Idiocracia.
Bom dia, crianças! Hoje a aula é sobre o nosso sistema de governo. Mas para entender o presente, precisamos conhecer o…
Passado! Muito bem. Quando falamos sobre o ser humano primitivo, lembramos sobre como durante milênios nossa organização era baseada em força e medo, o mais forte subjugava o mais fraco, e assim temos muita história escrita sob o ponto de vista de reis, rainhas e ditadores em geral.
O ser humano primitivo precisava ter pessoas que enxergava como superiores para funcionar em sociedade. Evidente que isso não é mais uma característica nossa, mas é importante ressaltar como isso era importante até poucos séculos atrás. Pessoas protestavam na rua para ter ditadores, acreditam? Elas queriam ser controladas.
Sim, medo. Elas tinham muito medo e por isso trocavam sua liberdade e sua criatividade pela ilusão de controle de um sistema de poder centralizado. O mundo ainda era muito violento, as pessoas morriam o tempo todo de forma violenta em grandes guerras ou nas menores disputas pessoais. O medo guiava o ser humano contra seus interesses.
No passado, algumas sociedades experimentaram um sistema de governo chamado Democracia. Democracia significa que o poder emana do povo, que as pessoas escolhiam representantes que governavam em nome delas. Foi um enorme avanço em comparação com os sistemas autoritários, e pouco a pouco os países mais democráticos conseguiram vantagens econômicas que os colocaram à frente de concorrentes autocráticos.
Tinha algo ali que acelerava nossa evolução. Ainda era um sistema com raízes no medo, mas finalmente tínhamos uma forma de seguir em frente combatendo esse medo. O poder mudava de mãos, um setor vigiava o outro, popularidade com os mais pobres contava… durante um tempo, foi uma das melhores coisas que tínhamos.
Mas tudo se transforma, e dado tempo suficiente, a democracia começava a ficar mais e mais caricata. O ponto de desequilíbrio estava na parte da popularidade necessária para os candidatos serem eleitos. A ideia é que o povo votasse nos seus preferidos com base na capacidade de realizar seu trabalho, mas na prática era a capacidade de gerar a atrair atenção que realmente desequilibrava o jogo.
No começo do século XXI, o movimento rumo ao candidato-palhaço começou. Não se chamava candidato-palhaço na época, mas a semente estava plantada. Há tempos existia a figura do candidato para voto de protesto, pessoas e até animais colocados como participantes do processo para que as pessoas pudessem brincar um pouco.
Eventualmente, quase todos os candidatos estavam nessa categoria. Pessoas que não queriam ou conseguiam dar o show esperado pelos eleitores não eram mais consideradas. Ano após ano, candidatos mais e mais espalhafatosos, dramáticos e agressivos. E lentamente, essas pessoas começaram a se tornar comuns no serviço público. Uma espécie de retroalimentação da inadequação até culminar na figura do candidato-palhaço. Na metade do século, já era praticamente impossível encontrar pessoas minimamente estáveis emocionalmente disputando eleições.
Os eleitores se acostumaram. Muitos acreditavam que estavam melhorando a qualidade da democracia votando em elementos mais passionais sobre suas bandeiras, mas tantos outros se viam sem opções mesmo. Escolhiam o palhaço com menor potencial de dano. Se durante a democracia do século XX começou-se a afastar da concorrência pessoas competentes com pouco carisma, do século passado para cá apenas pessoas com casos sérios de narcisismo ou outras doenças mentais graves tinham o necessário para entrar na disputa.
Percebendo que o sistema estava fatalmente ferido pela barreira de entrada intransponível para pessoas com um mínimo de saúde mental, decidimos que o mais seguro era adaptar nossa organização social ao redor dessas pessoas. Quanto mais dessas pessoas estivesse na política, menos estariam em outras funções essenciais para a sociedade.
Foi então que desenvolvemos o sistema de contenção democrático. As pessoas atraídas pela política continuariam disputando e assumindo cargos públicos, mas com menor poder de definir a forma como nós vivemos. É por isso que dizemos que os três poderes são apenas cerimoniais. Presidentes, deputados, juízes… todos cargos oficiais, mas cujos poderes não passam de sugestões para nós.
Poucos meses atrás passou uma lei proibindo o consumo e a venda de monóxido de dihidrogênio, escrita por um dos nossos deputados e votada por maioria absoluta no Congresso. Segundo o político, a substância causaria autismo e ativaria chips de controle mental. Nós poderíamos perder tempo tentando explicar para eles que esse é apenas mais um nome para a água, mas é muito mais eficiente deixar que eles façam essas coisas. A violência política praticamente desapareceu fora dos circos políticos, porque de alguma forma a ilusão de poder os agrada da mesma forma que o poder real.
Quer dizer que vamos parar de tomar água por causa dessa lei? Não. Está escrito na nossa Constituição de 2175 que leis só devem ser seguidas em caso de concordância do cidadão. Colocamos logo após a frase de que “Deus é criador e líder do Brasil”, e os candidatos-palhaços acharam tão agradável que sequer se preocuparam com a sequência.
Nosso sistema de poder se chama Teocracia Cristã Voluntária, o que permite que a parcela da população mais atrasada se sinta à vontade, mas não nos obriga a seguir nenhuma de suas regras. Até porque toda semana eles trocam mais da metade da Constituição. O acordo foi manter a frase da voluntariedade no seguimento das leis como cláusula pétrea.
Quando queremos decidir algo que impacte a parcela pensante da população, fazemos plebiscitos online em questão de minutos e apenas seguimos a definição da maioria. O monopólio da força está conosco, fruto de avanços tecnológicos que inutilizaram boa parte das armas antigas. Candidatos-palhaços e seus seguidores não conseguem mais nos ameaçar fisicamente, então não há problema nenhum entreter suas ideias e fingir que respeitamos seu poder.
Na verdade, foi uma das formas mais humanitárias de lidar com os intelectualmente atrasados. Desde que adicionamos inteligência artificial aos nossos cérebros, aqueles que foram contra não tinham mais capacidade de competição. Era criar uma área de contenção para eles, com verbas simbólicas para gastarem como acharem melhor, ou era considerar a possibilidade de um extermínio.
E nós somos melhores do que isso. Quando vocês completarem 8 anos de idade, vão ter que participar das eleições. Eu sei que os candidatos vão assustar vocês pelo jeito completamente insano com o qual falam e se portam, mas podem ficar tranquilos: eles não tem poder sobre vocês. O nosso mundo não é influenciado pelo deles, consideramos apenas um gesto de boa-vontade ir votar também, para que eles continuem acreditando que tem alguma função prática no mundo.
Democracia foi uma excelente ideia quando surgiu, mas como tudo nesse mundo, tem seu prazo de validade. Enquanto isso, vamos tentar fazer da vida dos seres humanos primitivos algo tolerável. Infelizmente a maioria deles não quer deixar de viver com medo.
Então, crianças, mesmo não sendo obrigatório de verdade, votem. Votem no candidato mais divertido, no mais maluco, no que mais ou menos tira a roupa e sobe no palanque… mas votem. Eles precisam disso.
Para dizer que claramente é uma sala de crianças em recuperação, para dizer que os burros sempre vencem, ou mesmo para dizer que o futuro fazemos agora: comente.
Etiquetas: contos, democracia, política
Anônimo
“Desiquilíbrio”?
Somir
Foram os remédios que eu deveria ter tomado.