Passado banal.

Normalmente se chama pré-história o período da humanidade anterior à escrita. E por um motivo muito prático: sem uma forma de transformar ideias em algum símbolo reconhecível, tudo o que podemos fazer é presumir. É história o que deixa registros, é pré-história o que deixa apenas suposições. Isso me faz pensar em como a fase atual da humanidade vai ser vista no futuro… será que já estamos vivendo uma pós-história?

É consenso entre historiadores que as sociedades humanas já estavam bem complexas muito antes de surgirem os primeiros registros escritos descobertos por arqueólogos. Até porque encontrar algo escrito depende muito mais de como aquilo foi preservado do que propriamente quando começou a ser feito. Madeira, couro e outros materiais que podem ser usados para escrever desaparecem depois de milênios.

Ninguém acorda e inventa a escrita: os desenhos dos homens das cavernas sugerem que a ideia de transformar em símbolos o que se passava na cabeça do macaco pelado vem de muito longe. Faz todo o sentido que tenha sido um processo milenar de refinamento para transformar desenhos de animais selvagens em alguma forma de linguagem visual. E que milhares de anos de registros do dia a dia dos povos antigos tenham simplesmente desaparecido nas areias do tempo.

A história não começa com o primeiro uso de escrita, começa com o primeiro material escrito que sobreviveu até a era moderna, quando pode ser analisada e replicada.

Por sorte, alguns desses povos antigos deixaram registros em tabletes de barro e pedras. Essas civilizações são as mais conhecidas atualmente. Egípcios e mesopotâmios estão sempre entre os mais estudados do passado distante justamente porque conseguimos achar mais registros originais deles. Escrever coisas em superfícies resistentes a milênios não estava na lista de prioridades de ninguém. Aliás, nem hoje em dia.

E isso cria uma escassez sobre o passado que tem tudo a ver com o valor que damos para descobrir mais sobre esses povos tão antigos. Considerando o quanto de nós vem deles, dos primeiros povos a adotar o estilo sedentário e se sustentar com agricultura e domesticação de animais, é natural que fiquemos curiosos sobre como começou o que fazemos até hoje. A cultura deles é a base da nossa.

Mas temos pouco material sobrevivente. Arqueologia como conhecemos hoje é uma ciência recente. As pessoas não ligavam muito de construir em cima de cidades antigas nem de estragar artefatos antigos. E até por falta de método científico, muitas das histórias que atravessaram o tempo são uma mistura indecifrável de tradição oral, mitologia religiosa e invenções deslavadas. Estou olhando para você, Platão…

E tudo com um ângulo bem focado em figuras grandiosas: restam histórias sobre reis, imperadores e misturas complicadas entre fato e ficção. A vida do cidadão médio não ficava registrada diretamente. É bem provável que 99% das pessoas que sobreviveram do passado antigo até a cultura moderna tenham sido narcisistas que saíram do seu caminho para deixar registros. Se você parar para pensar na sua vida cotidiana, não existe demanda para deixar na história as coisas que faz.

Por isso, para um historiador ou arqueólogo, poucas coisas são mais fascinantes do que “achar” uma pessoa comum do passado. Primeiro porque o material sobre elas é imensamente mais raro, segundo porque é uma das melhores oportunidades de ver o passado sem distorções. A pessoa que paga para deixar sua história escrita em pedra provavelmente não vai querer colocar seus podres ali para a posteridade, né?

E vou além, talvez o cidadão médio só se importe com Cleópatras e Napoleões, mas até mesmo um diário de uma pessoa aleatória de uns dois ou três séculos atrás tem mais utilidade para entender o passado do que qualquer biografia sobre celebridades. O cidadão comum do passado é fascinante justamente por ser o mais raro a deixar registros, e muito menos propenso a ter seus feitos embelezados (ou distorcidos) por terceiros.

É por isso que eu começo a pensar no que o ser humano do século XXI vai deixar para os historiadores. A vida do cidadão comum está cada vez mais bem documentada através de textos e fotos. E com cada vez mais disso no campo digital, que com certeza não tem a durabilidade de pedra, mas é infinitamente mais reprodutível. É provável que não guardemos por milênios todos os posts de rede social de pessoas aleatórias, mas eu duvido muito que daqui há cinco mil anos seja difícil ter acesso às informações de hoje.

Aliás, eu presumo que o problema do historiador do futuro seja filtrar a avalanche de dados sobre qualquer evento do século XXI para achar informações bem estudadas. Quem quiser saber sobre a pandemia de 2020 vai ter uma quantidade enorme de dados, fatos, negacionismo e todo tipo de insanidade que a humanidade produziu no período. Talvez com uma grande desconexão de milhares de anos, seja difícil saber o que se passava por verdade no nosso tempo.

É o inverso do que temos agora: o cidadão comum vai deixar de ser uma peça rara da história e vai ser o caos a partir do qual o historiador vai tentar achar algum padrão. Seria espetacular se um cidadão de Uruk (considerada a primeira cidade moderna) tivesse um acervo preservado de milhares de fotos e pensamentos de rede social, mas só porque seria algo único. Se eu ou você deixarmos o mesmo conteúdo para o futuro, não vai ter o mesmo impacto.

E isso provavelmente vai impactar a forma como o cidadão do futuro enxerga o passado. Nós olhamos para trás e vemos alguns vultos no meio do deserto do desconhecido, eles vão ter de lidar com uma enchente de informação inútil (nem você liga mais para bilionésima foto do seu filho, cachorro ou gato) que pode ser bem chata. Talvez tão chata que só uma inteligência artificial tenha capacidade de analisar.

Dizem que conhecer o passado nos ensina a lidar com o futuro, mas estamos num momento um tanto quanto único: o passado ainda é fascinante por ser tão difícil de decifrar. Raridade cria valor. O que acontece quando o passado está todo lá arquivado nos mínimos detalhes, e pior, por milhões de ângulos diferentes altamente contraditórios? O Brasil de 2023 foi tomado pelos comunistas ou pelos nazistas? Ainda existiam comunistas e nazistas? Bill Gates não foi o dono de uma grande empresa de programas de computador? Por que tanta gente diz que ele fazia vacinas?

E se considerarmos que só máquinas terão capacidade de trabalhar com tanta informação, quem garante que o algoritmo da vez vai saber separar o joio do trigo? Quem garante que alguém vai ter interesse nas lições do passado se o passado tiver mil lições diferentes por acontecimento registrado pela massa de malucos nas redes sociais? A pós-verdade pode virar pós-história: a história depois que ficou virtualmente impossível estudar história.

E já estamos vendo isso acontecer: na guerra da Ucrânia ficou muito claro como a informação vinda da internet, por mais realista que pareça, não tem mais compromisso com a verdade. Quando todo mundo pode registrar os eventos, não se sabe o quanto eles foram manipulados. Ninguém é responsável pela veracidade da informação. E ainda estamos engatinhando na tecnologia de manipulação de imagens e vídeos, sabe-se lá quão indiferenciáveis da coisa real serão os deepfakes do futuro próximo.

Há uma combinação estranha nos esperando: a entre desinteresse na história cotidiana (por puro volume de informação deixada) e a capacidade sem precedentes de manipular a informação que teremos. Eu continuo acreditando que na média mais avanços científicos tornam a vida humana melhor, mas não sou inocente: algumas coisas podem ficar bem estranhas com novas tecnologias, e o “passado do futuro” pode ser uma delas.

Eu não duvido que arqueólogos e historiadores vão continuar existindo, até porque o erro mais comum da ficção científica é achar que a humanidade do futuro ou mesmo espécies alienígenas não teriam interesses variados. Se a humanidade tiver um trilhão de pessoas no ano 3.000 (não é difícil, viu?), alguns bilhões no mínimo vão ter interesse em história, e com certeza uns milhões desses vão trabalhar só com isso. É claro que o interesse vai continuar, mas o que diabos eles vão depreender do começo do século XXI está em aberto. Até porque pode nem ser uma era desejável de se estudar.

Por pura escassez de informação, Uruk provavelmente vai ser eternamente mais interessante que Nova Iorque ou Rio de Janeiro. Eu até penso que isso já acontece de alguma forma hoje em dia: pode ter algo aí que explique por que a maior parte da humanidade ainda segue religiões milenares e cisma com as mesmas bobagens das primeiras civilizações. É algo mais fantástico mesmo, tempos imemoriais onde tudo pode ter acontecido e não deixado rastros. Muitas das lições de ética, moral e até mesmo filosofia que ainda aprendemos bebe muito dessa fonte milenar.

Da ideia de que muito antigo e misterioso é mais interessante do que a banalidade dos tempos modernos. Tempos em que as pessoas não estavam deixando tantos rastros e oportunidades de nos decepcionar. A escassez do passado pode explicar muito da mentalidade do presente, criando um padrão de interesse que nos prende às raízes mais profundas da espécie, não necessariamente pela sabedoria do passado (eles falavam e faziam muita bobagem também, mas com muito mais desculpa para tal), mas pela graça que tem olhar para esses povos e projetar neles o que quisermos.

O passado recente e o presente nos tiram essa possibilidade. Muita coisa ficou registrada, os dragões desapareceram dos mapas e dão lugar para a aprofundada opinião política de Arlindo, 38, microempresário de Petrópolis/RJ. É bem provável que o cidadão médio do passado distante tenha sido só um mesopotâmio-médio mesmo, mas como não temos informações melhores, seu cotidiano e ideias são mais valiosos.

Me faz pensar se daqui há mil anos ainda não vai ter gente discutindo aborto, homossexualidade e todo tipo de assunto que já deveria estar mais do que bem resolvido depois de tanto tempo dando murro em ponta de faca. A história é menos interessante do que a pré-história. E provavelmente menos ainda quando se chega na pós-história. A banalização das memórias do cidadão do século XXI pode deixar o passado ainda mais fascinante para quem vier depois de nós. O que deixarmos vai ser analisado por uma inteligência artificial para achar uma média, e a média, até onde podemos ver, não é lá um poço de sabedoria.

Quantas acusações de fascista ou de comunista na rede social o historiador médio do futuro vai ler antes de achar tudo um tédio e tentar aprender mais sobre escrita cuneiforme para entender povos realmente misteriosos? O quanto isso vai impactar os temas interessantes daquele tempo? Obviamente não saberemos sobre o futuro deles, mas podemos usar essa ideia para olhar a história que conhecemos agora.

O quanto de como você enxerga o mundo está poluído por esse fascínio com o passado misterioso? Você pode nunca ter sequer lido um artigo da Wikipédia sobre os egípcios, mesmo assim tem algo de curioso sobre como parecemos estar preocupados com basicamente as mesmas coisas que eles. É como se a história recente fosse menos valiosa. Eu não estou aqui em 2023 falando sobre como é bizarra essa briga de internet entre pessoas se acusando de defender ideologias do século passado?

Fascismo e comunismo deram com os burros n’água, foi um fracasso no final das contas, e milhões morreram por causa disso. Mas é uma história que parece não entrar na cabeça do cidadão médio. As ideias de organização social, moralidade e ética de civilizações pré-históricas, por sua vez, fazem parte dos discursos mais ouvidos pelo cidadão médio, os discursos religiosos. As religiões modernas são modernas só por aceitarem Pix no dízimo, porque são cópias de cópias de cópias desde os primeiros registros históricos desse tipo de pensamento abstrato.

Liberaram comer camarão e não precisa mais ir para as montanhas quando menstrua, mas ainda é abominação dois homens se beijando. Talvez isso tivesse algum peso na Mesopotâmia, quando ter filhos era essencial para ter mão-de-obra na sua plantação, mas se você olhar para os últimos dois séculos, será que mudaria alguma coisa na humanidade deixar de se preocupar com fazer tantos filhos? O mundo moderno não consegue se virar com casais homossexuais que não fazem filhos ou que adotam o excesso (porque não falta criança)? Será que aborto é tão danoso assim para a sociedade? Talvez no Egito antigo fosse. Mas é agora? Nossos valores são nossos ou são resultado de uma cegueira sobre história recente?

Talvez pela história recente ser menos “mágica”, não tenha o mesmo peso no imaginário popular. E aí, deixamos de ver o mundo como ele está para ver como ele teoricamente já foi. Imaginando o historiador do futuro eu consigo enxergar como história recente (documentada até demais) pode parecer menos interessante, e por tabela, ensinar menos sobre a humanidade.

Tomara que consigamos sair de Uruk um dia…

Para dizer que este texto vai matar um historiador de tédio no futuro, para dizer que quer saber mais sobre Uruk, ou mesmo para dizer que está esperando minha fase de tecnologia voltar: somir@desfavor.com

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Comments (2)

  • Como a otimista incurável que sou, quero crer que nesse futuro distante os meus colegas terão acesso à máquinas do tempo e poderão fazer trabalho de campo na idade desejada. Que inveja.

  • Basta encerrarem o .pdf e o .mp4, igual aconteceu com o flash, que um pedação da história e feitos da humanidade já vai ficar perdido. Nem mesmo o Wayback Machine é infalível, e a Google já está deletando um monte de contas inativas. Enquanto isso, as pirâmides do Egito e os grafites romanos seguem intactos.

    Sempre existe a possibilidade de quase tudo o que produzimos hoje sumir em alguma pane e os estudiosos do futuro tenham como registros do século 21 apenas pichações sobre drogas nos muros de São Paulo, ou aquela parede de chicletes de Seattle, ou aquela ponte de Paris que tem um monte de cadeados do amor. Seria bom começarem a escrever alguns artigos científicos em pedras…

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