Taiwan

De tempos em tempos surgem notícias sobre a China dando chiliques por causa de Taiwan se relacionando com outros países, especialmente os EUA. As ameaças de intervenção militar se repetem há décadas. Mas, por que tanto drama por uma ilha nem tão grande assim?

O local foi habitado originalmente por povos descendentes dos polinésios, como na maioria das ilhas do pacífico. Existem registros de atividade humana em Taiwan de mais de dez mil anos atrás. Com o desenvolvimento do império chinês da antiguidade, começaram as primeiras tentativas de colonização da ilha. Chineses e nativos conviveram por milhares de anos, quase sempre tecnicamente sob o controle chinês, mas sem muita pressão sobre os habitantes mais antigos.

A dinastia Qing, a última de todas, não se importava tanto assim com a região até que japoneses começaram a se interessar. Depois de uma invasão nipônica em 1874, que só terminou depois de um pagamento para tirar os colonizadores japoneses, a dinastia fez algum esforço para ocupar melhor o espaço. Foi aí que chegaram as primeiras obras de infraestrutura moderna e foram recrutados mais colonos chineses.

Mas, numa guerra basicamente sobre o domínio da Coreia (ainda era só uma) em 1895, os japoneses deram uma surra tão grande na dinastia Qing que não demorou muito para o poder ancestral perder força e popularidade, entregando Taiwan para os japoneses e culminando na Revolução de 1911, onde os chineses derrubaram mais de dois mil anos de monarquia e entraram para o mundo das repúblicas.

Taiwan foi província japonesa de 1895 a 1945, com o fim da Segunda Guerra Mundial. A mentalidade japonesa na época não era lá muito desenvolvimentista, como fizeram com a maioria de suas colônias, trataram o povo local como segunda classe e cometeram diversas atrocidades, entre elas a escravidão sexual de milhares de mulheres. Mas durante aquele tempo, a China não tinha força para discutir nada com o Japão, que era uma potência militar naval praticamente sem paralelos no mundo.

E é claro, duas guerras mundiais fizeram com que mais ninguém se preocupasse com uma ilha perdida na costa chinesas. Isso é, não em outro sentido que não fosse exploração imediata e utilização como base militar. Com a rendição japonesa em 1945 e a ajuda dos americanos, a República da China tomou de volta a região e expulsou centenas de milhares de japoneses que já haviam se instalado por lá.

E percebam que eu disse República da China. Tecnicamente, esse é o nome de Taiwan, e até 1971, o nome oficial da China. Mas vamos explicar isso melhor:

Em 1937, os japoneses fizeram o que muitos chamam de verdadeiro primeiro movimento da Segunda Guerra Mundial: uma invasão brutal do território continental chinês. Nessa época já eram donos de Taiwan, entraram pela Manchúria, no norte chinês, e tomaram várias cidades costeiras. Como eu já disse antes, uma das piores coisas que poderia acontecer com um país no começo do século XX era ser invadido pelo Japão. Todos os crimes humanitários possíveis e imaginários foram cometidos contra os chineses (não é à toa que historicamente quase todo mundo odeia o Japão na Ásia).

O sucesso inicial das tropas japonesas foi inegável, tomando muito território da recém-criada república chinesa. Mas se tem um recurso que os chineses sempre tiveram era gente: mesmo com um exército parado no tempo, tinham volume suficiente para segurar os japoneses mais ou menos onde já tinham invadido. As potências ocidentais viram a invasão japonesa e disseram que era para parar senão mamãe ficava triste… tudo parecia perdido para os chineses, que provavelmente teriam que negociar a paz perdendo muito território, e justamente as partes mais ricas do país.

Ao mesmo tempo, no caos da invasão, um grupo de guerrilheiros comunistas começou a ganhar corpo no interior da nação. O plano original do grupo que continha um jovem idealista chamado Mao Tsé-Tung era instaurar uma revolução comunista nos modelos soviéticos, sob repressão severa da República, mas o Japão estava no meio do caminho também.

Muito a contragosto, a República da China tolerou a cada vez maior tropa comunista como aliada na guerra. A situação ainda não era de otimismo, mas os japoneses resolvem atacar Pearl Harbour no Havaí. Os americanos entraram na guerra, e apesar de tomar umas belas de umas pancadas no começo, logo mostraram que o Japão tinha mexido num vespeiro (eventualmente vespeiro nuclear).

A falta de foco e a ajuda que começava a finalmente vir dos aliados impediu avanços maiores dos japoneses. O líder da República da China, Chiang Kai-shek e o agora líder dos comunistas Mao Tsé-Tung, lutaram contra o mesmo adversário estrangeiro, mas com quase ou nenhuma esperança de entrarem em acordo assim que o perigo estivesse eliminado. Tanto que não entraram.

Depois que o Japão devolveu todo o território ocupado (incluindo Taiwan), a guerra civil entre a República da China e os comunistas voltou com força. Os americanos tentaram mediar algum tipo de paz, mas não havia convencimento para as duas partes. Lutariam até o fim. E o fim chegou em 1949, quando Chiang Kai-shek e boa parte de seu exército fugiram para Taiwan depois de vitórias decisivas dos comunistas.

A República da China não foi fundada em Taiwan, ela ficou isolada por lá. Tanto que até hoje, em tese, Taiwan diz que é a China de verdade e a parte rebelde está no continente. Mao dominou o continente com seu Partido Comunista, se proclamando como verdadeira China. Mas, como vocês podem imaginar, logo depois da Segunda Guerra Mundial, ninguém no mundo ocidental estava interessado em reconhecer mais países comunistas.

Tanto que até 1971, para quase todos os países não-comunistas do mundo, a China de verdade estava em Taiwan, o governo de Mao não tinha suporte nem da ONU. E não é que os países reconheceram a validade do partido comunista, é que se for olhar pelo ângulo comercial, a ilha não tinha impacto nenhum em comparação com a parte continental. Praticamente todos os países do mundo viraram a casaca e começaram a reconhecer a China como a parte comunista. Hoje, só o Paraguai, alguns outros países minúsculos além do Vaticano reconhecem Taiwan como verdadeira China. Literalmente reconhecimento internacional do Paraguai.

Porém, com o esperto uso de “tecnicamente eu não reconheci como país, mas também não disse que não era”, os EUA mantiveram fortes relações com a ilha, ajudando muito financeiramente e militarmente. A China comunista nunca teve muita chance de tomar a ilha, primeiro porque não tinha capacidade de projeção militar (precisa de muitos navios e aviões para invadir uma ilha), depois porque nem estavam muito preocupados com isso (achavam que iam pegar de volta na paz como fizeram com Macau e Hong-Kong), e hoje em dia porque ainda existe um risco grande dos EUA realmente cumprirem a promessa de defender Taiwan em caso de agressão chinesa.

E francamente, até algumas décadas atrás, Taiwan nem tinha muita utilidade para a China. Era até melhor que as pessoas esquecessem que a ilha existia, afinal, ainda estavam sob controle do seu adversário da guerra civil. E tinha outra pedra no sapato: Taiwan vivia sob lei marcial, numa ditadura repressiva e violenta, paranoicos com qualquer possibilidade do povo querer se unificar com os comunistas. Era uma ditadura tão violenta que era complicado demonstrar simpatia por eles. Os chineses achavam que era só esperar…

Mas o povo de Taiwan conseguiu uma bela vitória: democracia. Com a liberdade restaurada e a imagem melhorada em relação ao mundo ocidental, a ilha desenvolveu uma indústria que faria com que nunca mais se esquecessem dela: a de semicondutores. Os processadores e chips que vão em máquinas de todos os tipos no mundo. Hora certa, lugar certo, tecnologia certa.

Hoje, Taiwan é a sede da TSMC, a maior produtora de chips de alta complexidade do mundo, que só de valor de mercado responde por 90% do PIB da ilha. O país tem foco nas indústrias de alta tecnologia, tem a confiança dos EUA para utilizar tecnologias patenteadas por empresas americanas e curiosamente, estar do lado da China “comunista” é uma excelente vantagem logística. Taiwan pode quebrar uma boa parte da economia mundial se parar de produzir esses chips. Viram o que aconteceu com os carros quando Taiwan ficou um pouco apertados para dar conta da demanda de chips? Imagine isso em escala generalizada.

A China sabe do valor imensurável da ilha e sua indústria de ponta, e sabe também que a pior coisa que pode fazer é bombardear o lugar e quebrar quase todo o mercado de eletrônicos do mundo. Durante os anos 90, a República da China e o Partido Comunista Chinês ensaiaram um namoro, com políticos dos dois lados considerando a reunificação.

Mas, especialmente para Taiwan, a conta não ia fechar. São muitos investimentos estrangeiros e muita dependência de patentes (como as dos chips, que são americanas) que ninguém vai deixar ficar na mão do governo chinês. O mundo todo parece preferir que o impasse entre as duas Chinas se mantenha, porque não chacoalha demais o barco.

Se os chineses quiserem tomar a ilha à força, o problema vai ser dos maiores: só do ponto de vista psicológico já dá errado. Cada vez mais a população local se enxerga como taiwanesa do que chinesa. O país tem sua identidade própria e não vai ser anexado facilmente à cultura vigente no continente. Imagine Hong Kong, mas do tamanho de um país europeu! O povo lá não é uma minoria invisível que nem os muçulmanos que os chineses torturam, é gente altamente integrada ao mundo moderno, e cujo trabalho impacta a economia em escala global. Vai no mínimo gerar muita rebeldia interna e muita gritaria externa.

Eu já falei sobre o impacto econômico: Taiwan se mantém segura porque é muito importante para a cadeia produtiva da globalização, até mesmo a China tem a perder se não tomar a ilha pacificamente. São décadas até outros países sonharem em ter a capacidade produtiva de chips que Taiwan tem agora.

E por fim, tem o aspecto militar. Por mais que não seja tão grande, são mais de 20 milhões de pessoas vivendo ali, uma das áreas mais densamente povoadas do planeta. E com décadas e décadas de negócios militares com americanos e europeus. O exército de Taiwan é bem treinado e tem tecnologias modernas à disposição. Tem um porém geográfico: é uma ilha. É muito difícil invadir ilhas no meio do oceano. Hitler só não tomou a Europa sem chance de retorno porque a Inglaterra era uma ilha.

Ninguém nesse mundo pode dizer que se daria bem contra uma invasão da China moderna, mas podem ter certeza de que custaria caríssimo. A China não tem experiência militar com tecnologia moderna, eles mentem muito sobre suas inovações tecnológicas e a visão prevalente do povão chinês é que Taiwan é um país irmão, que só foi morar longe, mas logo logo vai voltar. Não existe raiva do chinês médio, só putez do Partido Comunista, por motivos históricos e agora por motivos econômicos.

A posição da China comunista é muito complicada. Mas, como sou gato escaldado de um texto sobre a imensa burrice que seria invadir a Ucrânia (como de fato foi, mas eu previ errado que não seriam burros), não tiro da mesa essa carta de invasão. Seria um problema dez vezes pior que o da Rússia e Ucrânia, tanto na dificuldade de invadir e tomar o território quanto nas repercussões negativas ao redor do mundo. Se os EUA resolverem defender então… ainda mais com o presidente que temos agora e o lado que eu acho que ele escolheria, eu torço para que a China não cometa essa imbecilidade.

O mais lógico é que Taiwan se torne independente, porque a China continental não é da República da China há quase um século. Os dois estão errados em se declararem o mesmo país. Taiwan não vai declarar independência porque aí obrigaria todo mundo a tomar lado e daria uma razão para a invasão. Eles estão onde estão até hoje pela ambiguidade. E se tudo der certo, vai continuar confuso por muitos e muitos anos, provavelmente até a China continental virar uma democracia também.

O que… pode demorar.

Para dizer que eu fui pago pelos americanos, para dizer que eu fui pago pelos chineses, ou mesmo para dizer que desde que seus celulares continuem chegando está tudo bem: somir@desfavor.com

Se você encontrou algum erro na postagem, selecione o pedaço e digite Ctrl+Enter para nos avisar.

Etiquetas: , , , ,

Comments (10)

  • China virar uma democracia? Difícil. A história mostra que as pessoas não se importam de viver numa ditadura, desde que tenham emprego, sensação de segurança e poder de compra. China vai quebrar? Ouço isso há anos. Realidade: A indústria gera empregos e dinheiro pro país, porque produtos industrializados sempre terão demanda, até em tempos de crises. Não é como turismo e hotelaria, por exemplo. As empresas topam retornar suas fábricas pros seus países de origem e empregar nativos com as leis e os salários adequados? Ha!

    • A questão aqui é que existe uma tendência de aumento de salários e de níveis de educação em qualquer país que recebe tanto dinheiro quanto a China. Eu não sou da turma que diz que vai quebrar, mas acredito que o modelo chinês é insustentável no longo prazo: ou cai porque a população vai começar a exigir mais (o número de protestos aumenta todo ano por lá), ou cai porque a mecanização vai começar a bater o tipo de mão de obra chinesa em custos. A tendência é que a China, se ficar unida, acabe numa democracia eventualmente. Mas como estava no texto, não acho que seja tão cedo.

  • Somir, por favor me perdoe pela “pasqualice”, mas eu acho que há um equívoco nesta frase: “Todos os crimes humanitários possíveis e imaginários foram cometidos contra os chineses (não é à toa que historicamente quase todo mundo odeia o Japão na Ásia)”. Creio que a palavra correta aí nesse caso seria “imagináveis”. Porque “imanginário” se refere àquilo que é quimérico ou idealizado e que existe apenas no mundo da imaginação, sem qualquer relação com a realidade; enquanto que “imaginável” é tudo o que é passível de ser imaginado (visualizado mentalmente), ainda que se trate de eventos que ou não testemunhamos ou sobre os quais não tenhamos plena certeza se de fato ocorreram, embora, pelas circunstâncias, seja possível presumir que sim.

    • Na verdade é uma expressão usada desse jeito meio errado mesmo. Eu tenho por hábito usar desse jeito, mas sim, concordo que seria mais correto usar imaginável.

  • Somir, uma coisa que você não falou é sobre uma fase recente no desenvolvimento de Taiwan durante a qual parecia que praticamente tudo o que se vendia no Paraguai era fabricado nessa ilhota do Pacífico. Eu lembro bem que, nas décadas de 80 e 90, era muito comum a minha família e os meus conhecidos comprarem vários cacarecos no lado de lá da Ponte da Amizade em cujas embalagens vinha sempre escrito “MADE IN TAIWAN”.

    • Taiwan testou o modelo xing-ling de eletrônicos baratos para os chineses. Eles queriam desenvolver a economia com algo que não precisasse de muitas terras, apostaram nisso. Hoje eles estão num nível mais avançado de tecnologia e os chineses do continente aproveitaram para copiar o modelo na hora de expandir a economia para o mundo.

  • Então, Somir, a situação atual desse ainda não resolvido entrevero entre Taiwan e a China pode ser resumida naquela velha frase conformista que diz que “o que não tem remédio, remediado está”. Acertei? Pelo que eu li, os dois países – e o resto do mundo – estão em um mato sem cachorro. Não importa o ângulo pelo qual se olhe essa questão, não há uma solução fácil. Está tudo tão complicado por aquelas bandas que, qualquer coisa que se tente fazer, por qualquer um dos lados, teria consequências graves, imprevisíveis e de escala global.

    • Sim, a China não quer ceder o território porque nenhum país do mundo cede território, Taiwan não quer entrar na cleptocracia do partido comunista, os EUA não querem ficar sem os chips por enquanto… faz mais sentido não começar uma guerra e deixar isso se arrastando. É o mais provável. Não quer dizer que seja impossível ter uma invasão, mas seria burrice das mais elevadas.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: