Hipocrisia submersa.

SALLY

“Parece que os planos do submarino foram por água abaixo, não é mesmo? Queriam conhecer o Titanic, mas acabaram conhecendo os passageiros também!”

Releiam o parágrafo acima.
Releram?

Agora comparem com o parágrafo abaixo:

“Tem mais é que morrer mesmo. Tomara que morram. Morreu bilionário? Gostoso demais! Não consigo conter a minha felicidade.”

Se você tem cérebro, você percebe que são duas categorias diferentes. O primeiro parágrafo é uma piada, ainda que de péssimo gosto. O segundo parágrafo é desejar a morte de um grupo de pessoas por sua condição financeira. E hoje queremos falar sobre ambos.

Para fins didáticos (pois ultimamente andam confundindo muito o primeiro parágrafo com o segundo) vou escrever este texto bem setorizado PIADA x COMEMORAÇÃO

PIADA

Se você é do tipo de pessoa que faz piada com tudo e permite que se faça piada com tudo (mesmo com o que é querido para você), é coerente fazer piada sobre a morte dessas pessoas.

Porém se você patrulha o humor, acredita que devem existir limites, taca pedra no Leo Lins por seu humor negro, reclama de piadas com determinados grupos, por coerência, não é adequado fazer piada com a morte de pessoas.

Não é concebível aceitar piadas pesadas apenas quando elas convergem para uma militância: não pode fazer piada pejorativa com homossexuais, mas pode ridicularizar “Carluxo por dar o cu”. Não pode rir de morte dizendo “CPF cancelado!” mas pode comemorar morte de outro grupo que te desperta antipatia, como bilionários, brancos, hetero ou o que mais se escolher.

Se portar dessa forma seletiva não é ser do bem nem colocar limites no humor, é querer calar, atacar e neutralizar quem pensa diferente de você. A pessoa não é contra o “humor que machuca”, ela é contra o humor que ela entende machucar sua panelinha.

Então, repito: nada contra piadas com qualquer assunto, até mesmo com a morte horrível dessas cinco pessoas, desde que você permita que se faça morte com a piada de qualquer um. Aceito de bom grado quem é totalmente a favor ou totalmente contra. O que me parece estranho é quem é favor só em casos que não lhe incomodam e contra em casos que incomodam.

Longe de mim querer determinado de que lado desse muro você tem que ficar, escolha você o que achar melhor, mas faça uma escolha digna e coerente: ou pode piada polêmica com todo mundo, ou não pode com ninguém. Se você acha inaceitável piada com outros grupos, não abra a boca para fazer piada com o submarino.

“Mas Sally, eles foram burros”. Foram sim. Assim como você e eu também formos burros um monte de vezes na nossa vida, mas, felizmente, não acabamos mortos. Ser burro não avaliza fazer piada de humor negro se você condena piada de humor negro. E garanto que em algum momento da sua vida você já foi burro o bastante para colocar sua vida em risco, mesmo que só tenha percebido isso muito tempo depois.

Pode fazer piada de humor negro com todo mundo ou não pode com ninguém. Decidam e sejam coerentes com sua decisão.

COMEMORAÇÃO

Aqui vale a mesma premissa da piada: se você acha ok que se comemore a morte de pessoas que por algum motivo te desagradam, fique à vontade para comemorar a morte destas cinco pessoas. Me sinto na obrigação de te advertir que pode ser crime, então, melhor fazê-lo no conforto do seu lar, apenas.

Mas, caso seja essa sua escolha, tem que valer para todo mundo, por questão de coerência. Se você acha que tem o direito de comemorar a morte de algum grupo que não gosta, os outros tem que ter o direito de comemorarem a morte de algum grupo que eles não gostem, afinal, um mundo onde só pode fazer o que você acha certo. E, novamente, temos que manter em mente o limite imposto pela lei.

Se você, por uma crença na escassez da sua cabeça, acredita erroneamente que não é possível que todos tenham muito, que para que alguns tenham muito outros precisam ter pouco e coloca bilionário como vilão e responsável pela pobreza e demais mazelas do mundo, precisa entender que, assim como você criou esse raciocínio/conclusão (errado, diga-se de passagem), também é direito dos outros criarem raciocínios obtusos e culparem outros grupos de acordo com suas crenças. Tem certeza que quer viver em um mundo assim? Vai ficar bem insalubre, viu?

Se você, em nome das suas crenças, militância ou demonstração de virtude escolhe demonizar seres humanos pelo simples fato deles terem dinheiro, não pode condenar quem escolhe demonizar seres humanos com base em um único aspecto sem sequer conhecê-los. E eu te garanto que você não vai gostar das teorias que vai ouvir.

“Mas eu estou certo, bilionário é filho da puta e não deveria existir”. O mesmo pensa quem demoniza outros grupos por um único aspecto. Todo mundo tem a certeza de que está certo e que o grupo é responsável por coisas horríveis. Spoiler: com sorte, a maturidade te faz ver a vida de forma um pouco mais complexa e você percebe que não adianta culpar fora.

Então, se você comemorou a morte dessas pessoas, não pode recriminar, questionar ou se indignar com quem comemora a morte de outros grupos, ainda que sejam grupos que te despertem simpatia, ainda que a teoria que embasa essa comemoração seja ridiculamente errada.

“Mas Sally o próprio enteado do falecido estava em festa celebrando”. Meu anjo, se a família do sujeito é um lixo, problema deles. Isso não avaliza nada. Se você vê um pai estuprando uma filha, você vai lá e estupra também pois “o próprio pai estava estuprando”? Vamos pensar antes de falar, por gentileza.

Novamente, não quero te obrigar a ficar nem de um lado, nem de outro, apenas a um comportamento coerente: se pode comemorar a morte de pessoas que você nem conhece por se tratar de um grupo que você considera nocivo, todo mundo tem que ter o direito de comemorar a morte de pessoas de grupos que considerem nocivos e, acredite, provavelmente você não vai gostar quando isso acontecer. Não acho saudável abrir essa porta. Não mesmo.

Então, mais uma vez: ou todo mundo pode, ou ninguém pode. Quando só você pode, pois sua opinião é referência mundial de correção, virtude e razão, tem algo de muito errado implodindo dentro da sua cabecinha. Por gentileza, não vamos abrir essa porta. Vamos convencionar que não se celebra a morte de grupo nenhum. Vamos ter uma gotinha de humanidade.

“Sou obrigado a ter empatia?”. Não, não é. Não fale nada. Não se solidarize. Não preste homenagem. Não comemorar a morte de um grupo que você nem conhecia com base em uma característica dele passa longe de ser empatia, é apenas ser uma pessoa civilizada.

Sendo bem sincera aqui, eu nem sequer acredito que esse tanto de gente comemorando esteja comemorando de verdade. Acho que é mais uma forma escrota de desfilar virtude: “olha como eu sou consciente e a favor dos oprimidos, eu comemoro morte de bilionário”. Mesmo assim, péssimo. Abre uma porta péssima.

E eu também acho que uma pessoa com essa mentalidade já se autopuniu apenas por tê-la, se condenando a uma vida de escassez (em diversos aspectos), pois se ela projeta culpa em abundância, então, ela vai, ainda que inconscientemente, minar qualquer chance de abundância na vida.

E, vale lembrar que o vilão que você projeta no outro também pode ser projetado em você. Em um país como o Brasil, você pode ser considerado um rico filho da puta por uma pessoa miserável que não tem nada. Você pode ser considerado uma pessoa que tem mais do que precisa e, portando, um vilão que merece morrer. Karma is a bitch. Repito: não abram essa porta.

Por fim, gostaria de chamar a atenção para um ponto que não está sendo devidamente divulgado: a raiz da tragédia.

O CEO da OceanGate, Stockton Rush, que faleceu no evento, sempre fazia questão de dizer que não contratava homens brancos experiente de 50 anos pois eles não eram “inspiradores”. Inclusive, quando um homem branco não inspirador que era seu funcionário lhe disse que o submarino não aguentaria, ele o demitiu.

Então, acho que quem critica bilionário idiota por ter entrado em uma lata de sardinha guiada por um controle de videogame deveria também criticar o CEO por ser idiota de colocar inspiração na frente de segurança.

Não contratar alguém pela cor de pele… isso tem um nome, não tem não? Pois é, foi o que eu pensei.

Para dizer que eu tenho pena de bilionário (na real, eu tenho pena de você por essa mentalidade), para dizer que queria que nós estivéssemos no submarino ou ainda para dizer que não era um submarino era um submersível (irrelevante para o texto): sally@desfavor.com

SOMIR

Sally escreveu mais do que o combinado e eu só a repetiria com outras palavras o que ela disse. Só assino embaixo hoje: não somos contra as piadas, é claro; mas se você tiver essa mentalidade estúpida de querer prender pessoas por piadas que não gosta, cale a boca e seja coerente com o que prega, seu cretino(a).

Mais tarde eu vou publicar uma atualização sobre a situação russa num plantão. Faça como o Putin e aguarde ansiosamente!