Vida difícil.
O tema da semana, a implosão catastrófica do submersível Titan com seus cinco passageiros no Atlântico Norte, me fez pensar em… vida alienígena. Amanhã tem nossa análise de verdade sobre o tema, hoje é só mais um dos meus textos nerds. Já pensou como é difícil desenvolver vida inteligente, ou mesmo sequer vida básica na imensa maioria do universo?
Nós vivemos num planeta, que até que se prove o contrário, foi o único que entregou as condições necessárias para o desenvolvimento de uma espécie do grau de complexidade da humana. E mesmo assim, não em qualquer lugar. Quase 70% da superfície da Terra está debaixo d’água. E do restante, temos muito do espaço coberto por desertos, montanhas e até mesmo florestas que impedem avanços importantes na transição entre vida comum e vida inteligente.
O ser humano é muito adaptável e cheio de recursos para domar as dificuldades da natureza, mas existe uma diferença muito pronunciada entre locais onde um ser humano pode viver e locais onde o ser humano pode se desenvolver plenamente. Sim, tem gente vivendo na Antártida, mas dependem de uma megaestrutura logística que precisa importar quase tudo que não seja ar e água. Sim, tem gente vivendo no meio de desertos e no meio de florestas tropicais, mas não estão desenvolvendo grandes indústrias por conta própria, né?
Presença de vida num local não significa que todo o pacote de evolução tecnológica humana está disponível por lá. A verdade é que precisamos de condições bem especiais mesmo aqui no planeta “feito pra gente” para conseguir dar o passo além de mera subsistência em direção ao que consideramos uma sociedade moderna.
Mesmo que uma forma de primata com polegares opositores tivesse se desenvolvido nos oceanos, (afinal, outros mamíferos como baleias e golfinhos deram seu jeito) ainda estariam presos numa etapa muito anterior à nossa aqui em terra firme. Debaixo d’água temos muita pressão, pouco calor, resistência enorme a qualquer movimento e o pior de tudo: impossibilidade de usar o fogo.
O ser humano está muito fora do seu elemento quando se aproxima do fundo do oceano. Tanto que qualquer falha pode fazer seu submersível implodir e transformar tudo dentro dele em geleia. Não é o nosso lugar, e não estou falando naquele sentido besta de que o humano não deve explorar o planeta e o universo, e sim da obviedade que não fomos feitos para esses ambientes extremos.
Muita pressão e o ser humano morre. Muito frio e o ser humano morre. Pouca pressão e o ser humano morre. Muito calor e o ser humano morre. Tem uma faixa de conforto relativamente pequena para a nossa espécie, uma porcentagem limitada de território onde tudo funciona mais ou menos como esperamos que funcione. E mais limitada ainda se você quiser desenvolver uma sociedade pós-industrial.
E isso vai além de condições de sobrevivência, é sobre espaço disponível e facilidade de domar o ambiente. Florestas tropicais são paraísos de diversidade da vida, lugares como a Amazônia permitem milhões de espécies ao mesmo tempo. Mas mesmo considerando que o ser humano está na América do Sul muito antes dela ter esse nome, não foram nas regiões de vegetação mais densa que surgiram grandes impérios.
Existe uma dificuldade natural de desenvolvimento de grandes cidades, indústrias e até mesmo agricultura em locais assim. É muita árvore, raiz, planta, bicho, água… não é à toa que ainda temos tribos vivendo como vivam milhares de anos atrás nessas regiões de mata tropical fechada: não é preguiça nem burrice, é o ambiente. Em 2023 ainda derrubamos só uma pequena parte da floresta, imagina só sem desenvolver tecnologias avançadas?
Os locais aonde vimos mais avanços culturais e tecnológicos no mundo são justamente os que tem a combinação mais eficiente de espaço e recursos. Na Mesopotâmia, nas margens do Mediterrâneo, ao redor dos grandes rios na China… são esses ambientes que permitem o salto evolutivo da agricultura e da especialização, que nos tira de vidas nômades para criar cidades e reinos. Tem que ter espaço para plantar, tem que ter recursos naturais facilmente exploráveis, tem que ser possível enxergar mais que um palmo diante de si.
Não à toa, tem uma faixa mais ou menos previsível de onde estão as nações mais ricas do mundo: nem muito quente, nem muito frio, nem muito alto, nem muito baixo, nem muito desértico, nem muita floresta. E basicamente toda a humanidade vive perto da costa ou perto de rios. Isso me faz pensar sobre possível vida alienígena.
É bem possível que vida seja comum no universo, comum, é claro, em escalas universais. Considerando o tamanho que as coisas realmente têm, se tiver mais uma bactéria vivendo em algum planeta dentro da Via Láctea, já quer dizer que vida é comum: duas numa galáxia entre centenas de bilhões de galáxias? Vida seria que nem mato no universo.
Mas, se você for fazer a conta entre quantas espécies de vida no planeta Terra subiram para o nosso nível em relação à quantidade de espécies de vida que existem ou existiram só aqui na Terra… bom, vida inteligente é uma chance em centenas de bilhões. E depois que a vida fica inteligente, ainda tem todo o problema de ter um ambiente confortável o suficiente para deixar de viver como índio no meio da Amazônia e começar e produzir smartphones em escala industrial.
Quase todas as combinações de temperatura, pressão e composição química disponíveis no universo são extremamente contrárias ao desenvolvimento de uma sociedade como a humana do século XXI. Mesmo que seja fácil desenvolver formas de vida, temos a prova aqui mesmo na nossa rocha flutuante que dar os próximos passos é praticamente impossível.
Salvo a possibilidade do universo ser realmente infinito, é completamente razoável esperar que só a humanidade chegou no nível de… humanidade até hoje. Se formos pensar no volume do planeta Terra, menos de 1% dele não nos mata na hora. Vivemos numa casca muito fina, em menos de um terço do espaço disponível nela, e só algumas partes desse espaço são condutivas ao desenvolvimento tecnológico que precisamos para chegar até aqui.
Eu não sei quantos zeros depois da vírgula que são necessários para dizer a chance de termos um mundo tecnológico como temos agora, mas com certeza são muitos. Deve ser mais fácil ganhar na megasena acumulada duas vezes seguidas do que desenvolver qualquer forma de vida no universo, e você precisa ganhar mais umas duas vezes seguidas para chegar no ponto onde estamos agora com a humanidade.
Quase tudo nesse universo é mortal para a gente, e quase tudo o que não é ainda sim é impedimento sério para desenvolvimento tecnológico. O ser humano é resistente e adaptável em termos… talvez em comparação com o urso panda. Porque na prática, qualquer alteração de 1% nas condições naturais que nos cercam agora pode causar problemas sérios para a manutenção da vida inteligente no planeta.
Se você afundar por mais de 50 metros no oceano, a chance de sobrevivência já começa a ficar muito pequena. Se você subir mais do que uns 4 quilômetros montanha acima, a chance de morrer de frio ou por falta de oxigênio já fica muito alta. A nossa tecnologia que nos permite enfrentar alguns desses desafios, e essa tecnologia precisou ser desenvolvida nos oásis de conforto para a nossa espécie no planeta.
O ser humano sobrevaloriza sua capacidade de adaptação, ela é naturalmente pequena, e só parece maior agora por causa de avanços dependentes de condições melhores em outros lugares. Na prática, somos meros convidados em quase todos os cantos do universo, sem nenhuma capacidade de sobrevivência natural.
E eu acho importante relembrar dessa ilusão de poder de tempos em tempos, não porque sou contra exploração e maluquices tecnológicas, mas porque entender como somos minúsculos e frágeis é essencial para tomarmos boas decisões. Não é sobre desistência ou medo, é sobre se preparar para as dificuldades e planejar o futuro de acordo.
Reconhecer que é fraco é o primeiro passo para se tornar mais forte. A vida é difícil, a vida inteligente é exponencialmente mais difícil. Nem eu nem você conhecemos todos os problemas nem a forma de resolvê-los. Até pouquíssimo tempo atrás, a natureza entregou tudo de bandeja para a gente. Os próximos passos não vão ser fáceis, nem um pouco.
Menos macaquice, mais tecnologia. A gente está passando só com a nota de corte há centenas de milhares de anos. Até quando a sorte vai continuar?
Para dizer que não sabe para onde o texto foi (nem eu), para dizer que só está respeitando a natureza com sua preguiça, ou mesmo para dizer que não se mexe em time que está ganhando (estamos ganhando?): somir@desfavor.com
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Etiquetas: humanidade, Paradoxo de Fermi, vida
W.O.J.
Ainda que fosse em outro contexto, Freud disse uma vez “O Homem já não é o senhor dentro de sua própria casa”. E, a julgar pela sua postagem de hoje, Somir, nunca realmente foi e talvez jamais chegue a ser. Se há uma lição que a História sempre nos repete é que, invariável e inevitavelmente, todo “império” um dia acaba. E, pelo que nós temos visto, será que esta Era em que a raça humana “impera” na Terra estaria com os dias contados? Parece não haver mais como e nem para onde a Humanidade “expandir” no planeta em que vive, a tecnologia para se estabelecer colônias pelo cosmos ainda é apenas ficção científica e a própria existência de outros mundos habitáveis e outras formas de vida inteligente na imensidão do Universo é uma possibilidade remotíssima.
UABO
A vida humana na Terra é como o papel higiênico no banheiro: nem todos têm acesso a um(a) de boa qualidade, pode acbar quando menos se espera e, quando a gente se dá conta, a cagada já está feita…
Anônimo
Vejo a lista de países mais populosos do mundo e tenho minhas dúvidas sobre essa teoria da evolução infinita da humanidade. Boa sorte convertendo milhões de paquistaneses, bangladenses e nigerianos a adotar ideais de igualdade de gênero, tolerância com outras etnias, democracia, secularismo, direitos trabalhistas…
Anônimo
“O ser humano é resistente e adaptável em termos… talvez em comparação com o urso panda.”
A vontade de procriar é parecida, pelo menos.
Acredito que o próximo passo vai ser edição genética. Fazer as próximas gerações nascerem mais resistentes, não apenas construir armaduras, bunkers e coisas do tipo. Vai saber até quando vai ter recursos pra produzir essas coisas.
Ge
Já deveríamos estar nesse patamar, não fosse toda a questão ética envolvida nisso, que perpassa invariavelmente por julgamentos morais, crenças subjetivas etc etc etc… É o tal do “o ser humano ainda não está preparado para esta conversa…”
Anônimo
Na prática, isso meio que já é feito. Casais com condições financeiras podem fazer análise genética dos seus embriões gerados em laboratório, e descartar embriões com possibilidade de desenvolverem doenças, homens doadores passam por vários exames nos bancos de esperma… Só falta a humanidade deixar de hipocrisia e assumir.
Torpe
Uma coisa que achei interessante em Gataca é que, invariavelmente, uma manipulação genética para gerar a melhor combinação possível seria oneroso e aumentaria ainda mais a disparidade socioeconômica (vide que os trabalhos mais bem pagos acabam indo a quem tem pais com mais grana pra maior manipulação).
A trama central eu achei meio “meh”, mas a idéia do universo achei fantástica.
UABO
Esse negócio de “edição genética”, pra mim, tem é um pezinho na eugenia…