita gente sente isso com rejeição, por exemplo: o medo do que vai sentir se for rejeitado costuma ser pior do que realmente acontece. Mulheres são especialmente frágeis contra isso, por não terem casca de tomar fora no mesmo nível que homens. Só que normalmente elas podem passar pela vida só reagindo a tentativas masculinas de aproximação e ainda terem uma vida amorosa decente.

Tomar fora não é nada demais, muitas vezes nem tem nada a ver com você ser indesejável, a outra pessoa não estava aberta naquele momento. Ou mesmo que você tenha falhado na sua apresentação, sempre tem alguma coisa para melhorar na próxima. Na pior das hipóteses você aprende.

Racionalmente, faz sentido tentar se aproximar das pessoas que te interessam e lidar com a rejeição de forma construtiva. Uma das poucas coisas decentes que os gurus de conquista dizem é que a pessoa precisa treinar para ficar boa em flertes e aproximações com estranhos. Quanto mais foras você toma, mais fácil é lidar com isso e por sua vez, maiores as chances de você tentar de novo até conseguir.

Eu peguei esse caminho da conquista e até falei das mulheres terem menos casca com isso porque o medo do medo normalmente está conectado com um movimento bizarro do outro lado da cerca: os incels. Homem que por algum motivo se deixa vencer pelo medo do medo de rejeição não tem todo um outro sexo pronto para cobrir suas deficiências. E aí, temos esse grupo amargo de homens problemáticos.

Se você quer imaginar como o medo do medo é mais perigoso do que o medo em si, olhe para esse grupo de incels. Essa fobia de rejeição os deixa isolados e ressentidos do sexo oposto, com medo de tentar qualquer coisa que possa os confrontar com o medo de tomar um fora e se sentirem inadequados. Percebam que não é só uma camada de medo, são duas: ficam paralisados antes de tentarem qualquer contato com mulheres.

Não são pessoas que tomam um fora e saem completamente do mercado sexual, são pessoas que nem tentam direito. O homem tosco que tem medo do medo pode virar incel, o homem tosco que enfrenta o medo de rejeição normalmente leva muito sai pra lá, mas acaba conseguindo algum resultado. É estatisticamente improvável que alguém seja tão pouco atraente ao ponto de assustar todas as mulheres. Sim, tem mais problemas nesse mundo incel/redpill/mgtow, mas para os objetivos deste texto, esse é o foco. Gente com medo de sentir medo.

Com esse exemplo estabelecido, é claro que o medo do medo vai muito além de rejeição no campo amoroso. Toda vez que alguém começa a planejar seu futuro, pode cair na armadilha do medo do medo. Eu sei disso porque tenho o péssimo hábito de pensar demais no que vou fazer, e muitas vezes eu acabo me sabotando por prever coisas que podem dar errado e considerar que não vale o esforço. Oras, não faz sentido: as coisas podem dar errado, mas na cabeça de quem está vencido pelo medo do medo, vira uma previsão mágica. Se você imagina que pode dar errado, já começa a considerar o que vai ter que sofrer caso dê errado.

Isso é medo do medo. É dar um passo no futuro já considerando que as coisas vão dar errado e estabelecer todo seu estado mental ao redor do fracasso. O medo direto é ruim, claro, mas ele tem sua função evolutiva: é bom que você tenha mecanismos para reagir com força diante de um estímulo perigoso. Se você estiver com medo de algo que realmente pode acontecer, coragem e razão te ajudam muito.

Mas se você estiver com medo de sentir medo, o cérebro já entrou em parafuso, e é muito difícil sair dessa armadilha. O medo do medo não pode ser combatido facilmente, porque ele pega sua percepção da realidade e coloca no lugar errado, num futuro em que você está com medo. Primeiro que é muito mais provável que você tire forças de onde nem imagina que tem diante da dificuldade do que desabe, e segundo que confiança impacta muito no resultado de uma ação.

Se você faz algo acreditando que é uma boa opção, capricha mais, leva mais a sério, pede ajuda, faz diversas coisas que aumentam sua chance de sucesso. Se você faz com medo do medo, já começa sabotado, pensando no resultado ruim que pode vir e não está 100% na ação que precisa fazer.

Não estou dizendo para fechar o olho e ir em qualquer ideia que tiver, mas estou dizendo que o medo do medo é uma fabricação da mente, um erro de cálculo que não te faz olhar para sua próxima ação, e sim para como você vai se sentir assim que ela der errado. Péssimo começar qualquer projeto com a certeza do fracasso, não? Medo do medo é pior porque precisa de mais do que alguns hormônios da coragem ou desejo forte para ser vencido, ele precisa ser analisado e cortado pela raiz.

Algumas vezes até com terapia. Se você deixar o medo do medo tomar conta da sua vida, vai começar a ficar cada vez mais fechado, amargo e desanimado. A boa notícia é que pode ser corrigido, mas não adianta só ler livro de autoajuda, tem que olhar para dentro da cabeça e encarar medos e inseguranças que se esconderam atrás de um falso senso de racionalidade. Não é racionalidade: é um medo usando máscara.

Vencer o medo do medo é mais complicado, e pior, só pode ser vencido depois de detectado, o que muita gente nunca vai tentar fazer por ignorância. Existem medos escondidos na cabeça de todo mundo, tome muito cuidado para não achar que eles são seu bom-senso, porque eles não são.

Prefiro ter medo a medo do medo. A vida pelo menos segue em frente com medo simples.

Para me chamar de medroso, para dizer que tem medo da reação ao seu comentário, ou mesmo para dizer que é só chegar (pior que é): somir@desfavor.com

SALLY

O que é pior: o medo ou o medo do medo?

Medo é pior, por ser inegociável.

Medo é um mecanismo de sobrevivência primitivo que nos acompanha faz muito tempo. O homem das cavernas que sentiu algum receio ao ver uma moita se mexendo é o que viveu para passar adiante seus genes, desenvolvendo uma linhagem de seres que aprenderam a antever o pior e utilizar essa informação para assegurar sua sobrevivência.

O medo do medo é uma punhetação da nossa cabeça, uma construção humana, de caráter psicológico, que nos faz sentir medo de ter medo. Suas raízes não são tão profundas quanto as do medo puro, elas residem naquela pessoa, não naquela espécie, e podem ser contornadas com um pouco de autoconhecimento e terapia.

O grande problema do medo puro, aquele que vem de fábrica no ser humano, é a sociedade hiper estimulada, violenta e frenética na qual vivemos. Muitas vezes, ela faz disparar um alarme incontrolável com mais frequência do que seria necessário ou saudável. E, com isso, não temos apenas a sensação e mal-estar que o medo gera, como também todas as suas consequências bioquímicas no corpo.

Há uma descarga de hormônios do estresse e de outras substâncias que, em excesso e no longo prazo, funcionam como um veneno para o corpo. O que hoje é um susto que já passou, em dez anos acumulados pode ser um infarto, um AVC, uma depressão incapacitante.

O mais complicado é que, via de regra, não somos capazes de destravar o mecanismo do medo em nossas mentes. É preciso um grau de evolução espiritual, autoconhecimento e autocontrole abissal para sublimar o medo, algo que pouquíssimas pessoas no mundo têm. O que nos leva à conclusão de que o medo, apesar de tóxico, como regra, não pode ser evitado.

Ou seja, é preciso aprender a conviver com medo e dosá-lo, mesmo sendo incapaz de ver a olho nu quanto estrago ele causa. Como saber quando o medo está excessivo? Como saber quando o sentir medo está detonando o seu organismo? Não tem um medidor para isso e nunca nos foi ensinado. É realmente difícil.

Já o medo do medo pode ser completamente neutralizado. É uma questão individual da pessoa. Muita gente não tem medo do medo, ele não vem de fábrica. O medo do medo vem do overthinking, do pensar demais, do viver no mental, na matéria, no looping da própria mente. E isso você pode mudar.

Então, não importa qual dano o medo do medo provoque, só depende de você acabar com ele. Dá para viver sem medo do medo, mas não dá para viver sem medo. É muito mais fácil eliminar algo por completo (medo do medo) do que ser obrigado a conviver com aquilo tentando dosar a quantidade certa (medo).

Eu sempre sou partidária que, o que depende só de mim é “menos pior”, pois está ao meu alcance mudar. “Mas Sally, você acha que é fácil?”. Não, eu acho que é possível. Eu acho que existem recursos, como por exemplo, terapia. Não muda quem não quer levantar o cu da cadeira e fazer por onde.

Já eliminar o medo da sua vida, além de ser muito mais complicado, pode ser também contraproducente, uma vez que, se a pessoa não for muito, mas muito consciente, ela ainda precisa de alguma quantidade de medo para funcionar como proteção.

Poucas pessoas passariam ilesas pelo mundo se não tivessem receio de frequentar lugares perigosos, se expor a pessoa violentas e se submeter a outros riscos. Claro, o ideal é que não se faça por consciência, mas… é um longo caminho até chegar lá. Enquanto não se chega, o medo é o freio de emergência.

“Mas Sally, eu não me deixo paralisar, o medo não manda em mim, então não me provoca danos”. Não é esse o meu argumento. Mesmo que você siga adiante e faça o que quer que precise fazer com medo, os efeitos no seu corpo são os mesmos. Sentir medo envenena seu corpo, mesmo que você saiba que é um medo infundado e consiga agir apesar dele. É uma reação bioquímica que você não controla.

E a vida moderna ativa cada vez mais gatilhos de medo: desde a mídia, redes sociais e até a publicidade brincam com o seu medo diariamente, muitas vezes sem que você sequer perceba. E os efeitos disso estão acumulando no seu corpo e a gente só se dá conta quando um problema explode em decorrência.

Então, se você me pergunta o que é pior, eu te digo que é algo que eu não possa “controlar” e que seja usado contra mim todo santo dia, causando danos ao meu corpo. Medo do medo é ruim, mas só depende de mim fazê-lo desaparecer por completo e levar uma vida sem ele (e sem suas consequências negativas).

Eu sei que muita gente vai ficar chateada, mas… medo do medo é uma escolha. Não que seja uma escolha senti-lo, é uma escolha viver com ele, não fazendo nada para retirá-lo da sua vida. Existem recursos para se livrar de vez dele, então, ele não pode ser o pior entre os dois.

Não se compara uma punhetação da nossa cabeça a um mecanismo evolutivo aperfeiçoado por milhões de anos que agora parece estar falhando e jogando contra nós. Uma coisa é lutar contra sua própria cabeça, outra é lutar contra a natureza.

Manejar o medo, em sua versão original, inerente ao ser humano, é muito mais difícil do que manejar um bug da sua cabeça. Medo é item de fábrica, medo do medo é opcional.

Para dizer que nem compreende o que é “medo do medo”, para dizer que isso é falta de uma louça suja para lavar ou ainda para dizer que pior mesmo é o medo de dois homens em uma moto: sally@desfavor.com

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Comments (2)

  • Bravos!
    Só tem pessoas sem medo aqui. Ou cagoes, que sentem vergonha de assumir seus medos.
    O medo eh preservação da espécie, o medo do medo eh prevenção do que virá.
    Qualquer medo por si só, fragiliza.
    Meus piores medos: me tornar dependente para as minhas necessidades básicas, medo de perder a sanidade e meu cérebro virar paçoca, medo de viajar em alta velocidade.
    O medo mais mais eh o de ser enterrada viva.
    São medos reais, não são medinhos. Se eu encanar, nem durmo.
    Procuro não pensar nesse medos para seguir sempre em frente, como se eles nao existissem.

  • Pra mim, medo é pior. Porque é inato, primal e incontrolável, além de ser algo com que a maioria de nós não sabe como lidar e que, em casos extremos, pode ou atrasar nossas vidas ou acabar com nossa saúde.

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