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Colunas

Inteligência inútil.

No texto recente sobre artistas ficando incomodados com a Inteligência Artificial produzindo imagens, eu pulei uma reflexão mais específica para não deixar o texto muito confuso. Hoje eu desenvolvo a ideia: inteligência é supervalorizada para boa parte das tarefas das quais dependem a sociedade humana. A revolução da IA tende a ser bem mais “burra” do que se imagina. E entender isso pode te ajudar a se preparar, agora mesmo, para um futuro próximo.

Vamos falar de nós primeiro, porque tudo isso gira ao redor dos humanos. Por mais que a inteligência do homo sapiens sapiens tenha sido o diferencial para nos colocar com folga no topo da cadeia alimentar da Terra, ela não é tão única assim. Muitos animais têm inteligências parecidas. O DNA humano é muito parecido com quase todos os mamíferos, e assustadoramente próximo até mesmo de insetos e bactérias.

E isso significa que até mesmo um cachorro tem uma lógica interna parecida com a nossa. O grau de complexidade do pensamento de uma pessoa vai muito mais longe, mas as bases são nem próximas. De um ponto de vista puramente evolutivo, podemos dizer que o ser humano exagera absurdamente na quantidade de informação que processa na sua mente. Se o objetivo é só sobreviver até se reproduzir, as baratas já otimizaram o processo quase que no limite da perfeição.

Mas o humano foi mais longe. O ser humano sobreviveu, se multiplicou, desenvolveu a física quântica e postou uma foto da bunda no Instagram. A nossa regra é criar novas regras o tempo todo. Diga o que quiser, no final das contas funcionou. A humanidade tirou muito proveito dessa capacidade de pensar em muitas coisas ao mesmo tempo e se perder quase que infinitamente dentro das próprias manias.

Só que isso não significa que é assim que o mundo funciona. Na física, vale a lei do menor esforço. E é essa a lei que tende a reger o mundo da inteligência artificial e automação em geral. Tanto que é isso que acontece desde que o ser humano começou a usar ferramentas para facilitar seu trabalho. Uma faca não fica melhor na sua função de cortar se tiver um martelo na outra ponta. Quem precisa cortar não precisa do peso e da função extra. Quem precisa martelar não precisa de uma ponta afiada do outro lado.

A “mágica” da mente humana é ter várias funções disponíveis ao mesmo tempo, prestar atenção no ambiente e manter vários pensamentos ativos. Isso nos ajuda muito na parte social, que virou um dos maiores diferenciais evolutivos da espécie, mas na hora de realizar funções mais mecânicas… não é lá grandes coisas.

Vamos imaginar uma fábrica de garrafas de refrigerante. No final da linha de produção, precisam colocar as tampas metálicas na boca da garrafa. Um ser humano consegue fazer isso. Aliás, é espetacular como um ser humano consegue ser colocar em basicamente qualquer função e dar conta dela. Ensina a pessoa a colocar a tampa e ela começa a fazer isso. O trabalho dela é pegar uma tampa, pressionar ela contra o bucal e confirmar se a garrafa está fechada.

Só que ao mesmo tempo, “de graça”, o ser humano tem o cérebro trabalhando em reconhecer tampas e garrafas, suas funções, sua utilização fora da fábrica, entendendo quais são os materiais de ambos os objetos, como eles reagem diferentemente aos mais diversos estímulos externos, a percepção de suas cores, o ambiente da fábrica ao seu redor, o trabalho da pessoa que veio antes na cadeia de produção e o trabalho de quem vem depois.

O ser humano pode inclusive ver uma mosca voando e se preparar para assustá-la caso chegue perto das garrafas. Ele pode notar se o número de garrafas está maior ou menor que no dia anterior, pode fazer contas rápidas para ver se as tampas vão ser suficientes… e tudo isso ao mesmo tempo que pensa na conversa que teve com a mulher de manhã ou na mudança do cunhado que vai acontecer no final de semana e vai precisar de sua ajuda. Será que a gasolina vai dar? Ele mora meio longe. Aliás, ele é pão-duro, deveria contratar uma empresa para isso… meu time joga hoje ou amanhã?

Aí, a empresa compra uma máquina que pressiona a tampa na garrafa a cada uma que chega pela esteira. Toda a complexidade desse ser humano e suas imensas capacidades de entender cada objeto e pessoa ao seu redor enquanto navega por mil memórias diferentes… demitida. A máquina faz a mesma coisa dez vezes mais rápido e não precisa de descanso ou férias. A máquina não ganhou porque o ser humano era um inútil, a máquina ganhou porque ela não tem nada a mais do que o necessário para sua função. Não faz o menor sentido criar uma máquina que pensa tudo o que o ser humano pensa se o que você precisa dela é colocar tampas em garrafas.

Porque nós somos uns exagerados. E cada vez mais exagerados. Faz tempo que eu falo do excesso de informação ao qual o ser humano médio é exposto nos dias de hoje, e isso tem muito a ver com a evolução tecnológica: não que as máquinas tenham ficado muito complexas, mas cada uma delas faz sua tarefa de forma tão focada que para cada lado que olhamos, há um grau de complexidade cada vez maior.

Mas esse grau de complexidade não vem de máquinas mais humanas nesse sentido de entender um pouco de tudo, muito pelo contrário: é a especialização delas que se une num cenário geral de excesso de informação. No passado, o mundo de um ser humano era formado por suas relações interpessoais, com o conhecimento limitado de outras pessoas que também tinham que dividir sua atenção em vários lugares diferentes. Quando as máquinas e os algoritmos começaram a mastigar recursos e informação de forma tão precisa, para todo lado que você olha tem complexidade.

Se você quiser trabalhar no mercado financeiro, por exemplo, tem milhares de sistemas cuspindo informação de incontáveis fontes na velocidade da luz. E outros milhares fazendo transações automatizadas com a incrível vantagem de só precisar se concentrar nisso. Tentar absorver e tratar essa informação faz com que muita gente nesse setor viva em estado permanente de estresse, drogados até o limite da resistência do corpo para conseguir lidar com isso.

Há um bom argumento aqui que as nossas máquinas e programas não estão ficando mais inteligentes, e sim, mais focados. Quando você consegue entender exatamente a função que precisa ser realizada, pode montar algo que só faça aquilo, de forma muito mais rápida e precisa que qualquer ser humano poderia sonhar em fazer. E isso não quer dizer que a máquina é mais esperta que a gente, quer dizer que ela não é esse exagero todo multifuncional que nós somos.

Você percebe isso na sua vida: quando você se concentra de verdade, consegue trabalhar muito bem, e vou até mais longe, quando algo como uma paixão sequestra seu senso de prioridades, é comum que você seja melhor até mesmo em questões emocionais como demonstrar afeto e prestar atenção de verdade no outro. Mesmo a máquina biológica do cérebro é mais eficiente quando não tem que dividir atenção.

Minha impressão é que a discussão sobre inteligência artificial está erroneamente atrelada à substituição do ser humano. Se a história da tecnologia nos ensina algo, é que o foco nunca foi em ser mais humano, e sim em ser mais eficiente em tarefas específicas. E mesmo que você queira colocar a discussão sobre possíveis bonecas (e bonecos) sexuais aqui dentro, espero que saiba que seres humanos são bem mais do que ferramentas para dar prazer e atenção para uma pessoa específica.

Para realizar uma função ou um conjunto de funções bem definidas, a inteligência humana média é desnecessária. Porque como eu descrevi no exemplo do trabalhador da fábrica de garrafas, quase todo o seu potencial intelectual é desperdiçado naquele trabalho. As vantagens de ter um modelo de compreensão tão grande da realidade não são suficientes para compensar a perda de eficiência em funções bem definidas.

Inteligência artificial e robôs vão tomar conta da maioria das nossas funções independentemente da criação de uma inteligência artificial que imite um ser humano perfeitamente. Porque se é para ser honesto, não precisamos de um ser humano completo para a imensa maioria das funções das quais nosso mundo depende. Admito ser meio radical nesse ponto, mas eu defendo que nem a parte das relações humanas depende tanto assim de seres humanos completos. Talvez não dependa nada. Um robô que só pensa em você e vive em sua função pode ser suficiente para… 99% da humanidade como companhia. Especialmente depois de algumas gerações criadas ao redor deles.

Estamos a uma máquina ou programa bons o suficiente da substituição de praticamente todas as funções que o ser humano faz. Não precisa de um que faça tudo, e sim como fazemos desde sempre: vários que saibam focar perfeitamente nas suas atribuições. O admirável mundo novo surge dessa união de capacidades específicas.

Talvez o ponto mais curioso dessa ideia é que nunca tenhamos demanda verdadeira por robôs ou inteligências artificiais parecidas com pessoas. Meio como o carro voador, algo que todo mundo há algumas décadas tinha certeza de que existiria em 2020, mas que a maioria de nós mal se importa. O ser humano não é tão… necessário assim. Até porque com mais de 8 bilhões de nós no mundo, não está exatamente em falta.

Suas funções podem e devem ser substituídas eventualmente, porque existe vantagem em fazer isso melhor. Mas ser humano… bom, isso a gente já faz do melhor/pior jeito possível. Abrace a inteligência artificial e as máquinas para realizar as coisas do melhor jeito, nós vamos conviver por muitos e muitos séculos sem necessariamente precisarmos de substituição. Olha para o que você faz e se pergunte como a máquina faria melhor, e aí, tente ser mestre dessa máquina. É bem provável que inteligência artificial generalista não seja desenvolvida durante nossas vidas, ou mesmo que seja e não tenha muita aplicação na vida real… não em comparação com as especializadas.

Você não é substituível porque não tem demanda para te trocar. O que você faz no mundo sim.

Para dizer que eu preciso mudar o disco, para dizer que se sentiu bem inútil agora, ou mesmo para dizer que nem computador aguentaria a chatice do seu trabalho: somir@desfavor.com

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humanidade, inteligência artificial

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