Domo de Ferro

Israel está cercada de inimigos. Desde sua fundação, basicamente todos os países ao seu redor tentaram destruir o país. Como os israelenses têm um primo para lá de rico nos EUA, quase sempre essas tentativas de destruição são altamente assimétricas. De um lado tecnologia avançada, do outro tudo o que conseguirem jogar pela fronteira. É aí que entra o Domo de Ferro (Iron Dome), o sistema de proteção contra foguetes e mísseis simples que Israel usa para interceptar os constantes ataques que recebe. Vamos ver hoje como ele funciona (e se funciona).

Durante a guerra contra o Líbano (leia-se Hezbollah) em 2006, o grupo terrorista atirou milhares de foguetes contra o norte de Israel, matando dezenas de pessoas e forçando milhares a saírem de suas cidades. O governo israelense então contratou uma de suas muitas empresas de defesa para desenvolver um sistema contra esse tipo de ataque. Por mais que um foguete não cause danos imensos, ainda sim é uma bomba caindo na cabeça de civis. E quanto mais bombas, mais complicado é ocupar o território.

Não podemos esquecer que Israel precisa ter gente em cada cantinho do seu território, e sempre que possível, no território dos vizinhos. A estratégia de ocupação é integral ao funcionamento do Estado, então a ideia mais simples de sair de perto dos vizinhos explosivos não serve para eles. Eles tem que ficar colados nas bordas do território o tempo todo para demonstrar posse e evitar que outros se instalem por lá.

Então, a ideia de criar um sistema de defesa contra os foguetes vindos do Líbano, Jordânia e dos territórios palestinos fazia muito sentido. Pelas características do território, os objetivos israelenses neles e o tipo de munição que os vizinhos usavam, o Domo de Ferro era a resposta mais lógica. Um sistema para interceptar pequenos objetos voadores em alta velocidade.

Como funciona: o sistema é baseado em três partes. A primeira é um radar que fica o tempo todo analisando o espaço aéreo dos vizinhos para detectar qualquer lançamento. Radar é basicamente enviar um pulso de ondas de rádio numa direção e medir quanto tempo elas demoram para voltar. Quando o sinal do radar encontra algo se movimentando nos céus da Faixa de Gaza, por exemplo, ele manda um aviso automático para a segunda parte.

É aí que computadores analisam a posição e a velocidade do objeto detectado para presumir sua trajetória. Esse processo é repetido milhares de vezes em questão de segundos para definir, com o máximo de precisão possível, qual vai ser a parábola do objeto voador. Isso é física básica: para cobrir mais distância, mísseis e foguetes não fazem linhas retas até o alvo, até porque eles são lançados do chão na maioria das vezes. Com o ângulo de subida e a velocidade, o computador sabe onde ele vai cair.

Se o foguete estiver previsto de cair numa área ocupada por militares ou civis israelenses, começa a terceira parte: a interceptação. Aí, com os dados colhidos pelo radar e a trajetória definida pelo computador, eles disparam um míssil especial de interceptação. Ele é disparado de uma das mais de 20 baterias de defesa israelenses espalhadas pela região, numa velocidade e trajetória compatíveis com a posição do foguete na hora do encontro.

É um monte de cálculos complexos, você tem que prever onde o foguete vai estar quando o seu míssil conseguir chegar perto dele. E mesmo assim, acertar um alvo pequeno como um foguete não é fácil, nem com computação avançada. O míssil utilizado pelos israelenses, que presume-se que custa mais de 50 mil dólares por unidade, tem câmeras e sensores para achar o foguete em pleno ar, e pode mudar (um pouco) sua trajetória para chegar mais perto.

E ao contrário do que muita gente pensa, um míssil de interceptação não bate direto no alvo, seria uma precisão basicamente impossível nessas velocidades. O míssil israelense é feito para explodir mais ou menos perto do foguete, e com seus estilhaços, fazer o foguete explodir ainda no ar.

Um aparte sobre os foguetes do Hamas e similares: eles são baseados em tecnologias antigas, mas extremamente eficientes. É um cano de metal cheio de explosivos. Sim, ele tem estabilizadores e propulsão próprias, mas não é tão diferente assim de fogos de artifício. Os fogos coloridos que vemos em comemorações são criados para explodir inteiros no ar, os foguetes dos terroristas são feitos para explodir uma boa parte da carga no impacto final.

Estima-se que o Hamas consiga produzir esses foguetes ao custo de 800 dólares cada. E é aí que você começa a perceber que tem mais nessa história do que a tecnologia do Domo de Ferro. É uma disputa de recursos também. Israel, mesmo com o dinheiro da diáspora, uma economia forte e apoio financeiro interminável dos EUA, ainda não tem dinheiro infinito. Cada interceptação custa uma nota para os judeus. E nada de preconceitos: eles gastam esse dinheiro para interceptar tudo o que estiver vindo na direção de civis. Mas, novamente… o dinheiro não é infinito.

A economia de escala começa a bater. Os inimigos de Israel gastam quase cem vezes menos para atacar do que eles gastam para defender. Tanto que uma das táticas do Hamas e do Hezbollah desde que o Domo de Ferro estreou em 2011 é soltar um monte de foguetes ao mesmo tempo. Para eles é barato e rápido fazer tantos foguetes, para Israel é um suplício manter toda sua tecnologia combatendo a ameaça constante.

Se você perguntar para o governo israelense o grau de sucesso do Domo de Ferro, eles vão dizer, cheios de orgulho, que conseguem impedir 90% dos foguetes lançados pelos inimigos. Mas é meio como considerar reais os indicadores de respeito aos direitos humanos do governo chinês… é muito provável que o grau de sucesso do Domo de Ferro esteja muito abaixo disso. Como publicitário, eu sei que o governo israelense deve ter procurado um contexto especial no qual conseguem evitar 90% das mortes causadas por foguetes e transformado isso no dado oficial.

Estudos independentes de imagens e dados de terceiros sugerem que essa eficiência esteja abaixo dos 30%. Não que não seja de explodir a cabeça como Israel tem um sistema automatizado para parar no ar que sejam 30 de cada 100 foguetes atirados contra eles, mas se esses dados independentes forem próximos da realidade, não é um número que funciona bem com o psicológico humano, né?

Lembram que eu disse que Israel precisa ocupar cada cantinho das suas fronteiras como estratégia fundamental de sua existência? Por mais que existam judeus radicais que vão para a morte sem pensar duas vezes em nome de expandir a presença deles na “terra prometida”, o israelense médio não é um maluco de pedra: ele vai querer ir morar num lugar relativamente protegido. Se Israel não prometer algo como 90% de chance de impedir foguetes dos adversários de caírem no seu território, pouca gente vai se animar a ocupar os territórios que eles querem ocupar.

Tem todo um contexto de propaganda na suposta impenetrabilidade do Domo de Ferro. Para fazer o governo parecer eficiente, para justificar os custos exorbitantes do projeto e é claro, para manter civis ocupando a área próxima da fronteira. A verdade é sempre mais cinza. Existe um número finito de mísseis de interceptação em atividade a cada momento. Fazer mais custa caro e demora. O governo tem que equilibrar custo e benefício com o Domo de Ferro.

É por isso que o problema dos foguetes vindos de Gaza ou das áreas ocupadas pelo Hezbollah ainda existe: o Domo de Ferro é capaz de coisas impressionantes, mas não é um literal domo de ferro. Passa muita coisa. Como os foguetes são canos de ferro explosivos, eles vivem errando o alvo. Não é um míssil de alta tecnologia lançado de um avião de guerra, é um bando de suicidas atirando fogos de São João gigantes para tudo quanto é lado. O que pegar pegou, porque é barato fazer mais, não precisa treinar muito que dispara.

Talvez 90% dos foguetes sejam interceptados ou não causem nenhum ferimento ou morte em cidadãos israelenses por foguetes serem uma porcaria para qualquer coisa que não causar terror, mas é fisicamente impossível parar 100 foguetes se você tem 99 mísseis de interceptação. E pior, se você gastar seus 99, o Hamas tem mais 100 foguetes prontos no dia seguinte. Não dá para fazer o míssil israelense num galpão aleatório com gente que aprendeu o trabalho no dia anterior, os foguetes sim. Isso se chama ataque de saturação: você faz os seus recursos renderem muito mais que os do adversário, forçando-o a concentrar sua defesa numa área e deixando outras vulneráveis. É quando quantidade vence qualidade.

O problema de Israel é muito maior do que a propaganda deles (e dos americanos) nos conta. Se morrer um soldado israelense capaz de configurar o Domo de Ferro, morrem junto milhares de horas de aprendizado. Se morrer um atirador de mísseis do Hamas, a pessoa do lado dispara o próximo. Assimetria na guerra não é uma medida de como o exército com mais tecnologia e dinheiro sempre vence, e sim a comparação entre o que cada lado pode fazer com seus recursos.

Israel, embora não confirme, tem bombas atômicas para transformar Gaza em vidro radioativo. Tem caças modernos que podem arrebentar com os palestinos em questão de horas. Mas não podem colocar todo seu poderio em ações do tipo. Seria um massacre de civis que até mesmo os EUA acham exagero (depois de fazerem dois e perceberem que ia dar muito ruim para eles no futuro). Sobra a guerra assimétrica com um dos lados tentando achar a medida da retaliação, e tendo seus recursos engolidos pela dificuldade de enfrentar o custo/benefício da tática adversária.

O Hamas nunca vai conseguir acabar com Israel, mas pode explorar a desigualdade ao seu favor: o Domo de Ferro é uma tecnologia impressionante, mas fundamentalmente limitada por custos. Se você gastasse 1000 reais para pintar o muro que o pichador gasta 10 para sujar, eventualmente você desistiria, não? Não adianta lutar uma guerra de custos contra quem gasta dezenas de vezes menos que você, o único jeito é acabar com o adversário antes que ele possa fazer isso de novo.

E aí, o Hamas tem o Domo de Gente, essa sim uma defesa terrível de furar. O mundo racional sabe que os israelenses têm direito de se defender, mas a tecnologia avançada do Hamas de ficar atrás de crianças e mulheres cria um problema terrível para os judeus. É por isso que a gente fala que essa guerra é terrível por qualquer ângulo.

Coisas como o Domo de Ferro são uma boa ferramenta de propaganda para o governo local, mas na prática é realmente difícil evitar que um bando de gente sem nada a perder faça você gastar seus recursos sem prospecto de resolução. Essa é uma triste realidade de todos os sistemas de defesa ao redor do mundo: nem mesmo os mais avançados escudos dos americanos poderiam evitar que um ataque de mil bombas atômicas causasse estragos irreversíveis em seu território. Se você fizer seu míssil custar mais barato e ser produzido mais rápido que o do inimigo, um deles vai passar eventualmente.

Desde que o ser humano inventou a “morte à distância”, guerras são baseadas em gerenciamento de recursos. Na antiguidade, um arqueiro bem-posicionado atacava cinco adversários no mesmo tempo que um soldado com lança (espada só se usa em filme, todo mundo com um cérebro usava lança) e escudo atacava um. E melhor: com risco quase nulo de ser eliminado da batalha. Era mais barato gastar flechas do que gastar soldados. Não precisava nem investir em armadura!

E isso nunca mudou. Até mesmo as guerras recentes foram baseadas em quem tinha mais capacidade de produção de armas e recursos humanos para jogar no moedor de carne das linhas de frente. O Hamas é muito covarde nas suas táticas, mas dadas suas condições, não tem nada mais eficiente do que fazem. Se o Domo de Ferro impede 10 foguetes ao mesmo tempo, eles simplesmente atiram 11.

Este texto é para lembrar as pessoas que a suposta vantagem infinita dos israelenses é mais propaganda do que realidade. Sim, eles em tese podem fazer coisas que o Hamas não pode, mas na prática, estão sempre sofrendo com seus recursos sendo gastos numa velocidade muito maior que o inimigo. Tudo tem limite nessa vida. Se os adversários saturarem demais o Domo de Ferro e as estruturas profissionais da Força de Defesa Israelense, podemos voltar ao mesmo ponto que citei sobre o Hamas: podem até agir de forma covarde, mas dadas as condições vai ser a resposta mais lógica.

Custa muito caro manter a suposta superioridade moral do exército israelense. Os EUA sabem disso, não é só bondade ou influência judia que fazem eles oferecerem bilhões e bilhões para Israel (o Domo de Ferro foi financiado em parte pelos EUA), é a percepção que se os judeus ficarem sem capacidade de pagar pela via vista como mais humanitária de fazer guerra, eles vão ter que descer para o nível dos terroristas de vez (Israel nunca vai desistir).

E aí os bilhões de ajuda militar viram centenas de bilhões e talvez milhares de vidas perdidas defendendo Israel do desastre que se seguir. Por enquanto o dinheiro está mantendo um status quo básico, mas não se enganem, o Domo de Ferro é muito caro e não é nem uma fração da defesa perfeita que Israel vende por aí. É melhor do que nada, SE alguém estiver pagando por isso.

Para dizer que eu estrago todas suas fantasias, para dizer que eu sou sionista ou terrorista (depende do seu humor hoje), ou mesmo para dizer que é só sair de lá e ocupar o Suriname (sai pra lá, a gente viu primeiro): somir@desfavor.com

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Comments (4)

  • Tem milhares de senhores de 50 anos treinados em Comando de mísseis, que vinha de brinde no Atari e funciona como um Domo de Ferro manual. Bora convocar os gamers boomers!

  • Uma pergunta genuína… Como que a equipe de inteligência de Israel não percebeu ou pelo menos cogitou que aquele ataque no show poderia acontecer?

    É um país em constante confronto com seus vizinhos, acho que seria natural esperar que terroristas pudessem se aproveitar de uma grande aglomeração de gente (ainda mais em zona de fronteira, pelo que entendi) para isso, não?

    A lógica dos foguetes eu consegui entender, mas como que um bando de terroristas armaram todo esse esquema dentro da casa judaica e ninguém percebeu nada? Eu vi que o responsável pela inteligência assumiu os erros e tal, mas… Se continuar ocorrendo mais erros bestas assim, o gasto com qualquer sistema de defesa será em vão.

    • Muito estranho mesmo. Estranho demais para algumas pessoas que sugerem conspiração.

      Eu já sou do time da Navalha de Burram: “nunca atribua à malícia o que pode ser explicado por burrice/incompetência”. A rave que acontecia naquele lugar não era a primeira, acontecia uma por semana naquele lugar. Israel parecia mesmo estar sob a impressão que tinha encontrado um ponto de equilíbrio (doentio) com o Hamas. Tanto que o grosso das tropas estava ao redor da Cisjordânia, onde o bicho estava pegando mesmo.

      Israel estava vulnerável, e se você parar para pensar… é literalmente o melhor momento para atacar. Ovo ou galinha?

    • Bom questionamento… outra coisa a se considerar é que Israel é um país bem pequeno. Tem 135 KM de largura e 470km de comprimento. Isso nos pontos mais extremos. O que chama mais atenção é o fato de ter levado 6 horas para a IDF se mobilizar para se proteger. Com 1 helicóptero, você conseguiria cruzar o país todo em 45 min.

      Mas aí eu concordo com o Somir: “nunca atribua à malícia o que pode ser explicado por burrice/incompetência”.

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