História compartilhada.

Em 2023, praticamente todo evento que acontece no mundo acaba arquivado em algum lugar. Usamos incontáveis bytes para armazenar vídeos, fotos e textos que um dia serão a memória da espécie e provavelmente objeto de muito estudo. Mas já parou para pensar que esse pode ser um momento único da jornada humana no universo?

São pelo menos uns 300.000 anos de homo sapiens nesse mundo, e dessas centenas de milhares, só alguns milênios bem recentes contam com registros recuperáveis do que aconteceu na vida de nossos antepassados. Dependemos demais de escrita e arte para depreender a cultura e os hábitos de povos antigos, e mesmo assim, é um trabalho de detetive juntar as peças para formar uma narrativa coerente.

Só que piora: algo que pouca gente explora ao falar de história é o problema da distância. Vários grupos humanos saíram (provavelmente da África) e foram se espalhando pelo mundo. Esses grupos viveram realidades muito diferentes, quase sempre baseadas nos recursos disponíveis em suas regiões. Começamos no mesmo ponto, mas eventualmente europeus deram de cara com povos que pareciam viver em outra era.

Cada ambiente gerou caminhos evolutivos diferentes. Alguns povos acabaram se organizando de forma mais parecida com a que usamos hoje em dia, outros mantiveram estruturas sociais bem diferentes, algumas “presas” em milênios anteriores. Os índios brasileiros são um exemplo clássico desse descompasso: viver numa floresta tropical é algo completamente diferente de viver em grandes descampados férteis como em boa parte da Europa.

Mas é mais complexo ainda, como eu disse antes, a distância entre os povos pela maioria da nossa existência criou bolhas de organização e desorganização ao redor do mundo. Na mesma região, podia surgir uma civilização focada em construir grandes cidades e monumentos, e ao seu lado viver um povo nômade que sequer se interessava por agricultura. E mais, essas bolhas cresciam e explodiam de tempos em tempos.

Impérios surgiram e caíram em lugares diferentes sem causar grandes impactos no resto do mundo. Pudera: não era fácil se deslocar de um lugar para o outro, e não tinha muito o que carregar junto que levasse sua cultura para outras regiões. Nem mesmo grãos, que quase todos os povos usavam de base na alimentação, podiam ser levados em grandes viagens. O comércio da antiguidade tinha muitas especiarias e tecidos como a seda por um motivo bem prático: dava para carregar ao redor do mundo.

Os povos só se esforçavam mesmo por coisas como metais específicos, e isso só depois da Era do Bronze (que acabou em desastre, um dia ainda falo disso), o resumo desse ponto é: as pessoas não eram mais medrosas ou preguiçosas que as atuais, era muito difícil mesmo ter contato com o resto do mundo. A história da humanidade é feita de muitos pontos desconjuntados, povos com enormes diferenças nos seus estágios de organização social e inúmeros casos de cidades e nações que não deixaram grandes rastros, mas que com certeza duraram séculos.

A nossa história não tem muito padrão até mais ou menos os últimos dois ou três séculos. O mundo não se conhecia. Invenções não se propagavam. Histórias não eram contadas. Com avanços em transporte e comunicação, fizemos a transição entre mundo antigo e mundo moderno, e foi só com tecnologia de impressão, navios e capacidade de investimento em expedições e conquista de novos territórios que entramos na era da globalização.

Mais ou menos desde o fim da Idade Média, começamos a ter uma história compartilhada. Cada conquista europeia a seguir adicionando mais partes do mundo ao estágio moderno de todo mundo compartilhar o mesmo tempo. Não é juízo de valor sobre os métodos dos conquistadores, é só uma análise fria sobre o resultado disso. O relógio do ser humano sincronizou de vez quando começamos a ficar sabendo sobre o que acontecia do outro lado do mundo como se fosse uma notícia local.

Em 2023, eu arrisco dizer que 99% da população humana está vivendo no mesmo ano. As coisas finalmente acontecem ao mesmo tempo com comunicação na velocidade da luz na internet. Já disse várias vezes, mas adoro repetir: se o mundo atual te incomoda, e é natural incomodar, nunca se esqueça que você faz parte de uma das primeiras gerações que tem que lidar com a humanidade inteira ao mesmo tempo.

Nossa programação genética não tinha nenhum plano para isso. O nosso cérebro mal consegue lidar com algumas dezenas de pessoas de forma decente, quem dirá oito bilhões. Somos feitos para nos importar bastante com o que outros macacos pelados fazem, o que fazia todo sentido se o mundo fosse do tamanho antigo; de apenas uma vila e algumas notícias perdidas sobre reis e generais. Mas quando numa sessão de rede social você vê mais gente diferente que seus antepassados viam na vida inteira, é claro que alguma coisa não vai funcionar direito na sua cabeça.

Minha teoria é que epidemia de transtornos mentais está diretamente relacionada com essa história compartilhada, com a ideia assustadora do seu relógio ser o mesmo da humanidade quase inteira. Eu fico ansioso quando tenho que entregar um trabalho e ir ao dentista no mesmo dia, imagina só estar exposto a mil acontecimentos paralelos no mundo? É claro que estamos mais ansiosos, o cérebro está tentando encaixar tudo isso na nossa agenda de interesses e não acha horário livre.

Não fomos feitos para nos importar com tanta coisa quanto o mundo moderno nos cobra importância. O nosso cérebro tinha que ter o triplo do tamanho para começar a dar conta disso, tanto que muita gente precisa andar com um computador/memória no bolso para não perder totalmente o fio da meada da realidade. Coisas como smartphones só deram tão certo porque estávamos ficando desesperados por um suporte à história compartilhada de bilhões.

E eu realmente acredito que coisas como chips cerebrais para aumentar nossa capacidade de processamento e armazenamento de informações vão se popularizar assim que se tornarem minimamente seguros. A demanda por viver no “mesmo segundo” que os outros não parece diminuir. Antes da internet, eu lembro de ficar incomunicável, de estar sozinho, de me concentrar nas coisas e pessoas que estavam mais próximas. Tem algo de natural nisso, porque é o tamanho do mundo e a capacidade de sincronização que vem de fábrica nos nossos cérebros.

Tudo o que passa disso é um esforço para a mente. Não é papo Amish de ignorar tecnologia, é só uma realização que pode ajudar na sua saúde mental: sim, é complicado e cansativo mesmo tentar acompanhar um mundo que acontece ao mesmo tempo para bilhões. É normal ficar sem saco, é o esperado até mesmo das pessoas mais bem adaptadas à insanidade da informação do século XXI. Ninguém é capaz de dar conta disso sem fazer força.

Ansiedade é uma resposta natural da mente quando tem muita coisa para lidar ao mesmo tempo. Especialmente se você escapa do presente e fica olhando para passado e futuro ao mesmo tempo. Na verdade, ela parece até uma defesa: você vai ficando mais e mais nervoso e perdendo capacidade de concentração, é o ser cérebro deletando arquivos o mais rápido que pode para manter alguma coisa funcionando.

Quando a ansiedade não se torna patológica, isso é, quando começa a te impedir até mesmo de fazer o básico para manter sua vida, é inteligente buscar ajuda e até mesmo alguns remédios eventuais (receitados por médicos); mas muito cuidado para não criar alergia ao processo muito razoável de ficar sobrecarregado com o mundo moderno e ter que cortar os excessos de atenção.

Eu digo isso porque eu vivo excedendo meus limites de atenção e caindo nessa armadilha. Fico culpado porque não estão conseguindo colocar meu foco em 20 coisas ao mesmo tempo. Oras, é claro que não consigo. Toda vez que você tenta abraçar esse tempo único humano sua mente está se esforçando bastante. Cansa. Tem limite. Inclusive escrever textos para o Desfavor é uma ótima terapia: é um tempo que eu esqueço o resto e estou olhando só para uma coisa. Talvez ler esses textos seja uma forma de vocês lidarem com o excesso.

Eu já tento tratar ansiedade como um aviso. Como se o meu computador estivesse ficando lento e precisasse desligar alguns programas para continuar funcionando bem. E a realização de que vivemos numa era de história compartilhada é importante: o mundo vai tentar ocupar sua mente o tempo todo, porque até segunda ordem, não tem mais volta. Estar vivendo a mesma história de outros bilhões tem esse preço. Isso vai continuar acontecendo de fora para dentro, sabe-se lá por quantos séculos ainda, então a única alternativa viável é se proteger de dentro para fora.

Sim, se você está ansioso(a), você não é maluco(a), é uma inevitabilidade da forma como a nossa história toda se alinhou no mesmo momento. Você foi feito para viver numa tribo pequena e se preocupar com meia dúzia de coisas. Nossos antepassados passaram quase todo o tempo de existência humana nesse mundo em grupos muito separados. Assim como desenvolvemos gosto por alimentos gordurosos, doces e salgados porque historicamente era impossível chegar ao ponto de ficar gordo ou viver o suficiente para desenvolver algumas doenças; desenvolvemos um interesse maluco pelo que acontece com outras pessoas e desejo de maximizar a quantidade de interesses ao mesmo tempo porque era impossível chegar nesse limite cerebral de ansiedade/burnout.

Em 2023 você provavelmente pode morrer de tanto comer doces gordurosos e provavelmente pode perder a cabeça de tanta coisa que pode prestar atenção ao mesmo tempo. O futuro distante tende a nos livrar um pouco disso com grandes distâncias e lag de comunicação, mas não estamos nem próximos de ter essa solução na mesa.

Por enquanto, a história é uma só, acontece ao mesmo tempo, e não nasceu ninguém ainda com a capacidade de absorver toda essa informação sem ficar com algum transtorno mental.

Para dizer que a ansiedade bateu lendo isso, para dizer que é só fazer tudo malfeito, ou mesmo para dizer que quando cai o WhatsApp sua vida melhora 100%: somir@desfavor.com

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Comments (10)

  • Tem uma passagem muito bonita em “Em busca do tempo perdido”, do Proust (o livro todo é muito bonito) em que o autor discute a novidade de poder estar em lugares muito diferentes no mesmo dia em um passeio de automóvel, em um trajeto que antes levava uma semana de carruagem. A mudança da nossa percepção de tempo e espaço durante o século XX é emocionante.

    • Esse livro é sensacional do começo ao fim! No meu doutorado, embora tenha pesquisado Dostoiévski, tive que me enfiar no Proust um pouco pra tratar sobre teoria da narrativa e evolução da teoria do romance no século XIX pro século XX. Debates teóricos à parte, é uma excelente leitura, mas não é para iniciantes, diria, sem querer ser elitista ou algo do tipo. A escrita dele é difícil, segue aquele modelo de “fluxo de consciência” com frases enormes intermináveis, blocos de letras com trocentas subordinadas e vírgulas, as vezes tu até se perde na ideia. Mais do que isso, tem que ter disciplina e fazer um projeto de leitura pra lê-lo, pois são 7 livros ao total, em torno de 3 mil páginas de leitura.

  • Engraçado que acho que sou meio old school já: ainda consigo manter o foco em alguma coisa e me desligar de outras coisas ao redor, não fico ansioso fácil com milhares de coisas bombardeando ao meu redor. Mas, sobre o tema, realmente algo a se pensar, já que esse excesso de estímulos pode ser prejudicial pra gente a longo prazo. Acho que, com a evolução inclusive da inteligência artificial aí, vai chegar uma hora que vamos ter que reavaliar, de alguma maneira, a forma com que lidamos com a tecnologia em nossas vidas e na sociedade.

  • A “Aldeia Global” prevista por Marshall McLuhan hoje é uma realidade. E tá todo mundo ficando piradinho da silva com isso…

    • Ninguém aguenta tamanho bomardeio diário de informação! Com todo esse excesso de estímulos sensoriais e tanta coisa “disputando” a nossa atenção, acabamos todos “intoxicados” e fica cada vez mais difícil até perceber o que é realmente importante e o que não é.

  • É por isso que muitas pessoas diagnosticadas com autismo provavelmente são só pessoas normais.
    (se bem que colocar no mesmo espectro a pessoa que é mais na dela e a pessoa que grita e bate a cabeça na parede não ajuda)

    • É que Autismo é o diagnóstico de uma série de neurodivergências que impactam a socialização. Concordo, deveriam especificar ao grande público, mas dado que o caminho psicoterápico tanto ao Asperger tanto ao não comunicativo é muito parecido…

    • Eu sinceramente fico incomodado com essa coisa de, hoje em dia, tudo ser diagnosticado com autismo. Quer dizer, não querendo generalizar também, eu sei que ele existe por aí, nem sou psicólogo, psicoterapeuta, psiquiatra ou psicopedagogo pra diagnosticar isso. Mas, ao que me parece, é uma modinha, ou tendência, em querer medicalizar as crianças. “Na minha época”, por assim dizer, a moda era o tal do TDAH, dar ritalina pra criança etc, agora parece que de TDAH mudou pra autismo.

      Aliás, perdão talvez pela ignorância, mas quando se fala em autismo, tenho em mente aquela ideia um tanto estereotipada de criança que fica sempre quieta na dela, tem dificuldades de interação, vive sempre de braços e dedos cruzados e não gosta de ser abraçada nem de encarar nos olhos, mais ou menos como aquele personagem lá de The Good Doctor. Já conheci algumas raras pessoas assim, são difíceis de conviver, mas não impossíveis. E, partindo dessa ideia, não imagino que toda criança que seja diagnosticada com autismo na escola seja também do mesmo jeito.

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