Broken in China.

Na discussão sobre o “imposto da blusinha”, o avanço do governo sobre importações abaixo de 50 dólares que não costumavam sofrer cobrança de imposto, muito se fala sobre como a cobrança impacta o cidadão, mas até por causa do festival de desinformação que o próprio governo criou, não sobrou espaço para a verdadeira discussão aqui: como um país deve lidar com a “guerra” que a China trava contra sua economia?

Imagine, se for capaz, um mundo onde essa gentalha que briga em rede social fosse irrelevante e pudéssemos conversar sobre as coisas sem lidar com chiliques e acusações constantes. Nesse mundo poderíamos olhar para a avalanche de produtos manufaturados muito baratos vindos da China pelo que eles realmente são: manipulação econômica.

Quanto mais você conhece o sistema chinês, mais você percebe como muitas coisas não são sustentáveis. Sim, eles produzem quantidades gigantescas de praticamente tudo, o país é, de uma certa forma, o sonho dourado dos comunistas antigos como Stalin: pegaram o povo que vivia nas fazendas e enfiaram eles em fábricas. A China é a potência industrial que os comunistas almejaram quando começaram a forçar seu povo a sair das áreas rurais.

Claro, no meio do caminho abriram sua economia e se tornaram uma ditadura capitalista na prática, mas a meta que Stalin criou para União Soviética “deu certo” depois que seu fã número 1, Mao, morreu. O ditador chinês do pós-guerra era um incompetente de marca maior, mas consolidou o poder de tal forma que seus sucessores tiveram força para tornar a imensa população no chão de fábrica da humanidade.

E como os chineses conseguiram vencer a competição com outros países para ganhar esse posto? Preço. Os competidores foram caindo um após o outro, americanos, japoneses, alemães… ninguém conseguia entregar tanto produto tão barato quanto os chineses. A jogada de mestre deles foi testar o mínimo de qualidade possível que os consumidores aceitariam, e depois de algumas décadas, acharam a medida perfeita.

Quem é mais velho sabe muito bem da fama que os produtos chineses tinham. Era barato, mas quebrava rápido. Eventualmente eles acharam um ponto de equilíbrio entre preço baixo e qualidade suficiente que reduziu e muito o preconceito contra a indústria chinesa. Pessoas estão comprando carros chineses. Se alguém te dissesse que ia comprar um carro chinês nos anos 90, você colocaria a pessoa numa camisa de força.

Com a descoberta do “bom o suficiente”, os chineses inundaram o mercado global com produtos muito mais baratos que a concorrência local. A principal vantagem deles era mão de obra barata e abundante. Fábricas e mais fábricas lotadas de pessoas praticamente sem direitos trabalhistas, numa cultura que pressiona pessoas a obedecer e trabalhar de forma doentia. Nada da indolência americana ou do garantismo europeu. Só os japoneses tinham algo parecido, mas num país muito mais avançado, e por consequência, caro.

Só que o mundo não fica parado. O dinheiro entrou na China de forma a torná-la a segunda maior economia do mundo, e apesar dos esforços do Partido Comunista, o dinheiro acabou se espalhando pelo país. A vantagem competitiva de uma população imensa sem educação que competia pelos mesmos trabalhos manuais foi se dissolvendo em algumas gerações.

Os salários aumentaram, a capacidade de produzir coisas melhores também. Havia um risco real da China pegar o mesmo caminho que o Japão e começar a estagnar. Mas o governo local não poderia deixar isso acontecer, a promessa de crescimento infinito é a base do seu poder. Foi então que uma prática que começou como pura corrupção para ajudar amigos de oficiais do governo se tornou estratégia nacional: subsídios.

O governo começava a investir o dinheiro mais e mais em manter as vantagens competitivas da sua indústria. Mas o protecionismo chinês funciona de forma diferente do que costumamos ver. A ideia é manter os preços dos seus produtos tão abaixo do praticável em outras economias ao ponto de impedir que elas entrem nos mesmos mercados.

Uma grande parte do orçamento chinês não vai para programas sociais, é o país comunista menos comunista da história. Esse dinheiro volta para o setor produtivo mantendo os custos de produzir artificialmente baixos. Os impostos de exportação praticamente inexistem, e quando precisam ser cobrados, o governo dá um jeito de descontar em outros lugares para manter as contas das suas indústrias minimamente em dia.

Não é estranho que um país que se diz comunista e tem a segunda maior economia do mundo não seja referência em distribuição de renda e serviços para a população? Nem estou dizendo que é tudo uma porcaria, mas sim que não passa muito do mínimo de países capitalistas bem administrados. Era justamente o diferencial de se dizer comunista… e nem isso.

O dinheiro, que também desaparece em corrupção endêmica (gêmeas!), acaba indo para manter sua indústria agressiva o suficiente para desanimar a maioria dos outros países do mundo de tentar competir. O governo chinês quer que a indústria brasileira desapareça, não por odiar os brasileiros, mas porque essa é sua vantagem competitiva. Eles agem assim contra o mundo inteiro.

Não precisa ver a China como um monstro maligno, mas os objetivos deles não se alinham com o desenvolvimento de grandes indústrias em outros países. Eles conseguiram fazer os EUA morderem a isca de produtos baratos e agora a maior economia do mundo depende muito deles para continuar funcionando.

Eu não tenho uma opinião muito visceral sobre globalização, acredito que tenha seus pontos positivos e negativos. Até por isso o que eu acho importante é que as pessoas estejam informadas sobre isso: a China precisa manter outros países desmotivados a produzir para que continue funcionando. O sistema deles parece forte, mas por esse ângulo de exportação de produtos manufaturados, é um castelo de cartas.

Cada indústria competitiva que nasce em outros países é um golpe quase que mortal para a economia chinesa. O mundo topou passar a produção de quase tudo para eles, e eles montaram seu sistema todo em cima disso. Tire isso dos chineses e o país desaba. Mesmo que você acredite que os chineses não querem o mal do mundo (e eu não acho isso, todo mundo tem seus interesses), é importante ter em mente que cada produto chinês que você compra muito abaixo do preço dos competidores é mais uma assinatura nesse pacto.

Os chineses gastam uma quantia imensa forçando os preços de seus produtos a ficarem mais baixos porque as contas batem: a balança comercial fica positiva e entram muitos dólares. Não sei por quanto tempo as contas vão bater, talvez não seja um modelo sustentável no longo prazo, mas agora ainda faz sentido para eles.

O desconto na “blusinha” não é de graça, contanto. Ele é pago de forma indireta enfraquecendo a economia nacional. Produzimos menos e giramos menos dinheiro dentro da nossa economia em troca dessa vantagem. E isso é parte do plano: ou você tem uma coisa, ou tem a outra. Não existe um mundo onde o preço dos chineses continua baixo e a indústria nacional consegue crescer e gerar mais empregos e renda. Essa escolha de mandar a produção para o país asiático foi feita décadas atrás e a realidade do mundo é essa agora.

Aí entra a questão de escolha: manter esse sistema ou tentar mudar as regras do jogo. Muita gente fala sobre o crescimento da direita no mundo como um movimento reacionário contra direitos de mulheres e minorias, mas eu apostaria muito mais nas consequências do modelo de globalização que fizemos no passado. Tinha um preço escondido nas pechinchas vindas da China, e esse preço era o enfraquecimento da economia dos outros países.

Tanto que alguns países ficaram tão incapazes de funcionar economicamente que vimos grandes movimentos migratórios. Países que não conseguem girar a economia ficam mais suscetíveis a revoluções, ditaduras, guerras, etc. A globalização também tinha esse custo envolvido: alguns países se especializam tanto em algumas partes da economia global que vários outros se tornam redundantes. Se o Brasil não fosse uma potência de vender minério de ferro e soja, não sei se já não teríamos entrado numa guerra civil ou algum outro desastre maior do que políticos corruptos. Nosso país achou um nicho para se enfiar na economia global e se aguenta como pode.

Outros países que não tinham essa alternativa se tornaram “inúteis” e começaram a exportar imigrantes mesmo. Não é culpa só da China, mas ela é parte dessa engrenagem: ela conseguiu trazer milhões de empregos braçais para seu território, empregos que vieram de outros países. O nicho deles é entregar trabalho de baixa especialização com velocidade e preço muito melhores que os outros países.

Então, é claro que vamos ver uma onda de gente rejeitando globalismo, xingando imigrante e reclamando que não tem emprego. Esse era o preço da blusinha. Nem é meu objetivo aqui dar a solução perfeita para essa situação, mas eu repito que acho importante que as pessoas estejam informadas: mesmo que nossos políticos sejam uns palhaços populistas, até mesmo um hipotético governo honesto e inteligente tem que lidar com esse fato. Deixa os produtos chineses entrarem nos preços que os chineses querem praticar mantém o sistema funcionando do jeito que está.

Se a tal da extrema-direita moderna não fosse infestada de imbecis, o foco deveria ser total na discussão da globalização como existe. Eles às vezes entram na discussão, mas não tem foco nenhum de atenção, se distraem com qualquer casal gay e protagonista mulher em filme de super-herói.

Discutir globalização não é sinônimo de racismo, misoginia e afins, é algo separado que realmente precisa ser analisado, porque decide o rumo da economia global nas próximas décadas. Vamos manter a economia super especializada com países-fábrica como a China ou vamos tentar dividir um pouco mais o bolo? Isso não é coisa para um Zé Ruela como eu decidir, é coisa para uma grande discussão entre especialistas focados apenas no tema. Fazer contas, definir planos, analisar resultados. Política de verdade.

A mistura na cabeça de direita e esquerda sobre isso é uma excelente maneira de diluir a conversa e manter tudo como está. E tudo como está acaba quebrando vários países e criando crises que geram imigração descontrolada para países que tem alguma estrutura econômica funcional. Vamos continuar assim? A blusinha compensa? Talvez compense se tivermos outras fontes de produção de valor nos outros países.

Bom, que se exploda, nenhum político vai falar disso diretamente. Se não for para pensar em nenhuma alternativa, sim, fica sem o imposto que é melhor do que nada. Mas é uma derrota que essa seja a profundidade do tema na sociedade…

Para dizer que eu sou sinofóbico (eu detesto o som de sinos), para dizer que só quer comprar coisa barata, ou mesmo para dizer que todo império cai: comente.

Se você encontrou algum erro na postagem, selecione o pedaço e digite Ctrl+Enter para nos avisar.

Etiquetas: , ,

Comments (10)

  • Eles às vezes entram na discussão, mas não tem foco nenhum de atenção, se distraem com qualquer casal gay e protagonista mulher em filme de super-herói.

    Oras, é pra isso que serve a industria do entretenimento… Para ENTRETENIMENTO.

    • Nada contra, adoro brincar de discutir indústria de entretenimento, mas o povo anda achando que brincadeira é coisa séria e que estão avançando alguma posição política…

      • E estão… No sentido de desviar a atenção de questões relevantes como a do dumping que está relatada aqui para mirar em subcelebridades do naipe de Anitta, de Pablo Vittar e assimilados pra sair sinalizando virtude na lei do menor esforço aplicada ao ambiente político.
        É uma boa forma de manter o gado ajuntado, apesar de tal tática ser um prejuízo para discussões políticas sobre questões mais relevantes, mas não esqueça que já saímos da realpolitik para a react politic.
        Se você for ver as posições do político brasileiro médio, você vai entender o pouco avanço. Muito “cada um por si” e pouca coordenação, coisa que só se resolve quando o executivo ou figuras-chave em posição relevante no Congresso conseguem alinhavar os interesses em torno das pautas políticas que são discutidas a nível de legislativo.

  • Curioso como a direita se apropriou do discurso anti-globalização tão típico da esquerda até um par de décadas atrás.

  • “para dizer que todo império cai” Ra! Os caras estão há uns 5 mil anos passando por guerras, fomes, pragas, colonialismo, comunismo e o caralho a 4, continuam de pé e cada vez mais fortes. Acho que o verdadeiro povo escolhido são os chineses, mesmo. Não aqueles barbudos do deserto.

  • Excelente texto, Somir. É tão bom poder enfim ler uma análise que não puxa a brasa pra sardinha de ninguém… Enquanto direita e esquerda brigam entre si em vários países com cada lado enxergando só os seus próprios interesses, a China – “o país comunista menos comunista da história” – continua tirando economias rivais do mercado e faturando horrores. Só que isso, como você disse, não é sustentável. Dá até medo de pensar nas consequências disso no longo prazo. Mas, quem sabe, quando esse sistema afundar sob o próprio peso – como sempre acontece com tudo o que fica grande demais – e ferrar O MUNDO INTEIRO, aí a polarização e a politização exacerbadas que hoje nos sufocam finalmente acabem. Eu só temo que, quando isso ocorrer, já será tarde demais…

  • Guilherme Protzner

    E pra completar, a questão ambiental com o consumo desenfreado e até mesmo facilitado de bugigangas e vestuário fastfood. Também não cabe a mim nem mesmo taxar qualquer solução sobre o assunto, mas vejo como nós temos trocado a possibilidade de durar mais um pouco nesse planeta antes do meteoro por lixo. As grandes indústrias e países não vão parar sua economia por isso né?

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: