Síndrome de Kessler.

Um comentário da Suellen em um texto recente sobre possíveis ataques contra satélites em guerras futuras me fez pensar neste tema: a Síndrome de Kessler é um hipotético cenário onde uma ou mais colisões entre objetos em órbita da Terra começam uma reação em cadeia que basicamente nos impediria de sair do planeta por sabe-se lá quanto tempo. E não tem nada realmente proibindo alguém de começar esse processo…

Quando você arremessa algum objeto aqui na Terra, eventualmente ele vai perder toda a velocidade e terminar no ponto mais baixo possível. São dois os motivos: primeiro a gravidade que vai apontar qualquer trajetória para o centro de massa do planeta, e segundo a resistência do ar. Mesmo sendo transparente, ele está lá. A densidade da nossa atmosfera é pouco para impedir nossos movimentos cotidianos, mas é mais do que suficiente para brigar contra qualquer objeto tentando ir muito rápido.

Qualquer coisa em movimento no ar literalmente bate em incontáveis átomos, e quando mais rápido esse movimento, mais violentas as colisões. Para um ser humano andando na rua, é fácil de ignorar; se bem que todo mundo que já pegou um vento forte sabe o ar tem o seu “peso”, que aumenta bastante quanto mais rápido ele se move. Some-se a isso um planeta inteiro te puxando por causa da gravidade e você tem toda nossa intuição ancestral sobre movimento.

Mas quanto mais distante você fica do chão, menos essas forças impactam em trajetórias e velocidades. No mundo dos satélites e estações espaciais, tem muito menos ar e gravidade atuando sobre os objetos. Não nenhuma, porque a zona de influência do planeta Terra vai muito mais longe do que o azul do céu: mesmo os satélites mais distantes ainda tem algo de atmosfera terrestre ao seu redor, e uma parcela considerável da gravidade em ação.

Mas quando a densidade da atmosfera cai o suficiente, as leis do movimento ficam mais puras: um objeto em movimento não vai deixar de estar em movimento a não ser que outra força aja sobre ele. Na falta de partículas de ar para fazer o serviço sujo, sobra apenas a gravidade. E ela não é tão eficiente assim nas distâncias que usamos para satélites. De pouquinho em pouquinho ela vai apontando a trajetória de um objeto em movimento rumo ao chão. Tanto que a Estação Espacial precisa ligar os motores de tempos em tempos para não cair.

E é aí que temos o sério problema da Síndrome de Kessler: qualquer força aplicada a um objeto em órbita vai ser mantida até que ele enfrente alguma resistência. E como vimos, resistência não é o forte das distâncias nas quais satélites orbitam o planeta. Tudo o que está orbitando a Terra está acelerado numa velocidade assustadora. Os foguetes precisam alcançar mais de 11 quilômetros por segundo para escapar da atração do planeta Terra. Claro, depois que a atmosfera fica menos densa é muito mais fácil acelerar, eles não sobem nessa velocidade, até porque derreteriam na hora.

Parece tudo muito lento pelo ângulo que vemos, à distância. Mas um satélite de GPS, por exemplo, está acelerado a mais ou menos 22.000 quilômetros por hora. Imagine o tamanho da pancada se você estivesse no caminho de um deles? Tem dois jeitos de colidir com um desses objetos: o primeiro é estar numa velocidade diferente, aí o impacto é a diferença das suas velocidades: se um carro a 120km por hora bate na traseira de um a 100km por hora, a pancada vai ser sentida mesmo que os dois estejam indo na mesma direção. A energia do mais rápido vai ser transferida para o mais lento.

E tem outro cenário, ainda mais terrível: se por um acaso esses dois objetos estiverem em rota de colisão frontal, soma-se a velocidade dos dois para ter a noção do impacto. Imagina dois satélites batendo de frente a 22.000km/h? Agora imagina que não tem quase nenhum ar e pouca gravidade para desacelerar os pedaços quebrados que sairiam voando…

Imagine então uma colisão que lança milhões de pequenos objetos a velocidades incríveis para todos os lados. E cada parafusinho solto numa pancada dessas é mais mortal que qualquer bala de qualquer arma aqui no planeta Terra. Uma colisão em órbita é o maior e mais mortal tiro de 12 que se pode dar!

Quem viu o filme Gravidade (2013) viu o perigo de pequenos objetos voando soltos em órbita. É uma boa simulação de um encontro indesejado com detritos de uma colisão espacial. Um grão de areia acelerado numa velocidade suficiente pode ser mais perigoso que um tiro de canhão. Toda aquela energia da velocidade vai virar energia de impacto na hora que encontrar um obstáculo.

Por sorte, o espaço é muito grande. A imagem que eu usei para exemplificar o texto é um exagero só para demonstrar quanta coisa tem em órbita, uma foto “normal” não pegaria nem mesmo a enorme Estação Espacial, de tão pequena que é em comparação com a Terra. Tem muito espaço livre, satélites raramente chegam perto uns dos outros, estamos falando de milhares de quilômetros de vazio ao redor de cada um. Já tivemos algumas colisões e explosões em órbita, mas a chance dos detritos pegarem outra coisa ainda é muito pequena.

Ainda.

A ideia por trás da Síndrome de Kessler – proposta pelo cientistas da NASA Donald J. Kessler – é que podemos chegar a um ponto de tanta coisa ao redor do planeta que uma ou mais colisões podem começar uma reação em cadeia: cada uma soltando milhões de pedacinhos supervelozes para todos os lados, que por sua vez acertam outros objetos, os transformando em mais pedacinhos supervelozes… e assim por diante até qualquer coisa colocada em órbita fatalmente ser atingida por um desses estilhaços.

Um satélite vira um milhão de tiros fatais, mil satélites viram um bilhão. E de repente não conseguimos subir nenhum foguete sem que ele vire uma peneira. Por falta de atmosfera, nenhum desses pedaços vai desacelerar o suficiente para não ser uma colisão fatal, só mesmo a gravidade para eventualmente trazer todo mundo para baixo, queimando na atmosfera (quase tudo, alguns pedaços muito grandes até cairiam). E a gravidade não tem pressa nenhuma nessa distância da Terra. Estamos falando de potenciais gerações da humanidade tendo que esperar a coisa acalmar lá em cima antes de poder usar satélites de novo. Ou mesmo para tirar uma foto do planeta… a atividade espacial simplesmente pararia até a gravidade trazer todo nosso lixo de volta.

Por mais que tenhamos muita coisa em órbita no momento, a densidade não é tão grande ao ponto de uma ou duas colisões eventuais começarem esse processo, claro, podemos dar muito azar, mas não é provável que vejamos isso acontecer com o número atual de satélites. Mas, todo dia lançamos mais um, mais um, mais um… satélites tem data de validade. Não dá pra reabastecer, e como eu disse antes, todo mundo em órbita tem que dar uma acelerada eventual para compensar a gravidade.

Sem contar que tecnologias caducam: satélites dos anos 70 eventualmente não servem mais para o mundo de banda larga na internet. Precisamos continuar lançando novos o tempo todo para atender a demanda de cada vez mais pessoas por cada vez mais capacidade de transmissão de dados. Não parece ser questão de se vamos alcançar a densidade perigosa para começar uma Síndrome de Kessler, e sim de quando.

E como o comentário que me incentivou a escrever este texto mencionava, com tanta gente dependendo de satélites, é um possível algo para disputas militares. Países como EUA, China, Rússia, Japão e a União Europeia (talvez até a Índia) têm como começar a atirar em satélites se quiserem. Se a densidade de tiros contra satélites aumentar, podemos começar uma reação em cadeia do mesmo jeito: pode acontecer “naturalmente” com colisões raras, ou pode acontecer à força se saírem destruindo tudo quanto é satélite. A massa crítica é de pedaços voando por aí, no final das contas.

Existem vários tratados sobre desmilitarização do espaço, que todos sabemos que são violados secretamente pelas grandes potências. Por enquanto estamos naquela mesma situação de destruição mútua das armas nucleares: ninguém quer começar essa disputa porque todo mundo perde. Mas se a tecnologia de lançar coisas em órbita for ficando mais e mais simples, podemos entrar na mesma situação da Coreia do Norte com seus mísseis nucleares. Um maluco pode causar um estrago gigante.

E aliás, mais gigante que o das armas nucleares. Algumas bombas atômicas matariam muita gente e tornariam uma pequena porcentagem da superfície da Terra inabitável, mas é algo que podemos reconstruir mantendo mais ou menos o mesmo padrão de vida em média. Agora, se começar uma guerra de estilhaços em órbita, os satélites que usamos para basicamente tudo hoje em dia deixam de funcionar. Isso impactaria, direta ou indiretamente, quase todos os 8 bilhões de humanos no planeta, para pior.

Sim, vidas humanas valem mais que poder usar GPS, mas é uma análise fria de impacto na continuidade da vida na Terra. Bombas atômicas seriam uma tragédia pontual, Síndrome de Kessler seria complicar a evolução tecnológica por talvez alguns séculos, com resultados imprevisíveis.

Tem gente pensando em como fazer limpeza orbital nesse exato momento, mas não se enganem, é praticamente impossível com a tecnologia atual. Não pela complexidade das máquinas, mas sim pelo volume de espaço que teria que ser limpo de detritos. E, é claro, seria mandar um time de faxineiros para o meio de um tiroteio… não é o tipo do lugar que ajuda no trabalho.

A minha impressão é que isso vai ser tipo aquecimento global no futuro: vai ter gente pegando artigos sobre a Síndrome de Kessler em arquivos históricos para dizer que desde a metade do século XX pensavam nisso, mas provavelmente só vamos ver alguma preocupação séria com o tema em uns 100 anos. A humanidade tem esse hábito de esperar a água bater na bunda, e eu acho que não vai ser muito diferente.

Por enquanto, só nos resta torcer para não darmos muito azar ou que nenhum déspota maluco com acesso a foguetes queira começar esse tipo de guerra. Cruzem os dedos.

Para dizer que o espaço não existe, para dizer que adoraria um mundo sem satélites, ou mesmo para dizer que ainda bem que os foguetes brasileiros explodem na decolagem: somir@desfavor.com

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Comments (6)

  • O que mais apreciei nesse texto não foi nem a possibilidade da nossa querida reação em cadeia dessa “bomba atômica espacial” banhada e composta de satélites, foi toda a explicação (bem didática) envolvendo forças, energia, gravidade e resistência do ar. Meu lado físico/professor-de-física curtiu bastante!

    E que possibilidade assustadora essa Síndrome de Kessler se apresenta. Tomara que não tenhamos malucos querendo brincar com foguetes ou iniciar uma guerra que envolva satélites.

    • “Tomara que não tenhamos malucos querendo brincar com foguetes ou iniciar uma guerra que envolva satélites.” Faço minhas as suas palavras, xyz.

  • Caramba, Somir… Essa ideia é assustadora! Nunca tinha pensado nisso, mas agora eu fiquei preocupado. Imaginem: satélites se chocando no espaço – por um infeliz acaso ainda muito improvável ou por ação de algum déspota maluco – e soltando um infinidade de estilhaços para todos os lados! E imaginem agora esses estilhaços começando uma reação em cadeia que faria “chover morte dos céus” e seria capaz até de travar o progresso tecnológico humano afetando toda a população do planeta! Entendo que seria preciso uma conjução de fatores extremamente funesta para que um desastre de tais proproções ocorrese, e em um futuro ainda bem distante, mas só de saber que há sim uma possibilidade de que isso um dia aconteça, eu já fico inquieto.

    • Quanto mais os nossos horizontes se expandem, mais somos expostos ao caos. O espaço “próximo” ao redor da Terra é imenso, imenso ao ponto de ser praticamente incontrolável. Uma hora ou outra a humanidade vai começar a ocupar esse espaço de verdade e eu nem quero imaginar a complexidade de manter as coisas num mínimo estado de ordem.

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