Relógio do Juízo Final

E se os mais renomados cientistas se reunissem para tentar estimar quão perto estamos de um evento catastrófico que vai gerar a extinção da humanidade? E se isso pudesse ser quantificado de alguma forma? Será que estamos muito distantes desse evento? Desfavor Explica: Relógio do Juízo Final.

Você já ouviu falar do “Relógio do Juízo Final”? Fique tranquilo, este não é um texto sobre pseudociência, Nibiru e misticismo. Também não é um texto para te provocar medo. É apenas um texto de cultura inútil, curiosidades, para te ajudar e entender melhor esta curiosa ferramenta e, quem sabe, te fazer refletir sobre a forma como você lida com a possibilidade de “apocalipse”.

O Relógio do Juízo Final (Doomsday Clock, no original, razão pela qual muitos traduzem o nome para “Relógio do Apocalipse) foi criado por físicos nucleares como uma alegoria para medir o quanto a humanidade está próxima de algum evento catastrófico que poderia gerar o fim da vida no planeta.

Obviamente não é (nem se propõe a ser) uma estimativa precisa, já que não controlamos (e talvez nem conheçamos) muitas circunstâncias que podem gerar esses eventos, mas é um indicador: um termômetro que mede quão favorável ou desfavorável a situação está para nós, seres humanos.

Ele foi criado após a Segunda Guerra Nuclear, pelo Boletim dos Cientistas Atômicos, fundado por Albert Einstein, J. Robert Oppenheimer e outros cientistas que trabalharam no Projeto Manhattan, responsável por desenvolver as primeiras bombas atômicas.

Como uma espécie de “reparação” (ou arrependimento, vai saber…) por terem criado uma arma de destruição em massa, estes cientistas passaram a trabalhar para informar sobre o risco que estas armas nucleares estariam oferecendo à Humanidade.

Assim, em 1947, surgiu o Relógio do Juízo Final, uma contagem regressiva para o fim dos tempos: quando o relógio chegar à meia-noite, significa que o ser humano foi varrido do planeta. Foi uma forma que eles encontraram de alertar sobre os danos que eles mesmos ajudaram a criar e também uma forma de conscientizara humanidade sobre os riscos de usar armas nucleares.

Até hoje, em janeiro de todos os anos o Relógio do Juízo Final é atualizado por um grupo de cientistas, só que seu cômputo se tornou mais complexo com o passar dos anos. Hoje, não se leva em conta apenas os riscos de uso de armas nucleares, novos fatores de risco considerados foram inseridos ao longo dos anos.

Em 2007, por exemplo, as mudanças climáticas passaram a ser levadas em conta no cálculo. Então, este Relógio ele também é usado para alertar constantemente a humanidade sobre quais são os principais fatores de risco atuais. Além de quantificar o risco, ele também especifica as principais questões que merecem atenção e não raro os cientistas responsáveis apontam quais medidas poderiam ser adotadas para reduzir esse risco.

Funciona da seguinte forma: a cada ano, a junta de ciência e segurança do Boletim (que inclui 10 ganhadores do prêmio Nobel), decidem como reposicionar os ponteiros do relógio. Uma vez por ano a situação da humanidade é reavaliada e, quanto mais longe de meia-noite menores os riscos de um apocalipse e, quanto mais perto, maiores.

Em diversas ocasiões, essa contagem regrediu, ou seja, as agulhas do relógio voltaram no tempo, ficaram mais longe de meia-noite, o que significa que a humanidade deu passos que a deixaram mais segura. Por exemplo, com o fim da Guerra Fria se entendeu que houve uma redução de chances de uma guerra nuclear e o relógio, que antes estava a 7 minutos da meia-noite, retrocedeu, ficando a 17 minutos da meia-noite.

No dia 24 de janeiro deste ano, o Relógio do Juízo Final teve suas agulhas reposicionadas para a medição mais próxima do “fim do mundo” já registrada: 90 segundos. Até 2018, as previsões eram feitas em minutos, mas agora a coisa não está muito boa e passaram a contar em segundos.

Como vocês podem imaginar, a forma como a mídia vem repercutindo isso não é das mais… elucidativas. Dá para fazer muito click bait com essa informação: “cientistas afirmam: estamos a 90 segundos para o fim do mundo!”. Vem sendo daí para baixo. E quem não conhece a proposta do relógio, lê, vê nomes de peso endossando esses 90 segundos e se desespera.

Vamos interpretar isso como deve ser feito: não quer dizer que em 90 segundos o ser humano vai desaparecer do planeta. É um indicativo de que estamos mais próximos do que nunca de que isso aconteça, não uma medida exata.

O Relógio do Juízo Final aponta se estamos bem ou estamos mal e o quanto estamos bem (ou mal), mas jamais dará datas, prazos ou fará previsões. Considerando todas as medições anteriores, nunca estivemos tão próximos do apocalipse, mas, ainda de acordo com a ciência, se formos traduzir isso para uma data, estimar uma data para “fim do mundo” relaxem, é provável que nenhum de nós esteja vivo para presenciar quando de fato ocorrer.

Outro ponto importante aqui: o planeta não vai acabar, como muitos dizem. O ser humano vai acabar, o planeta não. Muito pelo contrário, o planeta provavelmente vai ficar bem melhor sem o ser humano. Então, esse papo do “planeta pede socorro” é besteira. O planeta passou por várias extinções em massa ao longo de sua história e sempre resistiu. A vida sempre se recriou. É o ciclo natural do planeta Terra, não tem nada de estranho nisso.

No portal do Boletim dos Cientistas Atômicos, eles comparam o mecanismo de funcionamento do Relógio a uma ida ao médico: você recebe um panorama geral de como está sua saúde, mas isso não quer dizer que exista alguma garantia de como vai se desdobrar a situação, muito menos que o médico te dará dia e hora da sua morte. É bem isso. Sabemos que a permanência do ser humano neste planeta não parece ter um futuro promissor se as coisas continuarem como estão, apenas isso.

Outro fator importante para se levar em conta na interpretação é que o posicionamento dos ponteiros não é uma sentença, ele apenas reflete o que poderia acontecer caso medidas não sejam tomadas para reverter as condições atuais do planeta. Se medidas forem adotadas, a realidade futura também vai mudar.

A julgar pelas declarações que deram, o que mais pesou para adiantar desta forma os ponteiros do Relógio do Juízo Final foram, além dos fatores climáticos, a Guerra da Ucrânia, que elevou o risco de um conflito nuclear ou coisa tão ruim quanto. O que só mostra como o ser humano é o maior risco para o ser humano, já que o relógio estava sem se mover desde 2020, um ano em que tivemos uma pandemia.

Rachel Bronson, CEO do Boletim, deu a seguinte declaração: “Estamos vivendo em uma época de perigo sem precedentes, e o Relógio do Juízo Final reflete essa realidade. 90 segundos para a meia-noite é o mais próximo que o Relógio já foi definido para esse horário, e é uma decisão que nossos especialistas não tomam com um ânimo leve”.

Ele ainda explicou o peso da atual guerra no cômputo, e que o problema não é apenas o conflito, como também o precedente que ele abriu: “A guerra da Rússia contra a Ucrânia levantou questões profundas sobre como os Estados interagem, corroendo as normas de conduta internacional que sustentam respostas bem-sucedidas a uma variedade de riscos globais. E o pior de tudo, as ameaças veladas da Rússia de usar armas nucleares lembram ao mundo que a escalada do conflito – por acidente, intenção ou erro de cálculo – é um risco terrível”.

A ideia era que o relógio sirva como um alarme, um aviso, um alerta: cuidado, estamos à beira do precipício, hora de dar ré, antes que a gente caia. É uma tentativa bacana, até louvável eu diria, mas, francamente, alguém acha que vai adiantar?

Pelo cômputo atual do relógio e os critérios que mais aceleram os ponteiros, se a humanidade quiser reverter as chances de um apocalipse, teria que tomar basicamente cinco medidas: 1) reduzir drasticamente a emissão de carbono; 2) implementar normas de controle/proteção ambiental de caráter mundial que reduziriam os ganhos da maior parte dos países; 3) nivelar o cuidado com saúde e prevenção de doenças (sobretudo de novas pandemias) de forma mundial assegurando o acesso rápido e gratuito a vacinas para todos; 4) um tratado rígido de controle de armas pactuado pelo mundo todo e 5) investimento massivo em tecnologia para reverter os danos já causados, algo que, via de regra, demanda muito gasto e é pouco lucrativo.

Sejam sinceros, vocês acham que alguma dessas coisas vai acontecer? Eu te respondo: não vão acontecer. Não é uma decisão sua ou minha. Não é um evento no qual uma decisão individual faça diferença para reverter o quadro. Você pode reciclar tudo que usa, ir a pé a todos os seus compromissos e não usar um plástico na sua vida que não vai fazer a menor diferença para esse cálculo: os grandes riscos, os grandes poluentes, os grandes problemas são indústrias, empresas, governos.

Então, se este texto é para te alertar que rumamos para o abismo, também é para te dizer que aproveite a jornada, pois você não tem como alcançar o volante e desviar essa direção. “Mas Sally, como posso ser feliz sabendo que estamos perto do apocalipse?”. Simples: não dando tanta importância a este mundo, a tudo que nele está contido, inclusive a você mesmo.

Não só não depende de você, como ainda é provável que, a esta altura, nem seja possível operar uma completa reversão dos estragos. Pergunte a qualquer pessoa série que estude o assunto. Ela vai te confirmar que hoje, a situação, em vários aspectos, é irreversível, o máximo que podemos fazer é atrasar nossa danação.

Vejamos: algo que não depende de você e que não é reversível, que vai acontecer e provavelmente você nem estará vivo para ver. Realmente parece lógico estragar seu dia, sua semana, seu mês, sua vida com isso?

O objetivo do Relógio não é alarmar, angustiar ou estressar a humanidade. Ele não foi feito pensando em você, por mais que você se ache assim tão importante. Ele foi feito pensando em líderes mundiais (políticos, econômicos, sociais) e não para gerar medo e sim consciência da necessidade de mudanças – o que não parece estar acontecendo.

Desde que o anúncio da mudança dos ponteiros foi divulgado tem muita gente que parece em choque. Eu te pergunto: se acontecer uma grande catástrofe que elimine o ser humano (ou boa parte dele) do planeta, você vai se surpreender? Nenhuma pessoa minimamente informada seria pega de surpresa. Então, não estamos tratando de uma novidade aqui. Nada mudou, exceto o fato de que existe um símbolo retratando uma realidade que todos já conheciam.

Vai ter quem diga que fazer as pazes com isso é absurdo, é acomodação, é medíocre ou que mais quiserem atribuir. Tem gente que se sente na obrigação de se aborrecer, de se preocupar, de se chatear. Para algumas pessoas, o fator preocupação é sinônimo de mostrar que você se importa, o que é bastante curioso. De preocupar com algo que pode ser objeto de escolha é muito válido, pois pode ser mudado. Mas, se preocupar com que não pode ser mudado? Me parece o conceito de sofrimento em vão.

Então, estamos em várias encruzilhadas aqui: se você acha que está nas suas mãos mudar o destino de toda a humanidade, provavelmente é o caso de tratar essa megalomania. Se você concorda com a premissa de que isso não está nas suas mãos, como você vai se posicionar perante essa realidade: sofrendo por algo que não pode ser modificado e não depende de você ou aproveitando o tempo que te resta?

O Relógio do Juízo Final é uma ótima oportunidade para refletir sobre como lidamos com aquilo que foge ao nosso controle. A sociedade diz que o “certo” é “se importar” e que “se importar” tem que ser expresso através de ativismo (inútil nesse caso), angústia e sofrimento. Não me admira que essa mesma sociedade esteja cada vez mais dependente de antidepressivos e ansiolíticos.

O que vale mais: se adequar a aquilo que a sociedade espera de você ou fazer algo pela sua saúde mental? Posar de boa pessoa nas redes sociais, alimentando essa onda de “eu me importo olha como eu sofro” ou focar em coisas que você efetivamente pode mudar e que vão melhorar a sua vida?

Somos todos adultinhos, sabemos que coisas desagradáveis acontecem, tragédias acontecem, imprevistos acontecem. Muitas coisas que não estão sob o nosso controle acontecem. Por isso alguém vai deixar de ser feliz, cair em sofrimento ou angústia? Se sim, vai viver em sofrimento.

Afinal, qual é o grande problema de a raça humana acabar? Somos assim tão importantes? É algo injusto? É algo inédito? Estamos destruindo o planeta faz muito tempo, e este planeta já sofreu pelo menos 5 extinções em massa, quando toda a vida foi aniquilada e teve que recomeçar do zero. Sinto muito informar, esse é o caminho natural. E tá tudo bem.

Em que cabeça é razoável tentar “salvar toda a humanidade”? Da juventude eu até espero, pois o jovem é, antes de tudo, um retardado. Mas de adulto? É muita vontade de arrumar uma distração externa para não olhar para a própria vida, para os próprios problemas, para as próprias questões.

Pior do que o risível sofrimento vinculado a o “em 100 anos o mundo pode acabar” (e…?) é o pensamento “em 100 anos o mundo pode acabar e EU tenho que fazer alguma coisa”. Não sejam essa pessoa, se poupem dessa vergonha.

A vida é cheia de riscos, ameaças e termina em morte para todos nós. E dificilmente alguém controla a hora e a forma do seu desfecho. Então, em vez de focar no inevitável e no incontrolável, foque no que você pode fazer hoje para melhorar a sua vida ou melhorar a vida das pessoas que te cercam. Repito pela milésima vez: é assim que se muda o mundo, mudando a sua vida, resolvendo as suas questões, não tentando “salvar a todos”.

Se você está sofrendo pela mudança nos ponteiros do Relógio do Juízo Final, pare. Apenas pare. É o desfecho natural de todos os seres que já habitaram este planeta, se você se achou especial o suficiente para fugir dele, o erro está em você.

Para dizer que este texto te deprimiu e te ofendeu ao mesmo tempo, para dizer que você vai salvar a humanidade ou ainda para enviar este texto para a Greta Thunberg: sally@desfavor.com

Se você encontrou algum erro na postagem, selecione o pedaço e digite Ctrl+Enter para nos avisar.

Etiquetas: , , , ,

Comments (8)

  • “Segunda Guerra Nuclear”? Não seria “Segunda Guerra Mundial”? Uma “Primeira Guerra Nuclear” já seria suficiente pra dizimar a Humanidade. Tanto que seria muito improvável que chegasse a acontecer uma segunda…

  • Falando nisso, Sally, dá uma olhada nesse trecho de um discurso famoso do Geroge Carlin que eu já citei várias vezes em comentários antigos no Desfavor:

    “O planeta vai bem. Em comparação com as pessoas, o planeta está indo muito bem. Está aqui há quatro bilhões e meio de anos. Você já pensou nesssa conta? O planeta está aqui há quatro bilhões e meio de anos e nós estamos aqui há quanto tempo? Cem mil anos? Talvez duzentos mil? E nós só nos dedicamos à indústria pesada há um pouco mais de 200 anos. Duzentos anos versus quatro bilhões e meio! E ainda temos a presunção de pensar que de alguma forma nós somos uma ameaça? Que de alguma forma vamos colocar em risco esta bela bola azul-esverdeada que fica girando ao redor do Sol? O planeta já passou por coisas muito piores do que nós. Todos os tipos de coisas piores do que nós: terremotos, vulcões, placas tectônicas, deriva continental, erupções solares, manchas solares, tempestades geomagnéticas, inversão dos polos magnéticos, centenas de milhares de anos de bombardeamento por cometas, asteróides e meteoros, enchentes globais, maremotos, incêndios, erosões, raios cósmicos, eras glaciais recorrentes… E nós achamos que alguns sacos plásticos e umas latas de alumínio irão fazer alguma diferença?”

    E, repetindo uma outra coisa que eu também já disse aqui antes: encher tanto o nosso saco para que nós, reles mortais, sejamos ecologicamente corretos enquanto grandes empresas poluem à vontade é tão eficaz para “salvar o planeta” quanto um band-aid é para tratar um paciente canceroso.

  • Esse artigo me lembrou de uma divagação com uma pergunta para a qual eu não tenho a resposta.
    Uma civilização superior ou um grupo delas, está vendo os estragos no planeta e resolve agir para reduzir os danos. Ainda assim resolvem fazer uma última tentativa e se encontram com vários seres humanos fazendo uma pergunta que definirá se prosseguiremos no planeta ou seremos antecipadamente extintos para essa redução de danos:
    Por qual motivo(s)/benefício(s), NÃO ANTROPOCÊNTRICO(S), a espécie humana deve permanecer na Terra?
    Como eu já disse eu não tenho resposta para essa pergunta. Se depender de mim estamos ferrados.

    • Não acho que exista nenhum bom motivo de nenhuma ordem para manter o ser humano no planeta, ele não gera nenhum benefício, a não ser para ele mesmo…

      • Há muitas espécies biológicas felizes com o espalhamento da raça humana. A idéia de natureza “não-antropomórfica” perfeita, bonita e feliz, também é de uma simplicidade engraçada e impede uma discussão melhor.

  • “Você pode reciclar tudo que usa, ir a pé a todos os seus compromissos e não usar um plástico na sua vida que não vai fazer a menor diferença para esse cálculo: os grandes riscos, os grandes poluentes, os grandes problemas são indústrias, empresas, governos.”
    Eu faço algumas coisas “eco-friendly” no meu alcance, frugalidade com moderação faz bem. O que me irrita é a forma como esses grandes poluentes não vão fazer nada disso e ainda falam como se tivessem o direito de mandar na sua vida. Quero ver os filhos e netos de bilionários andando de ônibus, tomando água reciclada de esgoto, comendo carne falsa, parando de fazer greenwashing e parando de produzir e empurrar pra população lixo consumista que ninguém precisa, tipo bolsas de marca.

    • Não fazem nada e ainda tentam jogar o ônus para a pessoa física. É muita cara de pau. Por isso eu sempre repito: eu faço o que não me gera privação. Eu não me coloco em situação de privação para “salvar o planeta” (o planeta está ótimo!) pois enquanto grandes poluentes não fizerem nada, é inútil.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: