Gênios passados.

Espero que vocês nunca tenham ouvido falar, mas existe uma quantidade razoável de pessoas que defendem a teoria dos alienígenas do passado. Tem até um programa famoso no History Channel sobre isso. Resumindo a ideia: algumas das construções, esculturas e material cultural de civilizações passadas encontradas por arqueólogos parecem “avançadas demais” para povos tão antigos. Por isso, os defensores dessa teoria dizem que provavelmente alienígenas visitaram a Terra milhares de anos atrás e ensinaram nossos antepassados a fazer o que fizeram.

E é claro que isso é uma grande bobagem.

Não tem nada na história humana conhecida que sugira ideias, tecnologias ou mesmo construções “impossíveis”. O que tem, e muito, é uma mania de achar que as pessoas de milhares de anos atrás não eram inteligentes. E indo um pouco mais fundo, uma mania bem eurocêntrica, para falar a verdade. Quase não temos “teorias alienígenas” sobre as criações gregas ou romanas, mas quando se mencionam africanos como os egípcios, povos do Oriente Médio ou americanos originários, a verdade está lá fora? Tem coisa aí, é claro.

Mas vamos ser mais práticos: o povo dessas teorias conspiratórias adora mencionar as pirâmides egípcias como obras absurdamente complexas. E eles estão certos: são absurdamente complexas. Pedras enormes vindas de muito longe, empilhadas naquela altura? Alinhamentos com estrelas, câmaras internas… e a durabilidade incrível. Precisaria de um povo muito avançado para fazer uma obra dessas.

Por sorte, o Egito era habitado por um povo muito avançado. Conheciam várias tecnologias, tinham muita gente vivendo em relativa proximidade, um sistema de governo estável e melhor ainda: muitos especialistas. Como iam muito bem, obrigado, na agricultura por causa das férteis terras do Rio Nilo, sobravam recursos e tempo livre para educar e treinar uma boa parte do povo. Eles construíram coisas gigantescas, e não estou falando só de monumentos como as pirâmides e a Esfinge, a civilização egípcia construiu e reconstruiu cidades enormes serpenteando pelo deserto nas margens do seu principal rio.

E fizeram isso por milhares de anos. Tem noção disso? Tem noção do que é ter uma civilização contínua por milhares de anos? Quanta coisa dá para fazer, acertar, errar e aprender nesse meio tempo? Os egípcios tiveram tudo isso. Milhares de anos. Eles não tinham o conhecimento e a tecnologia que nós temos para construir um carro ou uma aspirina, mas empilhar pedras muito alto? Com certeza.

O que me leva a outro argumento comum dos defensores dos alienígenas do passado, a existência de pirâmides em vários lugares do mundo, normalmente conectando as egípcias com as construídas aqui nas Américas. Maias, Incas e Astecas também achavam muito interessante a ideia de empilhar pedras. Imagina só? Imagina o que é necessário para um ser humano começar a colocar pedras uma em cima da outra e descobrir que o formato de pirâmide funciona muito bem? Impossível que essa gente marrom tenha pensado nisso sozinha, só podem ser alienígenas (ou o povo “ariano” de Atlantis, porque tem essa turma também).

Tem essa mancha de racismo e mentalidade colonizadora na ideia de que as obras incríveis de povos fora do eixo europeu tinham inspiração externa, mas eu acredito que vai além disso. É falta de pensar em quanta coisa nos beneficia desde que nascemos nesse mundo moderno. É tentador achar que povos antigos eram selvagens catando piolhos uns nos outros enquanto olhavam bovinamente para o horizonte, mas as evidências que a arqueologia encontrou até hoje apontam para uma humanidade muito mais inteligente do que imaginamos atualmente.

Há alguns anos atrás, encontraram uma construção de tamanho respeitável no meio do deserto turco, chamada de Göbekli Tepe. O que se presume é que era um tipo de santuário, pela quantidade de arte encontrada nas paredes escavadas. Coisas bem-feitas, viu? Paredes altas, espaço para várias pessoas. Existem vários sítios arqueológicos do tipo no mundo, mas esse deu um nó na cabeça dos arqueólogos: ele foi datado de pelo menos uns dez mil anos atrás. Antes do que se presumia ser a data de começo da agricultura.

E isso é importante: presumia-se que antes do ser humano ser capaz de plantar e produzir alimento o suficiente, passava o dia todo preso na missão de encontrar comida, sem tempo para grandes projetos como um templo desse tamanho. O resto dos sítios arqueológicos batiam com essa teoria, todos vindos depois das primeiras evidências de agricultura. Esse vir antes é um tapa na cara: não é que os uga-bugas eram muito menos uga-bugas do que imaginávamos?

Sim, os estudiosos da história humana já sabiam que estava errada a ideia de que as pessoas do passado não eram basicamente tão inteligentes como somos agora, mas fez bem achar um exemplo tão antigo de gente com capacidade de tanto pensamento abstrato e capacidade de organização ao ponto de construir uma obra desse tamanho. Não é que os avanços tecnológicos e sociais nos tornaram mais inteligentes, é que eles deram vazão a essa inteligência.

O ser humano moderno moderno mesmo já começa a aparecer há uns 70 mil anos atrás. Antes o DNA e o formato do corpo e do cérebro tinham algumas diferenças mais consideráveis, mas mais ou menos nessa época a base do que somos agora estava bem definida. Em tese, é claro, se pegássemos um bebê dessa época e criássemos no mundo moderno, é provável que passasse despercebido. Provavelmente seria meio baixinho, mas de resto nada que chamasse muita atenção.

E é aqui que eu quero injetar a ideia que me veio à cabeça para o texto: será que as pessoas realmente entendem o quanto do que somos hoje em dia está diretamente ligado com a tecnologia disponível? Que nossa vida já presume uma montanha de ideias e esforços de nossos antepassados?

Eu já me peguei pensando algumas vezes o que aconteceria se eu fosse magicamente levado para o passado. Quanto avanço eu poderia trazer comigo? Talvez por achar o exercício mental divertido, eu saio um pouco na frente de você: já tenho as informações sobre como fazer aço, antibióticos e eletricidade mais ou menos decoradas. Eu seria uma bênção para um povo antigo, se não fosse morto por heresia antes disso. Mas e você que foi pego(a) de surpresa pela ideia? Você conseguiria levar a superioridade do futuro junto com você?

Não é um problema real que temos que enfrentar, mas é um bom ângulo para se pensar sobre quem realmente eram essas pessoas do passado distante. Nossa história é cheia de pessoas geniais que nunca pensaram em como fazer uma lâmpada. Ou que sacaram que tinha algo a mais causando doenças do que vontade divina. Tanta coisa óbvia que já aprendemos na primeira infância… e que demoraram dezenas de milhares de anos para entrar na esfera do conhecimento humano.

Daqui a mil anos vai ter muita coisa extremamente óbvia para os humanos (ou o que vier na sequência) que é impensável para nós agora. E é quase certeza que vão ser coisas derivadas da tecnologia desenvolvida entre nossas vidas e as deles. Não dava para pensar em termos de eletricidade antes da eletricidade estar disponível. Quem, assim como eu, viveu antes da Era da Internet, não tinha como pensar em termos de internet antes da grande rede ficar disponível para uso.

E digo mais: estamos numa era tão mágica de evolução tecnológica e social que estamos sem parâmetro para entender o ser humano do passado. Sério que não te dá nó na cabeça demorar 50 mil anos com cérebro de humano moderno para entender agricultura? Porque na minha dá. Repito que é tentador achar que aquele povo era muito burro, mas é só se afastar um pouco dessa loucura que foram os séculos 20 e 21 até aqui para perceber como o ritmo de avanço não foi tão ruim assim.

Na verdade… de ficar em cima de árvore correndo de predador para caçar com pedras afiadas em grupo? É um salto tão absurdamente grande de evolução que em bilhões de anos dá para contar nos dedos as espécies que uniram trabalho em equipe com ferramentas, e só nós demos o próximo passo de controlar o fogo, domesticar nossas fontes de alimento e desenvolver pensamento abstrato.

É que parece tão simples agora que já temos tudo isso, né? Tão óbvio. Pelos dados que temos até aqui, vários grupos humanos se desenvolveram separadamente e foram empilhando ideias brilhantes umas atrás das outras. Quando esses grupos começaram a se misturar um pouco mais, a quantidade de avanços explodiu. O ser humano de tempos imemoriais era um gênio. Não todos… na verdade uma minoria, mais ou menos como hoje em dia, mas o suficiente para continuar construindo o mundo que conhecemos hoje.

O ser humano era capaz de construir tudo o que achamos fascinante hoje em dia, e fez isso no primeiro minuto depois disso se tornar possível por causa da tecnologia que existia ao seu redor. Tanto que fez. Não precisa de povo mágico ou alienígenas para explicar o que vemos. Demorou tanto para chegar no ponto onde estamos agora porque era absurdamente difícil chegar no ponto onde estamos agora. Mas o ser humano foi lá e fez. Com o cérebro que temos e a habilidade gigantesca de nossos membros e mãos, era possível. Com tecnologia para facilitar o trabalho e fogo para iluminar a noite e cozinhar o alimento, era possível mais rápido. Com máquinas e eletricidade então… temos os últimos séculos de avanço em velocidade alucinante.

Mas se você olhar para o todo, estávamos avançando de forma impressionante esse tempo todo. Esse povo de tempos imemoriais era muito parecido com a gente agora, só não tinha as ferramentas que temos.

Eu nem quero me aprofundar muito nessa parte (spoiler: fiz isso), mas acho que não dá para ignorar: muito do revisionismo histórico que afeta o cenário político do século 21 tem algo disso de “alienígenas do passado”. Ao tratar o passado como um poço infinito de ignorância e opressão, sem olhar para as nuances e os contextos que pessoas basicamente tão inteligentes como nós viviam, corremos o risco de achar que nossa história pode ser ignorada sem muito problema para o futuro.

“Eram todos burros, racistas e misóginos”.

Pelos padrões atuais, sim, eu entendo que não são exemplos de justiça social, mas era gente como a gente, gente que viveu num mundo que provavelmente nos afetaria do mesmo jeito se vivêssemos nele. Avançamos não porque gente de cabelo colorido renegou o passado, mas porque algumas daquelas mentes do passado conseguiram avançar um pouquinho que fosse e fazer isso durar na nossa cultura. Não nascemos melhores que eles, nascemos num mundo melhor que o deles.

E se você acha que guerra cultural tem algo a ver com a evolução humana até aqui, não está olhando para a nossa história. Só melhoramos quando a próxima geração nasce com mais problemas práticos resolvidos. E isso só acontece quando carregamos a tocha da evolução contínua, aquela que deu um trabalho gigantesco para ser mantida, que com certeza fracassou várias vezes durante a história e teve que ser recomeçada por alguém que tinha um pouco mais de comida ou um pouco menos de inimigos.

Nunca foi mágica, nunca foi influência de seres superiores vindos de Atlântida ou do espaço… sempre foi a gente. Sempre foi gente que ralou e usou o enorme cérebro que está basicamente igual há dezenas de milênios. Que fez o melhor que dava em cada momento. Aquela gente que fez um monte de coisas erradas para os nossos padrões atuais era muito inteligente sim. Tanto que muitas ideias de milhares de anos atrás ainda tem muito impacto no tempo da internet.

Sinto falta do conservador pensar um pouco mais sobre a mudança que nunca para na humanidade, e sinto falta do progressista entender que o conhecimento acumulado de milênios não é coisa de homem das cavernas. Não temos seres mágicos que já sabiam de tudo no passado, não temos completos imbecis também.

Acho que só de entender esse básico, a história nos ensina muito mais.

Para dizer que eu escrevi um roteiro do VSauce, para dizer que se você não consegue fazer um pirâmide ninguém consegue, ou mesmo para dizer que eu estou passando pano para o passado (estou sim, e se você está renegando o trabalho de corno que essa gente teve para você ter essa vida mansa, é um mal agradecido(a)): somir@desfavor.com

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Comments (4)

  • Isso me lembra nossa concepção moderna de tempo: realmente tem idiota que acha que medição em segundos só ocorreu com os primeiros relógios – tem tantos milênios que é medido assim no oriente médio que te falar…

  • A necessidade eh a mãe da invenção, da adaptação e da reinvenção.
    Nada passa de nada para ser algo útil. Há um processo de adaptação e transformação em tudo que foi criado, após a criação alguém vem e aperfeiçoa.
    Nada se perde, tudo se transforma.
    As ideias nos chegam da observação e com ela melhoramos algo que era bom,
    e se tornou melhor com pequenos reparos e nova adaptação.
    Vida que segue.

  • coisa de bobolescente que nunca fez merda nenhuma na vida e precisa acreditar que seus ancestrais eram tão burros quanto ele pra se sentir menos pior

  • Enquanto isso, no século 30…
    “O bondinho do pão de açúcar era muito avançado pra época”
    “Não tem como o eurotúnel ter sido feito por humanos”
    “As mulheres do século 21 eram proibidas de trabalhar”

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